Daddy cool

If You Built It, He Will Come 03/11/2020
Tovar FC

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Daddy cool

Chove dentro do Aeroporto Viracopos, em Campinas. Chove muito. Não há maneira de isto parar. Por muito que os olhos se fechem, a torneira continua aberta – como a ferida do golpe. Só me vem à cabeça a terceira cena do “Cinema Paraíso”, a da chegada do Totó a casa, em Roma. A namorada já está embrulhada nos braços de Morfeu, mas ainda consegue transmitir o recado da mãe: “Alfredo [o projeccionista] è morto.”

Inicia-se um flash-back. Os jogos de rimas com os nomes dos colegas da escola primária, as explicações de matemática, o significado dos cognomes dos reis de Portugal, as associações da língua portuguesa através do latim, as idas à Luz (e Alvalade) (e Restelo) (e Bonfim) (e Portimão), os remates à baliza em Tróia (e na Columbano Bordalo Pinheiro) (e na Praia d’El Rey), o primeiro barbear, o enésimo penteado mal concebido porque o risco não está onde deve, as dúvidas sobre o verdadeiro proprietário das camisas (“essa não é minha?”), as viagens de barco entre Ayamonte e Vila Real de Santo António, o fado da Menina das Tranças Pretas, o cantarolar dos êxitos  do Festival de Sanremo, as histórias da tropa, os anuários de futebol, os números dos cromos em falta nas suas colecções, os almoços ao sábado, os lanches à segunda-feira depois da terapia da fala, as tardes a ouvir relatos na rádio deitados na cama (e os murros no ar por cada golo), as noitadas a ver o Mundial-94 (e o “Seinfeld”) (e o “Era Uma Vez na América”), os dias inteiros a consultar jornais no arquivo do DN, as conversas intermináveis na Lourinhã, as lições de domínio da velocidade da máquina, vulgo carro, os recordes do Tetris, a magia da paciência, as recepções no aeroporto, a memória fotográfica de Florença, a adoração pela música de José Afonso e Adriano Correia de Oliveira, a sobrancelha esvoaçante no olho esquerdo, o bigode sempre no sítio, as perguntas incómodas antes de uma saída com amigos, os inquéritos por telefone nas manhãs das ressacas, a mão à frente da boca para abafar a gargalhada sonora, os emails divertidos, as histórias da tropa (nãããããããããão, outra vez nãããããããão), os comentários graciosos em directo.


Euro-84, em França. Sousa pega na bola e atira sem rodeios, é o 1-0 à
Espanha: “Quem remata assim não é gago.” Mundial-86, no México. Intervalo de um jogo da fase de grupos e a câmara fixa-se por alguns segundos em duas jovens: 2-0. “Aqui vemos dois belos exemplares da raça asteca.” Liga-97, em Espanha. Um exibicionista todo nu interrompe o BarcelonaBetis. “Estava a coisa neste pé quando entrou em campo um indivíduo com o rabo-de-cavalo  à mostra… e o outro também.” Nesse preciso momento vêse um plano do traseiro do exibicionista, 3-0.


Há pais comprometidos, ausentes, realistas, desnaturados, airosos, perigosos, tranquilos, inconsequentes. O meu é amigo. Cúmplice. Verdadeiro. Como Alfredo, o projeccionista, para Totó. Como o pai dele. Atenção à sua descrição: “O meu pai foi o pioneiro do cinema na sua vila natal. Tinha uma máquina de projecção que ainda hoje, lá pelos sótãos, resiste ao tempo. Nessa altura dava brado e impunha olhares respeitosos. De Lisboa, o meu pai recebia cópias em estado lastimoso de que ninguém se queixava e uns caderninhos de promoção que eu não me cansava de folhear. A sala, cedida pela câmara, fazia o resto. Cinema nos anos 50, e mesmo antes, era um luxo! Empenhado em garantir entretenimento aos seus conterrâneos, o meu pai encarregava-se também da tarefa de anunciar o filme a exibir. Sobre uma imensa cartolina pregada em grosseiro mas bem talhado placard de madeira, ele pintava, a tinta encarnada, em letras garrafais, o título e demais informes. Tudo com muito perfeccionismo, como ele sempre fazia questão. Uma vez, porém, borrou a pintura. As letras, tão bem desenhadas, não tinham ainda secado e a tinta teimosamente escorreu um pouco quando o painel foi colocado na vertical, para ser afixado em local público. Já não havia tempo para repetir o trabalho e, para desespero do meu pai, foi assim mesmo que o placard seguiu. Mas a irritação depressa se desvaneceu. No dia seguinte, toda a gente o cumprimentava pela ideia que ele tivera ao fazer aquelas letras fantasmagóricas. É que o filme dava pelo título de ‘O Conde Drácula’…” Continua a chover. Quando amainar quero ser o terceiro projeccionista da família.

One Comment
  1. Maria João Lourenço

    ler, reler estes textos, chorar, ainda e sempre, com lágrimas verdadeiras, das que sabem a sal quando levamos o dedo à boca

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