William. “Escorreguei, o Mantorras aproveitou e o Sporting foi campeão”
O onze começa em Dida e acaba em Ronaldo. Esse mesmo, o fenómeno. É o Cruzeiro 1994-95. De vez em quando, com Dida na selecção brasileira, a baliza é entregue a William Andem. Esse mesmo, o William do Boavista campeão português 2000-01. Na época seguinte, William é lançado por Jaime Pacheco para o clássico da Luz, no dia seguinte ao empate do Sporting em Setúbal. Ao intervalo, vale o golo de livre directo de Sánchez, consentido por Moreira. Na segunda parte, Argel empata de cabeça. Se acabar 1-1, o Sporting já é campeão. William confirma, por assim dizer, o título. A bola está prefeitamente ao seu alcance à entrada da sua área e o guarda-redes camaronês escorrega espectacularmente. Mantorras aproveita e marca sem problema, com a baliza aberta. Está feito o 2-1 à falta de nove minutos. Jardel nem quer saber e abre imediatamente uma garrafa de champanhe. A primeira de muitas dessa noite.
Passam-se 18 anos. William volta aos Camarões, mais precisamente a Douala, onde nasce em 1968. Aos 51 anos de boa vida, é um homem tranquilo. Expressa-se em bom português, seja a escrever ou a falar. Sempre no whatsapp. ‘Amigo, agora estou no trânsito, falamos à noite.’ Assim mesmo, sem sotaque nem nada. À noite, já em casa e longe da movida da rua, William é um bom conversador.
Cruzeiro e Bahia, dois clubes brasileiros. Como assim?
Saltei dos Camarões para o Brasil em 1994. Sabes para onde devia ter ido?
Nem ideia.
Benfica.
Benfica?
Benfica.
Mas como?
Um negócio do José Veiga. Só que o Benfica contratou o Preud’homme, que tinha sido eleito o melhor guarda-redes do Mundial-94. Então fui para o Cruzeiro, em Belo Horizonte.
E que tal?
Aprendi a falar português, joguei numa equipa vencedora e conheci uma série de jogadores fantásticos.
Tais como?
O meu rival era o Dida. Isso já diz tudo, não? O Nonato era o capitão e também o meu vizinho. Passava a vida na casa dele a pedir-lhe ajuda com isto e aquilo. Nunca me negou nada, nem uma única vez. A porta dele estava sempre aberta. Tal como a do Dida, atenção. Só que o Nonato era meu vizinho, no mesmo prédio, porta com porta. O Dida não morava tão perto, mas era um amigo muito grande. Íamos várias vezes ao shopping, com as respevctivas famílias. E a mãe do Dida adoptou-me como um filho. Tenho saudades, muitas saudades desse tempo.
E mais e mais?
Lá na frente, havia um miúdo chamado Ronaldo.
Ronaldo, o tal?
Ronaldo, o fenómeno, sim.
Uyyyyyyy. E?
Era isso mesmo, um fenómeno. Fazia coisas incríveis no treino. Às vezes, parávamos para olhar para ele. Só para olhar e desfrutar. Um dia, no treino, fez-me um chapéu. Não gostei nada, nunca gostei de levar chapéus. Grande miúdo, o Ronaldo. E simples. Tinha sido campeão do mundo nos EUA e estava ali com a maior naturalidade. Ganhámos dois títulos estaduais de Minas Gerais, um dos quais sem perder qualquer jogo. Foi lindo, uma época fantástica, até porque uma das minhas filhas nasceu em Belo Horizonte.
Depois, Bahia.
Onde reencontrei as minhas raízes, porque Salvador é muito parecido com Douala, aqui nos Camarões. O clima, a comida, as pessoas. Tudo, tudo, tudo igual. Sentia-me em casa. Jogaste quanto tempo?
Um ano, a titular. No Cruzeiro, o titular era o Dida. Só jogava de vez em quando. E quando jogava vestia-me de amarelo.
Porquê?
Disseram-me que um guarda-redes icónico do Cruzeiro chamado Raúl jogava de amarelo e resolvi experimentar. Dei-me bem. Tão bem que conseguia ver um adepto com carisma vestido de amarelo chamado Fubá quando jogava na baliza do lado contrário à da bancada da Mafia Azul. Bastava vê-lo para me fazer rir.
Falavas do Bahia.
Fui mais vezes titular e chamavam-me Jacaré, porque era parecido com um elemento do grupo do ‘É o Tchan’. Era jacaré para aqui, jacaré para ali. Muito divertido.
E o Boavista?
Apareceu no início de 1998.
Jogas?
Nem uma vez, vou sempre para o banco. O titular já é o Ricardo. Só jogo na época seguinte, 1998-99, depois de ter ido ao Mundial de França.
É o teu primeiro?
Primeiro, primeiro, é. Mas já tinha sido pré-convocado para o Mundial-90, só que libertaram-me a três dias do início, porque era muito novo. E do 1994 nem sequer me vou dignar a falar. Portanto, sim, apareço em 1998. O titular era o Songo’o. Quando regresso do Mundial, o Jaime Pacheco mete-me a titular. A minha estreia é um 2-0 ao Vitória SC, no Bessa. Dois golos do Douala.
Ahhhhh, outro camaronês. E também de Douala.
Verdade.
Depois jogou no Sporting, não foi?
Foi, isso mesmo.
Alguma vez te marcou golos?
Se só for nos treinos. E mesmo assim, ahahahahah [William começa a soltar-se]
Dizias, titular no Boavista. E que tal?
Foi uma óptima experiência, claro. O problema era o humor dos outros guarda-redes. Ricardo e Alfredo nem sempre aceitavam bem e, às vezes, arrancar-lhes um bom dia era complicado. Como era diferente a vida no Cruzeiro. Lá, se fosse titular, o Dida falava comigo na boa, tal como o Harlei, o outro guarda-redes. A nossa comunidade nunca se deixou ir abaixo. No Boavista, foi pena esta distância de vez em quando. Paciência.
E foste campeão?
Antes de ter sido campeão, podia ter ido novamenta para o Benfica.
Outra vez?
E voltei a não ir. Desta vez, o presidente do Boavista quis manter-me no Boavista. Dizia que era importante. E, de facto, fui. Tanto que fui campeão. Grande momento. Tanto na minha história como na do Boavista. Foi um grande campeonato, ganhámos a Benfica, FC Porto e Sporting em casa, fomos superiores e isso deu-nos uma força imensa.
Na época seguinte, em 2001-02, o Boavista foi a única ameaça do Sporting campeão.
Siiim, era uma equipa muito boa, a nossa. O Jaime Pacheco preparava bem os jogos e o nosso plantel era rico em soluções.
No dia em que o Sporting é campeão, tu escorregas no golo do Mantorras.
Ahahahahahahahahahahahahah [William está solto, pronto] Pois foi, escorreguei, o Mantorras aproveitou e o Sporting foi campeão. Estou na história.