António Victorino D’Almeida. ‘Ainda me lembro de ver o Eusébio a aprender a escrever num caderno de duas linhas’
O maestro dá-nos música a propósito do Troféu Cinco Violinos com uma série de histórias de incalculável valor desportivo e humano. É o maior
Ponto prévio. O primeiro de três. Estou na Hemeroteca de Lisboa a curtir o passado. De repente, taaaaaau, toda uma última página xxl d’A Bola com o António Victorino D’Almeida, entrevistado por Jorge Schnitzer. O título é “Maestro queria ir à final em vez da (sua) ópera”. A final é a da Taça de Portugal, a ópera é uma de três actos de Camões idealizada pela RTP desde o Teatro São Carlos. A ideia louca vem-me à cabeça. E se o entrevistasse para a semana, sob o pretexto do Troféu Cinco Violinos em Alvalade, este sábado, entre Sporting e Valencia?
Ponto prévio. O segundo de três. Continuo na Hemeroteca a puxar pela cabeça. Como lhe chego à fala? A pergunta martela-me uma e outra vez. Como? De repente, taaaaaaau, toda uma descoberta sensacional. Então não é que a minha mãe é editora de António Victorino D’Almeida na Oficina do Livro? Muah ah ah ah. Entre eles, contam-se as obras “Os Devoradores de Livros” (2008) e “Tubarão 2000” (2009). Tu queres ver, habemus maestro?
Ponto prévio. O último de três. Ufffff. Saio da Hemeroteca, subo a rua, viro à esquerda e atravesso a passadeira. De repente, taaaaaaaau, todo um telefonema a acontecer ali às claras. António Victorino D’Almeida atende, solta uma gargalhada com a coincidência familiar mãe-filho, escuta a proposta e confirma a entrevista com a recitação dos cinco violinos: Jesus Correia, Vasques, Peyroteo, Travassos e Albano. Até parece a tabuada. Combina-se o get together para daí a seis dias, perto da sua casa, em Campolide. Acerta-se a táctica em cima da hora, Galula é o nome do restaurante. E que restaurante. Tudo do best, até a água com gás. Cof cof cof
Agora sim, música maestro.
[António está a ler atentamente “A Bola”] Aqui está uma imagem de rara beleza. Nem imagina há quantos anos não vejo alguém sentado a ler um desportivo enquanto espera pelo almoço.
Ahah [cuidado, o perigo do agá colar-se ao á é gigantesco ao longo das próximas duas horas].
Com a sua idade, julgava-o mais moderno, com telemóvel e tal.
Ahahah [bem avisei] Isso faz-me lembrar o Primo Basílio, do Eça. Há uma personagem, o Conselheiro Pinto Porto, que passa a vida a dizer ‘maravilhosa invenção, quem não admirará os progressos deste século?’ Imagina a mudança do paradigma com a invenção da electricidade, da rádio e do telefone? Deve ter abalado ainda mais as estruturas da sociedade. Apesar de tudo, ele faz troça dos fanáticos com essa frase deliciosa. Que a aplico todos os dias, porque o telemóvel está nas mãos de toda a gente. Compreendo a sua utilidade, mas não corresponde à qualidade de vida. E é um atropelo, uma invasão à nossa privacidade. Veja bem: se eles quiserem, sabem que você está aqui a almoçar no Galula. Não há direito, não acha?
De acordo.
Eu tenho telemóvel, veja lá bem este mamarracho [saca-o do bolso direito do casaco e apresenta-nos um telemóvel quase quase do tempo do Primo Basílio]. E também tenho computador. Há uma história engraçada. Quando apareceram os computadores, lembro-me que o José Cardoso Pires disse-me ‘é uma razoável máquina de escrever e é uma genial máquina de apagar’.
Bem visto.
De facto, a grande novidade e a grande vantagem do computador é poder apagar. Nem imagina as dores de cabeça com a máquina de escrever. Nada contra, atenção. Mas era cada dor de cabeça, ahahahah. Se errarasse uma palavra, escrevia por cima. Se errarassse mais uma, era outra emenda à mão. Às tantas, a página já estava toda borrada e tinha de deitar fora.
Ahahahahahah. A página tantas, literalmente, já nem sabia qual era a página boa e a má.
Ahahahah [é a minha vez, ora essa].
Isto parece mais aquela anedota. Muito machista, bem sei. Mas tem graça. O alentejano vê a sua mulher a pintar-se ao espelho e pergunta-lhe
‘Maria, poque é que estás a fazer isso?’
‘É para ficar mais bonita’
‘Então porque é que não ficas?’ [António ri-se: por ele, por mim, pelo restaurante todo, é rir a bom rir] A internet é a mesma coisa: se tem tanto tanto tanto conhecimento, porque é que as pessoas não absorvem esse conhecimento? Sou da opinião de que se vive um grande trauma de solidão. E tendem a vacinar-se com a solidão com mais solidão. É uma coisa que me impressiona. Isto tudo para dizer sabe o quê?
Diga.
Leio A Bola, sim. Há muito tempo.
A propósito, tenho aqui uma coisa para si directamente da Hemeroteca.
Que maravilha. Lembro-me tão bem.
Conte lá.
A RTP encomendou-me uma ópera de um acto sobre o Camões. Dava-me condições fantásticas. Como diria o Solnado: sopas, gravatas e tudo. Já estava a fazer a ópera quando pedi ao Manuel da Cruz da RTP para estender a ópera por três actos. A RTP aceitou. Mas nunca mais se andou com o assunto. Estava previsto para ser gravado em playback e até era uma boa solução, só que a RTP não cumpriu. Então, o Luís Freitas de Branco, que era o director do Teatro São Carlos, telefonou-me e disse-me para fazermos a ópera no teatro, com a Águeda de Sena [coreógrafa]. Tudo bem, vamos lá. No dia do ensaio geral, estávamos todos a começar e aparece o Luís Freitas de Branco com um ar muito chateado.
Então?
Diz-nos isto: ‘Quero comunicar à companhia, à orquestra, ao maestro e aos demais participantes que a PIDE arrombou as portas da gráfica do São Carlos e apreenderam todos os programas. Não vai haver espectáculo. Vou tentar telefonar a pessoas para ver se se desbloqueia a situação.’ Estivemos até às três da manhâ à espera de um volte-face. Nada feito. Acabámos por desistir. Como não se podia dizer a explicação verdadeira, tivemos de optar por “motivos técnicos”. A coisa fez muuuuito barulho. O Palma Inácio estava preso na altura e contou-me que os presos batiam com as púcaras nas grades em código morse a dar conta da notícia. Começaram então a nascer os boatos. Alguns absurdos, como a descoberta de um cádaver no fosso cavado à pressa no São Carlos. A mentira era livre, ahahahahahah.
E depois?
Veio o 25 Abril e, um ano depois, o director do São Carlos já não era o Luís Freitas Branco, e sim o primo dele, o João Paes. Que foi visitar-me a Viena para insistir na organização da tal ópera. Eu estava numa fase difícil da minha vida, a do divórcio. A questão das filhas, se ficava em Viena com elas ou voltava para Portugal? A verdade é que escolhi ficar em Viena e a relação com as elas triplicou, quadriplicou por infinitos. Ahahahahah. Aceitei fazer a ópera, sem cabeça para aquilo. Como se isso fosse pouco, aquilo foi uma portuguesada ao mais alto nível. Faltaram meios, faltaram pessoas. Enfim. O Silva Pereira encarregou-se de fazer um resumo da ópera, mas não fez resumo nenhum. E eu então disse à Bola que o que queria era ir ao futebol.
E foi?
Não, claro que não. Nem podia.
Foi à ópera?
Sim, pois. Disseram-me para ir, porque sim e porque iam estar uma série de figuras, como Vasco Gonçalves, Mário Soares e Álvaro Cunhal. E lá fui assistir àquela coisa chata, horrorosa. Foi aberrante, mesmo. No segundo acto, um longo solo de obué. Que chegou a ser elogiado pela crítica, ahahahahahahah. “Um longo solo de obué mas bem interpretado”. Ora bem, o homem do obué estava apenas 45 compassos atrasados. E continuou a tocar sozinho [ri-se que nem perdido, ri-se meeesmo, sem parar]
Soares e Cunhal. Já os conhecia?
O Mário Soares conhecia-o bem. Antes do 25 de Abril, esteve duas vezes na minha casa em Viena durante aquelas reuniões dos socialistas de todo o mundo. Na minha carreira, há um momento alto que foi ter urinado entre o François Mitterrand [presidente da França] e o Olof Palme [Primeiro-Ministro sueco]. Assim vale a pena, ahahahahahahah. O Cunhal só o conheci depois do 25 Abril. Era um tipo que me deixou uma fortíssima impressão. Nada a ver com as ideias dele, tinha a ver com a energia. Devo dizer-lhe que só voltei a sentir essa energia aqui há um mês, quando estive em Roma com o Papa Francisco. É uma energia incrível. Magnético. Andei há pouco tempo num bote a remos, na ilha do Pico. Em alto-mar, ao lado de golfinhos livres. Foi uma coisa parecida. É impressionante a energia bastante forte e sempre presente. Faço muito esta comparação. Pode parecer descabido, mas não é. De todo. O Cunhal era assim, muito presente, cheio de energia. Como o Papa. Nada disto tem a ver com partidos ou ideais políticos. Nem sequer sou católico.
Esteve em Roma porque?
Sem ser católico, já escrevi três missas. Quantas faria se fosse? Ahahahahahahahahah. Uma delas, a última, dediquei-a ao Papa Francisco. Há dois anos, pus-me a ler umas coisas sobre o nosso Santo António. Nosso, quero dizer, de Pádua. Porque os santos pertencem à terra onde morreram. E escrevi uma missa para o Santo António em que se ouve a marcha de Lisboa lá ao fundo. Decidi dedicar ao Papa Francisco. Lá em casa, na brincadeira.
Como é vai parar a Roma assim do nada?
Há um amigo meu de Elvas, com os conhecimentos certos no Vaticano, que me diz ‘se você quiser, garanto que lhe levo ao Papa’. E assim fui. Estive uns sete/oito minutos com ele, ofereci-lhe as missas e despedi-me com um ‘y viva San Lorenzo de Almagro’. Ele respondeu ‘y viva’. Ahahahahahahahah.
Lá está, San Lorenzo. Eles vieram cá nos anos 40 e só deram abadas, não foi?
Seis-dois ao Sporting.
Vi-os ao vivo?
Não, ouvi na rádio. Jogava no San Lorenzo um tal Imbelloni, Mário Imbelloni. Que depois andou em Portugal. Jogou no Braga, no Atlético e até no Sporting. E treinou o Braga, o Sporting e por aí fora. A jogar ao lado do Imbelloni, o Pontoni. Marcou três golos ao Sporting. Lembro-me desse Pontoni porque era cabeludo e, nessa altura, os cabeludos ainda pertenciam a uma espécie rara.
Via muito futebol cá em Portugal?
Tem de descontar os 27 anos que vivi em Viena, está bem?
Mas lá também há futebol.
Claro que sim. E, olhe, o José Águas era amigo de casa quando ele jogou em Viena.
Maravilha. Isso é em 1962, 1963, certo?
Por aí, sim. Encontrámo-nos casualmente lá, nunca tinha visto o Águas. Havia poucos portugueses em Viena, a gente notava-se à distância. Ahahahahahahah.
O José Águas com a família?
Tudo. A Lena e o Rui eram pequeninos [António traça a altura com a mesa ao nível da nossa mesa]. O José Águas andava fora dela, queixava-se imenso.
Porquê?
Dizia que os companheiros de equipa passavam-lhe a bola a meio metro de distância. Além disso, o José jogava a extremo-esquerdo.
Extremo, como assim?
O avançado era um brasileiro chamado Jacaré, muito popular entre os adeptos. Não havia como o Águas jogar a 9, então passaram-lhe para extremo. E passavam-lhe mal a bola. O Águas passou um martírio lá em Viena, só lhe digo. E isso faz-me pensar no Renato Sanches, por exemplo. Ou agora no João Félix, outro exemplo. Há malta que rejeita outra, através da conta bancária e tal. Aprendi aí essa mania. É tipo ‘ai este gajo ganha tanto, então vamos lixá-lo’.
Descontando esses 27 anos, o António ia a que estádios portugueses?
Alvalade, muito mesmo. Era mesmo ao lado da minha casa. A primeira vez que os meus pais me deixaram sair sozinho de casa foi para ir ao futebol. A minha mãe achava que não havia qualquer ponta de perigo, porque ia sempre pelo passeio e não havia risco de atropelamento. Saía da Avenida 5 de Outubro, entrava no Campo Grande e, pronto, Estádio José Alvalade.
E lembra-se da sua estreia?
Então não? Os Cinco Violinos. Era do Sporting até aos meus 20 anos, sabe? Era o clube que tinha visto sempre. Mesmo depois dos Cinco Violinos, o Sporting tinha belas equipas com Vadinho, David Julius, um sul-africano que chegou à selecção portuguesa, Janos Hrotko, um húngaro. Todos bons de bola. A mudança só se dá em Viena, onde apanho pela televisão a final do Benfica com o Real Madrid. Nessa altura, já estava há dois anos em Viena e era horrível, chato mesmo, porque ninguém sabia que Portugal existia. Ninguém sabia é um exagero, claro. Estou a falar mais da gente da rua, que confundia Madrid com Portugal. Quando o Benfica ganhou 5-3 ao Real Madrid, fiquei a ser conhecido no meu bairro como o ‘der portugeizen’. Ganhei a nacionalidade graças ao Benfica. Quando dei por mim, já era do Benfica. Ainda por cima, já me tinha divorciado. Ou seja, se me divorciei, também posso mudar de clube. Ahahahahahahah.
Alguma vez viu um clube português em Viena?
Vi, mais tarde: o Benfica-Milan, final da Taça dos Campeões 1990. Também vi o Sporting em Linz (1969-70) e estive no hotel da equipa, com Hilário, José Carlos e essa malta toda.
E o Porto com o Bayern em 1987?
Estava a tocar nesse dia. Não fiz como o Pedro Burmester, que deu um concerto e exigiu uma televisão nos bastidores para ver a final. Ahahahahahahahah. Eu estava a tocar e apenas pedi aos funcionários que me fossem dizendo o resultado por gestos. Disseram 1-0 e eu como que abrandei o ritmo. Depois 1-1 e animei. Com 2-1, até as teclas do piano saltaram, ahahahahahahahahah. Quando acabou o jogo, foi a primeira vez que não fui sair à noite para festejar o espectáculo com os restantes elementos e saí directo para o aeroporto fazer uma espera ao Porto. O Pinto da Costa não esqueceu.
Insisto, e os Cinco Violinos?
De 15 em 15 dias, lá estava a vê-los no peão em Alvalade. Imagina o que é um miúdo de 10 anos no peão? Ahahahahaahahhah. Comprava o bilhete e entrava.
E que tal?
Eram fantásticos, complementavam-se muito. Também temos de ver que os seis atrás deles eram fantásticos. Na baliza, o Azevedo. Um guarda-redes portentoso que chegou a jogar com uma clávícula partida com o Benfica e a ganhar esse jogo. Na defesa, Barrosa e Veríssimo. No meio, Canário, Manuel Marques, o do lenço.
O do lenço?
Ele jogava com um lenço branco pendurado nos calções.
Sempre?
Sempre.
E via-se?
Eu via desde o peão.
E o Passos, por exemplo?
Já foi mais tarde. No tempo de Galaz, Carlos Gomes.
Carlos Gomes, que personagem.
Nem queira saber. Um guarda-redes formidável, do melhor que se viu. Dizia-se que meteu-se com uma rapariga no elevador mal chegou a Moscovo. Ahahahahahahah.
E o António já foi a Moscovo?
Tinha 27 anos, a minha primeira vez
E?
Chato, um país chato. Sem restaurantes nem cafés, muito menos esplanadas. Os restaurantes eram num terceiro andar de uma casa. Tocávamos à porta, subíamos as escadas e entrávamos quase em segredo. Aquela Praça Vermelha era lindíssima, só apetecia beber cervejas e essas coisas. E nada tinha. Nem uma esplanada. A minha segunda vez em Moscovo já foi como adido cultural com a mala diplomática.
Como assim?
Antes era assim. Entrávamos na embaixada todos triunfantes com a mala agarrada ao pulso.
Não é isso. O como assim é o cargo de adido cultural?
Fui adido cultural da embaixada portuguesa em Viena uns bons anos.
Lindo. E o interior da mala?
Chocolates, brinquedos para os filhos do embaixador, perfumes para a mulher do embaixador. Tudo menos coisas diplomáticas, ahahahahahahahhahahah.
Além de URSS, visita outros países?
Olhe, já tinha ido à URSS, ao Brasil e a Moçambique mas nunca tinha ido ao Algarve. Um dia, aos 32 anos, lá me decidi. Com a família.
Algarve?
Aquilo era longe, ahahahahah. Detalhe: os diplomatas recebiam em escudos. Durante anos e anos, se recebessemos 5 xelins austríacos, valia 5 escudos. Depois do 25 de Abril, o xelim disparou e chegou a valer 14 vezes mais que o escudo. Agora imagine, nós ganhávamos em escudos e, por isso, ganhávamos 14 vezes menos. Apesar de ganhar 14 vezes menos, quando vinha a Portugal com o dinheiro no bolso, eu achava tudo de graça. Ainda há dias estava a falar desses tempos com a minha filha Inês. Fomos para o Algarve e ficámos no Hotel Algarve, que era de luxo. O meu pai so me dizia ‘mas tu és doido?’ Calma pai, tenho muito dinheiro. Mesmo’. Imagine o que é fazer uma refeição de luxo e pagar 2 escudos?! Passámos o Verão à grande a jogar mini-golfe. No ano seguinte, já não dava para isso. Ahahahahahahahahahahahah.
Que regabofe. Há pouco perguntei pelos clubes em Viena e esqueci-me da selecção.
Fui lá uma vez, com o tal golo do Alberto.
Estava lá no estádio?
Não, ahahahahahahahahahahah.
Vem aí história, já vi.
A minha mãe adoeceu gravemente e eu quis vir a Lisboa. Pedi autorização ao embaixador e ele nada. O embaixador era um gajo horroroso. É ele o meu personagem no Coca-Cola Killer [mais um livro escrito por António Victorino D’Almeida, desta vez sem a participação da minha mãe]. Já viu o sacana?
E o que fez o António?
Vim à mesma. Fiz as contas e dava para chegar a Viena no domingo. O jogo do tal golo do Alberto era só na segunda-feira. Bom, visitei a minha mãe e voltei a Viena, com escala em Paris. Chego a Paris, onde a minha mulher está à espera. Chego ao guichet e nada de voo.
Então?
Greve,
Já aí?
Ahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahah.
O que fez?
Pedi um voo qualquer para a cidade mais próxima de Viena. Sugeriram-me Turim. Seja Turim. Dormimos em Turim de domingo para segunda. Só que o avião para Viena chegava às três da tarde. Então olhe bem o que fiz: telefonei de Turim para a embaixada e atendeu a secretária do embaixador, a Fraulein Klein. ‘Olá, tudo Frfaulein? Olhe, estou aqui com uma dor no joelho, não sei se é reumático ou o que é. Pergunte lá ao embaixador se é preciso que suba. Se não for preciso, estou aqui em baixo no café?’ [pausa para quê] [adivinhe lá, caro leitor] Ahahahahahahahahah Ahahahahahahahaha Ahahahahahahahaha [sem parar, que delícia]. Ela diz assim ‘o senhor embaixador não está aqui de momento; se for preciso alguma coisa, telefonamos.’ ‘Claro, claro, eu vou. E eu em Turim, ahahahah-infinitos.
E a viagem?
O avião atrasou-se e não consegui ir ao estádio. E isso era tramado.
Porquê?
Porque não via o jogo e porque o embaixador sabia que eu iria ao jogo. Se não aparecesse no estádio, ele acharia que algo de estranho se tinha passado. O que fiz? Cheguei a Viena e fui para o hotel da selecção portuguesa. Ainda vi pela televisão o golo do Alberto. Os jogadores da selecção chegaram e eu atirei-me a eles. Depois fiz-me a todas as fotografias. Ahahahahah. No dia seguinte, o Coca-Cola killer meteu-se comigo. [António faz uma careta] ‘É notório que não foi ao jogo.’ E eu ‘claro que fui ao jogo, sou amigo dos jogadores.’ E puxei do jornal do dia com as fotografias no hotel. Ahahahahahahahahahah.
E ele?
O que havia de fazer? Eu estava mesmo com todos os jogadores, no hotel.
Vou insistir, parte 2.
Insiste, amigo, insista.
Dos Cinco Violinos, de quem gostava mais?
[sem pestanejar] Albano.
Porquê?
Ele era pequenino, sobretudo ao pé daqueles matulões, e conseguia fazer coisas formidáveis com a bola. Era elegante, habilidoso, talentoso. Tipo Garrincha. Sabe, o Garrincha introduziu o humor no futebol. Ele fingia que fintava, ele corria sem a bola e enganava os adversários directos. Repare, estou a dizer adversários. No plural, de propósito. Era um génio, o Garrincha. Agora veja bem, o Albano era tipo ele. Nunca mais me esqueço de um golo do Albano com o rabo. A bola veio assim ele, teca, com o rabo. Ahahahahah. Génio. Também gostava do Travassos. O Travassos era o maior.
O maior não era o Peyroteo?
O Peyroteo era uma máquina de avançado, um número 9 oportuníssimo. Ainda hoje é o recordista de golos na história. Isso é um dado inquestionável.
E o Vasques?
Cerebral.
E o Jesus Correia?
O que dizer de alguém que jogava futebol e hóquei em patins? O que dizer de alguém que foi seis vezes campeão do mundo em hóquei? O que dizer de alguém que deixou o futebol para se dedicar ao hóquei? Craque, claro. Sabe uma coisa sobre o Travassos?
Diga.
Assisti com o pai ao 10-0 da Inglaterra a Portugal no Jamor.
Eiscchhhhhhh, a sério. Posso tocar no maestro? Que honra, chi-ça.
Ahahahahahahahah. Quando estava 8-0, o Peyroteo atirou por cima da trave a um metro da baliza. Desatei a chorar. Como se isso fosse virar o jogo, ahahahahahahahaha. Portugal apanha 10-0 da Inglaterra e, poucos anos depois, ainda leva 9-1 da Áustria, na estreia do Cabrita, lembro-me bem, era um criativo da Olhanense. O Travassos fez esses dois jogos. Agora imagine: um país que leva 10-0 e 9-1 e ele é convidado para a selecção da Europa? Está tudo dito, tem de ser um génio. O Zé da Europa era incrível, um enorme jogador. Proporcionalmente até terá sido o maior de todos. Hoje em dia, Portugal é campeão da Europa, campeão da Liga das Nações, campeão disto e daquilo. Há os Ronaldos, os Bernardos. Agora o Travassos foi convidado para jogar com a nata da Europa quando levávamos 10-0 e 9-1. Disseram-me que há na internet uma entrevista minha ao Travassos.
A sério? Nunca vi.
Nem eu, ahahahahahahahahahah. Um amigo meu pediu-me ajuda para fazer um filme sobre a história do futebol e fui entrevistar o Travassos. È uma história lindíssima. Já o Travassos era um senhor, atenção. Em cada centímetro quadrado da sala dele, havia referências a esse jogo. A certa altura, ele pergunta-me pelo Ocwirk, o capitão da selecção da Europa. E eu digo-lhe que já morreu. O Travassos não sabia e ficou abalado. Chamou a mulher e ela também ficou abalada. Um silêncio gigantesco. Reparei então que o Travassos estava a coçar a testa. Só depois percebi que estava a fazer festas a uma cicatriz. Perguntei-lhe o que era aquilo Diz-me ele: ‘Esta cicatriz é do Ocwirk, chocámos cabeça com cabeça.’ É tão emcionante, é tão futebol. Isto é que é futebol. Do que eu gosto. E você também.
Uauuuu. Olhe se o Travassos pertencesse aos Magriços?
Uyyyyyy. 1966, grande Mundial.
Onde estava?
Aqui em Portugal. Vi os jogos todos em casa, com os meus pais.
Hoje é o dia do Coreia-Portugal.
A sério? Que jogo. Muitos anos mais tarde, encontrei-me com o Coluna num restaurante. Estávamos numa mesa grande e, de repente, toda a malta foi à casa de banho. Não se foi combinado ou quê, mas ficámos sozinhos. E eu aproveitei ‘como é que foi aquela história dos 5-3?’ E o Coluna respondeu-me só isto ‘os olhos’.
Os olhos?
Exactamente o que lhe perguntei, ahahahahahahah. O Coluna então explicou-me melhor. “Quem joga futebol, sabe que o olhar denuncia muita coisa, desde passes até remates. Só que a gente olhava e eles tinham os olhos fechados. Não víamos nada. Ainda antes do intervalo, o Otto Glória gritava-nos ‘não olhem para os olhos, não olhem para os olhos’.” Isto é delicioso. Essas conversas com os jogadores são sempre interessantes, enriquecedoras. Permitem-nos olhar para o futebol de uma maneira diferente. Por exemplo, o Palmeiro. O que marcou três golos à Espanha.
O que tem?
O Palmeiro morava no mesmo bairro do Travassos, na Costa da Caparica. Fiz as duas entrevistas no mesmo dia. O Palmeiro vira-se para mim e começa a desbobinar uma história curiosa. ‘Epá, a gente estava a apanhar sol na bancada e não nos apetecia nada ir treinar. Ficámos na bancada, na preguiça. Havia lá um preto e o preto rematava bem. O Costa, que era o Costa Pereira, queria treinar à força. Saiu da bancada e convidou o preto para uns remates à baliza. Penáltis, primeiro. O preto meteu-os todos. O Costa então disse-lhe: ‘Agora vamos mais a sério, livres directos.’ E ele, puuum, golo. E tem o desplante de dizer ao ao Costa: ‘até meto de mais longe’. O Costa sentiu-se ofendido, claro, e aceitou o desafio. ‘Metes de mais longe?’ E ouve-se do outro lado, ‘até meto do meio-campo’. E não é que meteu? Esse gajo era o Eusébio. Ainda me lembro de ver o Eusébio a aprender a escrever num caderno de duas linhas.
Nããããão.
A sério, verdade. É uma coisa inacreditável. Os jogadores tinham de completar o ensino básico e o Eusébio estava a fazer por isso.
Alguma vez chegou a apanhar Eusébio e Amália Rodrigues juntos?
Juntos, não. A Amália conhecia-a no Botequim, da Natália Correia. Havia uma mesa com a toalha branca, a quem a gente chamava Pólo Sul. Era a mesa onde se jantava a um preço exorbitante. Jantar ali era impossível. Mas jantei no Pólo Sul.
Com a Amália?
Costumo dizer que tenho três irmãs: Natália Correia, Olga Prates e Maria do Céu Guerra. Um dia, a Natália ficou espantada por ainda não conhecer a Amália e disse: ‘Vou organizar um jantar a dois no Botequim.’ Foi na mesa do Pólo sul, de graça. Ahahahahahah.
Espectáculo. O António jogava futebol?
Digo-lhe só isto: fiz parte da primeira equipa da Academia de Música de Viena, que jogou no primeiro campeonato universitário. Havia dois portugueses nessa equipa. Eu e o Noel Flores, um goês formidável, grande pianista, professor em Viena. Portugal nunca o reconheceu e foi das pessoas mais importantes da música portuguesa. Enfim. O Noel era defesa-central óptimo.
E o António?
Eu era mais a meio-campo. Ainda tenho fotografias do primeiro jogo.
Precioso.
Nem mais, nem mais. Isso e o resultado, 11-1 contra a equipa da Escola das Belas Artes, uma série de matulões tiroleses. Onze-um para eles, claro. Veja bem, o jogo começou e a bola foi parar ao nosso outro médio, um japonês chamado Fukuda. Que agarra na bola com a mão e pergunta-nos ‘e agora o que é que faço?’ Ahahahahahahahah. Com estes jogadores não admira que levássemos 11-1.
E cá em Portugal, jogava?
Siiiiiim, claro. Na rua. A coisa engraçada desses jogos era a figura do ranhoso.
O ranhoso?
A expressão era o ranhoso, sem qualquer caracter pejorativo. Havia jogos com ou sem ranhoso. O jogo sem ranhoso era perigoso. Com um ranhoso, era mais fácil.
Hein?
A polícia não nos deixava jogar na rua.
O quê?
Há pois. Eles apanhavam-nos e levavam-nos para a esquadra. A figura do ranhoso era importante para passar pelo polícia a correr e desviar as atenções. Se o ranhoso fosse preso, paciência, era um ranhoso. Interessava era livrar-nos da ida para a esquadra, do telefonema para os pais e isso tudo. Ahahahahahahahahahahahahahahah [não consigo mais, o teclado está viciado] Havia alguns ranhosos conhecidos, como o Arlitos, que não sabia dizer o C, e o Flávio.
Alguma vez foi preso?
Fui apanhado alguma vezes, sim, mas tive a sorte de apanhar ranhosos nos meus jogos.
E jogava a quê?
Em todo o lado.
Até à baliza?
Todos queríamos ser o Azevedo, do Sporting.
Ele era mesmo uma referência?
Ouça, o Azevedo era um meia-leca que se agigantava. Atirava-se de cabeça às bolas, num pelado. Atenção ao pormenor, num pelado. E o Azevedo ia de cabeça, sem medo. Não é para todos. Quandpo há pouco falei do Carlos Gomes, esqueci-me de dizer que ele teve o mérito maiúsculo dede fazer esquecer o Azevedo. Depois, o Sporting teve Octávio de Sá.
Carvalho, o do Mundial.66.
Exacto, o Carvalho. Eram bons, mas o Azevedo sempre foi o maior. E, claro, havia o Damas. Outro maior.
Também era especial, o Damas?
Era muito porreiro, adorava-o. Íamos muitas vezes almoçar ou jantar juntos. Com malta do Benfica, até. Outros tempos de confratenização pura. Há um almoço que é mítico.
Uyyyy, mais mítico que o de hoje?
Ahahahahahahah. Estava eu, o Joaquim de Almeida.
O actor?
Esse mesmo. Calma, isto vai melhorar. Ouça bem: o Joaquim de Almeida entrou como figurante na tal ópera do Camões no São Carlos. Uns anos valentes depois, encontro-o em Viena. Apareceu-me lá e apresentou-se como Joaquim Portugal. Ele é Joaquim Portugal de Almeida. Ou Joaquim de Almeida Portugal, já nem sei. E ficou a viver um ano lá em casa. Ahahahahahah. Aliás, foi ele que me apresentou a minha mulher actual e fui quem lhe apresentei a primeira mulher dele, ahahahahahahah.
Que quarteto fantástico.
Esse almoço foi assim. O Damas na quina. Eu aqui, o Joaquim de Almeida à minha frente. O Eusébio ao meu lado e o Toni à frente dele. Foi a maior bebedeira que apanhei na minha vida. Aquilo acabou à noite, quase jantámos lá. O Toni foi seleccionado, segundo me explicaram, para me levar a casa. Sabe aquela mania que um gajo tem em tentar acertar o passo quando estamos a cambalear? Eu estgava assim. É pior a emenda que o soneto. Saí do carro, à porta de casa, e deparei-me com uma equipa do Correio da Manhã à minha espera para uma entrevista previamente marcada para as 18 horas. Ahahahahahahahah
[calma, há mais]
Ahahahahahahahah. Pedi-lhe desculpas e disse-lhe que ia subir só para fazer uma coisa. Subi, sim, mas não desci. A minha mulher topou logo e a minha filha mais nova desceu para dizer-lhes que a entrevista estava sem efeito. Não dava. Com aqueles gajos, Joaquim de Almeida, Toni, Damas e Eusébio, não dava.
Os outros Cinco Violinos.
Ahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahah vezes infinitos.
in MaisFutebol, Julho 2009