Manaca. ‘Um autogolo de um preto é porque está comprado, um autogolo de um branco é má sorte’

Mais You Talkin' To Me? 03/19/2022
Tovar FC

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Manaca. ‘Um autogolo de um preto é porque está comprado, um autogolo de um branco é má sorte’

Ya. Colecione a palavra ya, é a da moda. De quem? Carlos Alberto Manaca Dias. O saudoso Manaca. Em 15 anos de 1.ª divisão, a jogar como lateral ou central, marca por seis equipas. Extraordinário registo para um defesa. Começa na Sanjoanense e vai por ali fora: Sporting, Vitória FC, Braga e Vitória SC até desaguar no Estoril. Ao todo, 23 golos. E um autogolo, aquele de maio 1980. Esse lance permite a vitória magra do Sporting em Guimarães (1-0) e impede o Porto de se sagrar tricampeão nacional pela primeira vez. No deve e haver, a tranquilidade de Manaca é superior à indignação portista. Ei-lo, Manaca ao vivo e a cores desde Toronto, no dia seguinte ao seu 70.º aniversário.

Boa tarde, Manaca, tudo bem?
Ya [comece a colecioná-los já]. Boa tarde aqui, boa noite aí. Aqui são três da tarde, aí oito da noite. Você não janta?

Já vou, já vou. Só depois do Porto-Boavista.
Aqui o dia está meio nublado e vou aproveitar a segunda parte do Porto-Boavista para dar um passeio aqui na plaza em frente à minha casa. Um passeio curto. Quero ver o Sporting-Estoril daqui a nada.

Muito bem. Sporting-Estoril é daqueles jogos que lhe diz muito.
Ya [olha, outro], tem razão. Marquei um golo pelo Estoril, em Alvalade. Sabia?

Errrrrr, não.
No ano em que o Sporting foi campeão com o Malcolm Allison, em 1982. Aquilo era uma super-equipa: Meszaros, Manuel Fernandes, Jordão.

E o Estoril?
No banco, um grande, grande, grande senhor chamado Jimmy Hagan. Já morreu?

Ya.
A gente pensa que é novo e esquecemo-nos que os outros eram já muito mais velhos que nós. Lembro-me tão bem desse jogo. No treino de quinta-feira, senti um rasgão na perna. O Jimmy Hagan examinou-me a olho nu e disse-me para pôr gelo, gelo e mais gelo. Nunca mais treinei. No domingo, almocei com a equipa e fui para o Estádio José Alvalade. Cheguei lá e equipei-me a pedido do Jimmy Hagan. Subimos ao relvado. Ele mandou-me fazer uns exercícios. Isto, aquilo, etecetera. Às tantas, pára o treino e diz-me ‘já estás pronto para jogar’. E joguei. O tempo todo. Sem dores.

E marcou?
Sim, o 2-2. Pergunte ao Manuel Fernandes, ele lembra-se bem. Nos últimos minutos, o Jordão fez o 3-2. Nessa jornada, a equipa-sensação do Rio Ave, em quarto lugar, ganhou nas Antas.

E o Estoril, quem jogava lá?
Abrantes na baliza. Na defesa, Teixeirinha, Paris, José António e Fernando Santos.

O Fernando Santos?
Ya, esse mesmo, o nosso selecionador. Mande-lhe um abraço e força para o Mundial-2018. Ganhámos o Euro-2016 com muita categoria. Estou à espera de mais alegrias. Boa gente, o Fernando Santos. Cumpridor, humilde, trabalhador. Subimos de divisão, da 2.ª para a 1.ª, em 1981. O treinador era o José Torres, outro homem com quem aprendi muito. Era divertido treinar com ele. Juntava-se a nós e apanhava caneladas nos treinos. Ria-se imenso e queria estar no meio de nós, sem aquela separação entre treinador e jogador. Torres e Hagan, os melhores que vi. Adiante.

Bora.
Vitinha, Vieirinha, eu, Diamantino, José Abrantes e Hélio.

No banco, Hagan.
Hagan, grande Jimmy Hagan. O homem tinha uns 60-e-tal anos e puxava por nós com uma força. Antes dos treinos, ele dizia-me: ‘Manaca, tu vais à frente do pelotão para seres um exemplo’. Eu respondia-lhe que não queria ser um exemplo e ele insistia: ‘Tens de ser, todos os clubes tem um líder. Tu tens 34 anos, dá o exemplo.’ Ele tinha quase o dobro da minha idade e fazia aqueles exercícios na boa. Puxava por nós. Quer saber uma boa?

Ya.
Depois do 25 de Abril, as contas do presidente do Estoril ficaram congeladas e não havia com que pagar os salários aos jogadores. Um belo dia, antes do treino, o Hagan apareceu lá com uma mala, entrou no balneário, reuniu os jogadores e perguntou-nos um a um: ‘Tu, quanto é que te devem?’ Dizia-se um número, ele abria a mala, tirava dinheiro e entregava em mão. Isto é o Jimmy Hagan.

25 de Abril de 1974. Nesse dia, o Manaca estava retido em Espanha.
Verdade. Tínhamos sido eliminados pelo Magdeburgo, na RDA. A vez que estive mais perto de chegar a uma final europeia. Aquele era o nosso ano: o Sporting foi campeão, ganhou a Taça de Portugal e só foi travado nas meias-finais. Por manifesto azar, diga-se. O jogo de cá foi de sentido único para nós. Atacámos até mais não e só empatámos. O Dinis falha um penálti, o Bastos dá-lhes o golo num atraso de longe para o Damas e eu marquei o golo, de cabeça. Lá, perdemos 2-1 e não merecíamos sair daquela forma. Fomos melhores durante os 180 minutos.

Isso é dia 24.
Ya. Acaba o jogo e um dirigente do Sporting diz-nos que há uma revolução em Portugal. Pouco depois, um dirigente da Alemanha Democrática também nos diz, sem parar, revolution revolution revolution. Fomos dormir. Pouco. Quando acordámos, só podíamos viajar para Espanha. A nossa fronteira estava fechada. Esperámos, esperámos e esperámos perto de Elvas e só fomos para casa de autocarro. Tudo junto, umas sete horas de espera. Mais a viagem de autocarro. Chegámos completamente derrotados a casa.

E a ressaca da revolução.
Havia muita coisa por fazer. E outras mal feitas. Não se podia andar tranquilamente de carro, apanhávamos sempre filas imensas. Como morava em Loures, ia sempre para Lisboa e parava na Alameda das Linhas de Torres para a revista. Saía do carro e tal. Enfim.

Esse é também o ano do Di Stéfano no Sporting.
Sim, a pré-época do Di Stéfano.

Porquê tão pouco tempo?
Boa pergunta. Nem chegou a dois meses. O Di Stéfano tinha uma forma especial de falar com os jogadores e tinha uma ideia de jogo bastante própria. Fazia os jogadores acreditarem no seu potencial e até mais além. Mas nunca percebi a razão daquele desenlace. Se me perguntassem na altura ou agora, eu diria a mesma coisa: ‘O que foi que este homem fez de errado para ir embora um mês e meio depois de ser contratado?’ Ainda não entendi se prevaleceu a vontade do Di Stéfano ou dos dirigentes. Não foi a primeira nem a última vez que isso aconteceu.

Nessa altura, era a segunda experiência no Sporting. Como chegou a Alvalade?
Jogava no Sporting da Beira e o Sporting de Lisboa interessou-se por mim, mas só depois de Porto e Benfica. Naquele tempo era menor e não tinha qualquer hipótese de escolha. Esse pelouro pertencia aos meus pais. Ora bem, o meu pai era sportinguista e está a ver, não está? Acabou por juntar o útil ao agradável, até porque eu também era, e sou, do Sporting.

No Sporting, chegou, viu e venceu?
[atenção, o ya vai falhar] Nããããão. Cheguei numa altura em que o Sporting tinha acabado de ganhar a Taça das Taças e toda a defesa do Sporting estava a preparar-se para o Mundial-66.

Mas o Manaca não era avançado?
Em Moçambique jogava como interior. Marcava muitos golos e até ganhei duas Bolas de Prata como melhor marcador no Sporting da Beira.

Então recuou no terreno, foi?
Ya. Defesa-direito, esquerdo ou central. Eu queria era jogar. Diziam-me para fazer de defesa-direito e eu fazia. Foi assim que fui bicampeão nacional e venci quatro Taças de Portugal pelo Sporting.

Seis títulos pelo Sporting é dose. Porque é que saiu de Alvalade?
Saí três vezes e voltei outras três. Primeiro saí emprestado para a Sanjoanense. Depois saí porque tínhamos problemas internos de balneário. Esses problemas obrigavam-nos a repensar. Tocavam diretamente a nós, africanos. Nessa altura, o Sporting tinha uns oito ou nove africanos, de Moçambique, Angola. Na equipa principal jogavam eu, Dinis e Alhinho. Nós não aceitámos determinadas peripécias e decidimos sair, já que acabávamos o contrato no mesmo ano.

Que tipo de peripécias?
Ahhhhhhhhh! Não quero falar disso, por uma questão de consciência tranquila. Só lhe digo que nos sentíamos a mais. Então se estamos a mais, ficam vocês. Nunca nos arrependemos disso. Tínhamos a consciência tranquila do que estávamos a fazer. Não sou camaleão.

Leão, só?
É isso mesmo. Sou leão. E sou leão de juba negra, o maior leão de África. Mas esse clube aperta-me o coração. Já nessa altura. E agora também.

E o que aconteceu nessa época?
Com o consentimento de Dinis e Alhinho, tive um almoço com o dr. Sousa Marques, o diretor do departamento de futebol. Todos eles sabiam o que se estava a passar. E saímos os três. Eu para o Vitória de Setúbal, o Dinis e o Alhinho para o FC Porto.

E volta ao Sporting em 1977?
Sim, porque algumas pessoas, as das peripécias, já não estavam lá.

E porquê só um ano?
Os números não me agradaram.

Saiu para onde?
Vitória de Guimarães.

O Vitória oferecia-lhe mais que o Sporting?
Exatamente.

A sério?
Se eu dissesse os números, você acharia ridículo. Vou contar-lhe só isto: o Sporting tinha um director chamado Abraão Sorin. Certa vez acabei o meu contrato e ele: “Ó Manaca, o Sporting não tem nenhum contrato para apresentar. Ficas a ganhar o mesmo mais dois anos. Se quiseres, tudo bem. Se não quiseres, não jogas em lado nenhum.” Naquela época, não havia livre circulação de jogadores. Vou dar-lhe um caso: o Sochaux queria contratar-me e fez uma proposta. Como não havia cláusula de rescisão, eram os treinadores e dirigentes quem decidiam o nosso futuro. O Juca virou-se para mim e disse-me ‘não quero que tu saias’. Ponto.

Como é que resolveram essa situação?
Como é que acha que resolvi? Isto era como na época dos escravos. O que faziam os escravos?


As equipas portuguesas deixaram de contar com os africanos. Contratam meia dúzia de argentinos, meia dúzia de brasileiros e misturaram com croatas e sei lá. As equipas perderam identidade e deixaram de lado alguns princípios. Quando os quiserem recuperar, já será tarde.

Quais princípios?
Repare só: diz-se que o Sporting esteve em Angola para abrir academias, ok? Vão para lá e a primeira coisa que fazem questão de pedir é três milhões de dólares aos angolanos. Quer dizer, queriam que lhes pagassem? Mas o interesse é só dos angolanos? Onde é que o Sporting quer ir assim? Não vai a lado nenhum. O Sporting veio cá a Toronto e não me lembro de ter pedido três milhões de dólares aos canadianos. Estão a pensar o quê? Que Angola é a república da banana do passado? Que eu saiba, o Benfica também tem uma coisa dessas [academia] e não me lembro de ter pedido dinheiro. Que eu saiba…

Sporting vs Benfica. Qual foi o primeiro dérbi?
Foi para a Taça de Honra, no Restelo. Empate 1-1 e eu faço o golo, na sequência de um canto. O jogo foi a penáltis e ganhámos ao Benfica de Coluna, Eusébio. Mas também gosto de Sporting-Belenenses.

Então?
É uma das minhas melhores histórias. O Sporting ganha 1-0 no Restelo a um Belenenses forte. O prémio de vitória era de 300 escudos ou algo parecido. Não era grande coisa. A verdade é que o Sporting não jogou bem e, quando nós pensávamos que íamos receber o prémio, recebemos uma carta da direção do Sporting a dizer: “Exmos tátátátátá nome do fulano, devido ao resultado do jogo com o Belenenses, o prémio que deveriam receber reverte para uma multa pela falta de aplicação.”Olha só, belas épocas, hein! Agora tem graça contar, na época não teve graça nenhuma. 300 escudos era muito. E os maçaricos, como eu, é que pagavam. Os mais veteranos, não.

Falta de aplicação. Assim obriga-me a perguntar pelo autogolo em Guimarães?
Ya, já sabia. Vou levar com essa pergunta até ao fim da vida. Disparates, é tudo disparates. Olhe, quantos autogolos já se marcaram em Portugal esta época?

Contá-los é difícil.
Esta época, só. Olhe lá aquele do Porto com a Roma, por exemplo. Alguém fala disso?

Não.
Good. Porque é que não falam de outros autogolos, então? Porquê só desse?

Porque é o do título de 1979/80.
O do título? Nãããããã. Quem é campeão antes de acabar o campeonato? Ninguém. O Porto julgava-se campeão e pensava que ninguém iria roubar-lhe o tri. Se o Porto não empatasse com o Varzim, na jornada anterior, não estaríamos aqui a falar disso. O Porto não cumpriu o seu papel e depois quis lavar a roupa suja onde não existe. E eles falaram muita coisa.

Eles, quem?
Eles: Pinto da Costa e Pedroto. Estou muito acima deles para pactuar com essa canalhice e vergonha do futebol português. É triste alguém ter o desplante de tratar os outros de forma reles, com tanto desprezo.

Alguma vez os confrontou?
Para quê? Estou a ver o lance agora mesmo. É um cruzamento e eu salto, de costas para a baliza, entre o Manuel Fernandes e o Jordão. Insisto: de costas para a baliza. Ouça, é um autogolo como qualquer outro. O FC Porto quer é um bode expiatório. Eu próprio já fiz autogolos no Sporting.

Mais?
Ya. Um com o Hibernian, na Escócia, para a Taça UEFA. Perdemos 6-1, uma noite para esquecer. Fiz um autogolo. Um cruzamento, a bola tocou-me no peito e foi lá para dentro. O Damas nem a viu. É azar. Em Guimarães, também foi assim, azar. Não fiquei rico, não fiquei pobre, continuo a ser o que sou. Sou um defesa. Só que um autogolo de um preto está comprado, um autogolo de um branco é má sorte.

Na outra baliza, o Manaca também acertava.
Ya.

Como?
Livres diretos ou de cabeça. Ou de peito. Lembro-me de um golo com o peito, pelo Estoril. Ao Braga, na Amoreira. Lembrei-me agora mesmo, assim de repente. Foi engraçado falar e o lance aparecer-me na memória.

O Manaca marcou aos três grandes.
Ya. Até marquei dois golos no mesmo jogo ao Porto. Um foi de cabeça, em antecipação ao Rui. O outro de livre direto. Por falar nisso, estou a lembrar-me de um golo pelo Vitória. Ao Sporting, no Bonfim. Na baliza, o Damas. Como o conhecia bem, sabia as virtudes e defeitos nos lances de bola parada. Puxei a bola para o poste mais próximo e ele não defendeu.

Com tantos golos, como nunca foi à seleção?
Fui convocado uma vez. O Sporting recebeu um telegrama da federação e um dirigente do clube pediu-me para estar atento. Só que, nessa semana, dei uma entrevista. Naquele tempo, o Juca e o Pedroto eram os selecionadores. Acima deles, havia um comandante. Manuel da Luz Afonso. Acho.

Sim, o homem do Mundial-66.
Ya. Era o general lá do sítio [seleção], tinha mais boca como treinador do que como dirigente. Mandava em tudo. Eu dou a entrevista e digo que admitia muito mais o Juca ou o Pedroto a dizer-me o que quer que fosse a respeito de futebol do que ele, Manuel da Luz Afonso. Quer dizer, ele era um doutor. Os doutores não podem treinar a seleção, não é? O futebol é para indivíduos do futebol. Não é para doutores. A partir daí, fui banido. Os meus companheiros diziam-me sistematicamente para não falar daquela maneira porque nunca mais ia ser chamado. E então? Se me perguntaram a opinião, tenho de a dar. Eles ficaram torcidos, claro. E nunca mais me chamaram. Aliás, preferiam meter um médio a lateral-esquerdo do que a mim. Quando isso acontece, o futebol está virado do avesso.

E o Manaca como treinador?
Quase levei o Peniche à 1.a divisão.

O quê, o Peniche?
Ya. Acabámos esse campeonato da zona centro em segundo lugar, atrás da Académica, e fomos para a liguilha, juntamente com Penafiel, Chaves e Marítimo. Quem ganhasse o grupo, subia. O Peniche deu luta até ao fim e acabou em segundo, com os mesmos pontos do líder Penafiel. O problema foi perder 6-4 nos Barreiros a uma jornada do fim. Ainda ganhámos 4-1 em Chaves, com o segundo bis seguido do júnior Forbs, aquele que depois jogou no Sporting, mas nada feito.

Uyyyyy, quase sobe à 1.ª divisão com o Peniche. Tem outros momentos marcantes?
Joguei com o Pelé, um enorme jogador, único. Quando se fala mais de um jogador do que de outros, está tudo dito. Aquela fotografia foi tirada em Nova Iorque, num Cosmos vs Boston. Na minha equipa, estavam Eusébio, Simões, Nelson e Calado.

Qual foi o resultado?
O jogo foi equilibrado, o Eusébio estava do meu lado. O resultado? Não importa. [e ri-se]

Obrigado e boa noite, Manaca.
Já é tarde aí. Boa soneca

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