Great Scott #822: Primeiro negro insultado no futebol?
Walter Tull
Descubra as diferenças: em Novembro de 1937, Portugal ganha 2-1 à Espanha em Vigo ao mesmo tempo que estreia Espírito Santo, o primeiro negro a jogar pela selecção nacional. O homem já é uma figura pública do alto, também conhecido como pérola negra.
Oriundo de Angola, chegou a Portugal em 1936, com a missão complicada de substituir o goleador Vítor Silva. Felino e ágil, Espírito Santo encaixou no esquema do Benfica e depressa se percebeu a sua vocação para o desporto em geral e não só para o futebol. Em 1940, durante um treino do Benfica, a bola foi parar ao sítio onde outros treinavam atletismo. Despreocupado, saltou um obstáculo no meio do caminho e recuperou a bola perante a estupefacção geral. Tinha acabado de pular 1,70 metros em altura, algo que ninguém conseguira fazer até essa tarde. Afinal, tratava-se de um atleta de eleição, recordista do salto em altura (1,88, marca batida apenas em 1960, vinte anos depois), campeão nacional de comprimento e triplo-salto. Tudo isto aliado a um comportamento exemplar que sempre o distinguiu. Razões mais que suficientes para ser condecorado pelo Comité Olímpico Internacional em 1999 com o prémio “fair play”.
De volta ao futebol, Espírito Santo ficará para sempre ligado como o benfiquisra com mais golos num jogo oficial: nove nos 13-1 ao Casa Pia, a 5 de Dezembro de 1937. Para não deixar dúvidas, o grande Peyroteo, seu amigo em Angola, escreveu no seu livro de memórias: “Espírito Santo joga futebol muito melhor do que eu”.
Dizíamos, descubra as diferenças, a propósito do primeiro negro a estrear-se na selecção portuguesa em 1937. Só 41 anos depois, em 1978, é que a Inglaterra abre as portas a um negro (Viv Anderson). A mesma Inglaterra que no início do século XX, mais precisamente em 1918, chorou a morte do futebolista/tenente Walter Tull, durante a 1.ª Guerra Mundial, em França.
A 25 de Março, Tull, o primeiro oficial negro no exército britânico numa altura em que as leis eram explícitas e racistas (“nenhum negro ou pessoa de cor”), morreu em Favreuil, com um tiro no pescoço e outro no olho direito, e nunca mais o seu corpo foi resgatado apesar de algumas tentativas por parte dos homens do batalhão por ele liderado.
Nascido em Folkestone a 28 de Abril de 1888, Tull era filho de um carpinteiro dos Barbados e de uma empregada inglesa. Aos nove anos de idade, os seus pais morreram e foi recambiado para um orfanato, na companhia do irmão Edward, em Bethnal Green. Se Edward foi adoptado por uma família escocesa e mais tarde tornou-se dentista, Walter nunca mais saiu e faz-se com naturalidade jogador/capitão da equipa do orfanato.
Em 1908, com 20 anos de idade, ganha um lugar no Clapton FC. Menos de três meses depois, já é titular, ganha três troféus (a Taça Amadora da Federação Inglesa, a Taça Amadora de Londres e a Taça de Londres) e é o jogador da semana para o jornal Football Star, em Março de 1909. É aí que assina pelo Tottenham, onde se consagra como primeiro negro a marcar um golo na liga inglesa. O problema foi o sétimo jogo, em Bristol, onde os adeptos da casa insultam-no gravemente. Escuro é o impropério mais “simpático” e os jornalistas condenam este acto. Um deles diz que o ataque é cobarde e a linguagem é mais baixa que Billingsgate, numa alusão ao mercado do peixe em Bristol. Um outro escreve com alma e coração: “Deixem-me dizer-vos, ó hooligans de Bristol City, que Tull é tão limpo de cabeça e de método como qualquer homem branco que vos sirva de modelo no futebol profissional ou amador. Em habilidade, Tull é o melhor avançado da liga.”
O Tottenham afasta Tull com medo de futuras confusões nos jogos fora, iguais às de Bristol, mas Walter não se preocupa em jogar apenas nas reservas. Afinal, o orfanato dera-lhe uma bagagem para aguentar estes episódios sem sentido. Em Outubro de 1911, o Northampton Town contrata Tull e este marca uma época de sucesso (nove golos em 111 partidas), ao lado de Herbert Chapman, o treinador de equipa, mais tarde conhecido como o mestre da táctica pelos cinco títulos de campeão inglês obtidos no Arsenal dos anos 20.
Em 1914, o Rangers contacta Tull no sentido de lhe comprar passe. O avançado número 9 do Northampton aceita a proposta para viver em Glasgow, na mesma cidade que o irmão Edward. Tal nunca chega a acontecer porque rebenta a 1.ª Guerra Mundial e Walter Tull inscreve-se como soldado. O seu pedido é aceite, apesar do racismo vigente no exército inglês, e depressa sobe na hierarquia militar. Chega a segundo tenente, admirado por todos, e entra em seis grandes batalhas como líder do batalhão vencedor. Luta em França, na Escócia e em Itália. É nomeado oficial e volta a França, onde morre em pleno campo de batalha a 25 de Março pelas metralhadoras alemãs, em Pas De Calais.
Em Glasgow, três dias depois, o seu irmão Edward recebe uma carta do comandante de Walter: “O batalhão e a companhia perderam um oficial generoso e divertido; eu perdi um amigo.” Ao contrário dos adeptos do Bristol City, o exército inglês não distinguia os homens pela cor. Por essa razão, e muitas mais, o Comité Olímpico de Inglaterra fez um filme sobre a história de Walter Tull para sair nas salas de cinema em 2012, por ocasião dos Jogos Olímpicos de Londres. A cidade onde Tull experimentou a indiferença. A dele em relação ao medo do Tottenham e ao racismo dos outros.