Mommy cool

Et, Phone, Home 04/06/2020
Tovar FC

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Mommy cool

Antes de o ser, já o era. É a pescada, sim, bem sei, mas também é Orson Welles. Assim mesmo, sem esforço: antes de o ser, já o era. É o Orson Welles, um génio à sua imagem, do seu tamanho. Ou não fosse autor de duas obras inesquecíveis como “A Guerra dos Mundos” e “O Mundo a Seus Pés”. Na semana em que se comemora o 100.º aniversário do seu nascimento (6 Maio 1915), lembro o bom gosto na cidade escolhida para descansar em paz: Ronda, ali a 100 km de Málaga. É um cenário magnífico, selvagem, e também fonte de inspiração para o novelista norte-americano Ernest Hewingway. Na semana em que se comemora o centenário, lembro o seu estilo dado a excessos sem deixar opiniões nem comentários pela metade. Sem poupar adjectivos nem comparações. Disso mesmo se dá conta num recente livro sobre conversas amenas e descontraídas, gravadas pelo amigo Henry Jaglom (outro realizador), a quem se sente à vontade para coscuvilhar, entre o homofóbico, o cáustico, o romântico e o racista. Sem ligar a nomes nem a caras. A ele diz-lhe que não suporta olhar para Bette Davis, que James Stewart é um “mau actor”, que Spencer Tracy é “odioso”, que Laurence Olivier é “simplesmente estúpido” e que Charlie Chaplin é “arrogante”. E a aversão a Alfred Hitchcock? “Nunca percebi o culto à volta dele. Em especial
[o dos] filmes americanos do final: egocentrismo e preguiça. Vi uma destas noites um dos piores filmes de sempre [Janela Indiscreta]: insensibilidade completa ao que uma história sobre voyeurismo pode ser. E digo-te o que foi surpreendente – descobrir que o Jimmy Stewart pode ser um mau actor; até a Grace Kelly é melhor que o Jimmy, que se esforça demais.” Puummmbbbbaaaaa. Na semana em que se exalta o nascimento de um dos maiores ícones de sempre, capaz de agitar multidões como a transmissão radiofónica d’“A Guerra dos Mundos” provoca em 1938, lembro um episódio contado pela minha mãe há muuuuito tempo. É ela pequena e passa férias com o pai (meu avô, portanto) nas ilhas espanholas (Palma de Maiorca?). No aeroporto, à espera do voo de ligação, vislumbra-se ali à beira Orson Welles, vestido de preto. O meu avô (pai da minha mãe, portanto) pedelhe um autógrafo, e ela, pequenina, sem ter idade ainda para ver os filmes do mestre nem saber o que significa partilhar aquele espaço com o gigante, lembra-se da luz, da luminosidade do dia, como as reminiscências são estranhas, reduzidas a sinestesias… O cineasta olha para eles com uma certa autoridade (soberba?) e, do alto do seu imenso poder, lá assina umas palavras. Que é feito desse papel que o meu avô dá a guardar à minha mãe? Perguntas bem. A minha mãe daria hoje bom dinheiro num leilão, isso é mais que garantido. Perdeu-se num desvio da vida, no meio das mudanças, aos caídos num caixote. Ou então está em Ronda à nossa espera.

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