Eder. “Só guardo golos especiais na memória, como o do Figo à Inglaterra”
Eder rules. O herói do Euro-2016. Depende da perspectiva. Herói para nós, vilão para a França. Passam-se dois anos e ninguém mais ouve falar de Eder. Pelos bons motivos, digo. Uma época mais no Lille e é afastado da equipa principal durante a pré-época numa limpeza de balneário a que está associado o nome do novo treinador Marcelo Bielsa.
De repente, Eder em Moscovo a assinar pelo Lokomotiv. Um golo de cabeça ao Rostov (1-0 aos 90’+3), outro ao Dínamo Moscovo (3-0 num jogo em que Manuel Fernandes também marca) e mais um ao Tosno (3-1) certificam o Lokomotiv à frente do campeonato até à penúltima jornada, altura em que há a festa do título de campeão. O grito está entalado na garganta desde 2004 e quem o solta é Eder. Óbvio. Entra aos 79 minutos, marca aos 87′. Um simples toque de bola na área implica uma infinita alegria para o Lokomotiv. Mais uma vez, o herói é Eder.
Na ressaca do título de campeão russo, ainda mal refeito de toda uma festa inesquecível, cruzamo-nos com Eder na última semana de treinos em Moscovo, dentro do complexo desportivo do Lokomotiv, na parte oeste da capital russa – por sinal, a mais rica, cheia de datchas envoltas em cercas, a céu aberto. A ideia inicial é entrevistar o treinador Yuri Semin. Dos 13 títulos do Lokomotiv, 11 pertencem-lhe. Dos três campeonatos conquistados, todos têm o selo de qualidade de Yuri: 2002, 2004 e 2018. O homem tem 70 anos e convida-nos para sentar num banco de jardim, atrás de uma das balizas.
Quando a entrevista acaba, os jogadores saem do treino. Eder, com o ar mais descomprometido deste mundo, surpreende-se com a presença de um português. Aperta-nos a mão, senta-se connosco e trocamos galhardetes sobre a rapidez da entrevista. Dez minutos. Onze, vá. Se o futebol é de 11, a entrevista também é 11. Siiiiiiiiga. Porque Eder tem sair daqui a nada para almoçar com a mulher e porque eu tenho de sair daqui a nada para almoçar com o Yuri, na cantina do Lokomotiv. Acto contínuo, Eder parte-se a rir.
Entrevistaste agora o treinador?
Ya.
E ele disse que eu falo russo?
Ya.
Ahahahah, que personagem.
Já o conhecias?
Só de ouvir falar, nos tempos do Dínamo Kiev [2008-09].
E que tal?
Boa gente, muito boa gente. Sério, comprometido com o trabalho.
Como é que vieste aqui parar?
Foi um bocado estranho.
Então?
Estava para sair do Lille e o clube até recebeu algumas propostas. Só que acabaram por demorar a fazer a transferência e meteram-me à parte. Nunca falei com o Bielsa nem nunca o vi. Treinava à parte, eu e outros companheiros. Apareceu o Lokomotiv e vim.
Que tal?
Complicado, o início. Afinal de contas, não fiz a pré-época como deve ser e cheguei aqui à sétima jornada do campeonato. Ainda por cima, um país novo. Tive foi a sorte de encontrar o Manuel Fernandes, que me enquadrou perfeitamente na realidade do clube, da cidade e do país. Já para não falar, na sua qualidade como jogador. Ele é incrível.
Qual era a tua ideia da Rússia?
Antes de vir para cá, tinha algumas preocupações sobre a segurança e não sabia se o povo era acolhedor. Quando cheguei aqui, fiquei descansado num instante. A cultura é diferente, claro, mas positiva. As pessoas respeitam-te e estou a adorar. Moscovo é uma cidade muito bonita, cheia de história. Quando os meus amigos me visitam, também eles ficam espantados com a grandeza da cidade e a sua beleza, seja os prédios, o metro, as ruas. É tudo feito com estilo. O único problema daqui é o trânsito.
Nem me fales, demorei uma hora e 40 do aeroporto para o hotel.
Já demorei mais de duas horas, imagina. Ahahahahahah. É uma cidade tão grande que o trânsito tem de ser um problema. Há muitas pessoas, há muitos carros, há muito tudo. Mas Moscovo é uma cidade imperial, linda. Agora, Portugal é Portugal. Sabes, dás mais valor a Portugal quando estás fora. Dás mais valor à comida, às pessoas, à paisagem. A minha mulher é belga e derrete-se toda quando vai a Portugal pelas pessoas. O povo português é muito acolhedor, sem dúvida.
E a Rússia, futebolisticamente falando?
É puxado, aqui o campeonato é puxado. Há muitas equipas a lutar pelo título e isso vê-se na história recente, com quatro campeões nos últimos quatro anos [Zenit, CSKA, Spartak e Lokomotiv]. Depois, as equipas do meio da tabela jogam muito fechadas e é, essencialmente, um futebol muito físico. Tens de estar no top para conseguir atingir os objectivos.
E tu conseguiste o teu objectivo, o golo do título.
Ahahahahah, esse foi bom. Especialmente porque precisávamos de dar essa alegria aos adeptos, sem ganhar o campeonato há 14 anos, e porque era o último jogo em casa. Queríamos definir o título nesse dia e sabíamos da obrigação da vitória. Calhou-me a mim, foi uma alegria imensa.
Há dois anos, marcaste outro golo decisivo, à França. Os teus amigos franceses do Lille deram-te os parabéns?
Ahahahahahah, todos, deram todos os parabéns. Agora, só não sei com que emoção, ahahahahah. Escreveram-me a dar os parabéns, de facto. Se foi cortesia ou se foi mesmo por prazer é que eu não sei, ahahahahah. Havia jogadores do Lille com quem me dava bastante bem e, claro, um deles era o Ronny Lopes. O Ronny estava a ver o jogo na televisão e ficou maluco. Esse, posso garantir. A emoção da sua mensagem era enorme, ahahahah.
Imagino a quantidade de mensagens quando chegaste ao balneário.
Não imaginas. Foi incrível e acabou por ser impossível responder a toda a gente.
Qual foi o primeiro jogo de futebol ao vivo?
Foi um Académica, espera aí, deixa ver. Acho que foi Marítimo.
E gostavas de futebol?
Sempre. Via tudo o que podia pela televisão e jogava todos os dias na instituição [Lar Girassol, em Coimbra].
O teu caminho é digno de um filme. Sentes isso?
Dentro de uma história, há várias histórias. Com altos e baixos. O que é normal. Poderia ter sido diferente, mas não seria a mesma coisa. É um orgulho olhar para trás e ver tudo aquilo que se conseguiu. E mais agora que vou ser pai. Vou fazer tudo para continuar com mais consistência. Quero deixar história feita para a criança que aí vem e para os filhos que hão-de vir, ahahahahah.
Por falar em história, estreaste-te na 1.ª divisão pela Académica. Qual a sensação?
A melhor possível. É um sentimento muito próprio, sabes? Crescer em Coimbra, ir ao Municipal ver um ou outro e depois vestir aquela camisola, a camisola da terra. É um orgulho.
Jogaste aquela final da Taça de Portugal com o Sporting, em 2012?
Aí não, nem fui ao Jamor.
Então?
[Eder esboça um sorriso] Estava com um processo discipinar em cima e fiquei a treinar à parte durante toda a segunda volta do campeonato, ao mesmo tempo que estava a recuperar de uma lesão.
Chi-ça.
Havia jogadores da Académica, como Adrien, Diogo Valente e Hélder Cabral, que insistiram que estivesse na festa com eles, no Jamor. Mas fiquei a ver a final pela televisão e foi uma alegria imensa aquele 1-0 do Marinho.
E depois, foste para onde?
Tive a saída atribulada da Académica e assinei pelo Braga. A primeira época correu-me bem, só foi pena a lesão que me deitou abaixo porque aconteceu numa altura em que se aspiravam outros voos. Paciência. Recuperei da lesão e voltei a jogar com alegria. E cheguei à selecção. Estimo muito o Braga, ainda hoje acompanho os seus jogos. Sou um guerreiro do Minho.
Foste treinado pelo Conceição no Braga?
E não só. Fui pelo Peseiro, com quem ainda falo, pelo Jesualdo, pelo Jorge Paixão, pelo Conceição. E houve mais, não quero esquecer-me de ninguém. Mas sim, o Conceição foi um deles. E não me espanta o título de campeão no Porto. Ele é um treinador competitivo, que joga para ganhar. Tudo à volta dele é a vitória. Além disso, é muito focado no que faz e está sempre em cima dos jogadores.
Então?
É um treinador que te diz tudo na cara, seja onde for: no campo, no balneário, na rua. E, curioso, acabas por entrar nesse ciclo do ganhar, ganhar, ganhar. Acabas por ir buscar essa agressividade do Conceição. Às vezes, via-me a cobrar mais de um companheiro durante o jogo e só depois é que pensava ‘estou a ser como o mister’. Ahahahah.
E então como é que se perde aquela final da Taça de Portugal com o Sporting, em 2015?
Pois, boa pergunta. Fizemos uma exibição espectacular, só que a forma como sofremos o primeiro golo foi um choque, como um murro no estômago. O Sporting ainda empata e leva para prolongamento, depois penáltis. Não sei como aconteceu, não sei mesmo. Fiquei foi feliz com a vitória do Braga no ano seguinte. Foi muito bom para libertar os fantasmas.
Ainda te lembras do teu primeiro golo?
(Eder puxa pela cabeça] Nãããã, deve ter sido no Oliveira do Hospital. Mas não, não sou bom nisso. É nisso e na troca de camisola e tal, não tenho esse chip, pronto.
Mas fazes colecção de camisolas de futebol?
Só de amigos.
Com quem?
Olha, Adrien e William. Não tenho aquela coisa de chegar ao pé de alguém desconhecido e pedir uma camisola. Prefiro ficar com uma camisola de um amigo, de quem respeito e considero.
E camisolas tuas?
Ahhhhhh aí tenho a da final do Euro-2016. Aliás, até tenho duas da final.
E a do Lokomotiv no jogo do título?
Também tenho. A camisola e a bola do golo.
Eischhhh, grande pormenor.
Não fui eu que me lembrei, foi um apanha-bolas que me entregou a bola no final do jogo.
Repito-me: eischhhhh, grande pormenor.
Podes crer, nunca tinha pensado em ficar com a bola. Ainda bem, duas recordações.
Agora só se vai falar do Mundial. Tens algum golo histórico em mente?
Nunca fui disso, sabes? Não tenho essa coisa de guardar na memória. Só casos especiais.
Tais como?
O golo do Figo à Inglaterra.
Euro-2000.
Pois [Eder começa a falar com as mãos como que a ensaiar a jogada]. Ele rematou, a bola passou por entre as pernas de um defesa e entrou ali [Eder aponta para o ângulo da baliza à nossa frente]. E também me lembro de um golo de cabeça do João Pinto.
É o 2-2 à Inglaterra.
No mesmo jogo, não é? Tinha essa ideia.
Ya.
G’anda golo. Tudo: a jogada e o cabeceamento.