Great Scott #82: Em que dia rebenta o caso Paula n’Os Donos da Bola (SIC)?
2 Maio 1997
Tenham cuidado, muito cuidado: o caso Paula é um marco histórico na selecção portuguesa. E até da própria televisão nacional. Toda aquela embrulhada não tem ponta por onde se pegue, é uma salganhada pegada de vicíos, enganos e contradições mil. Cabe na cabeça de alguém um grupo de conceituados jogadores ser apanhado em nítido fora-de-jogo, por uma protistuta brasileira, ainda por cima de seu nome próprio Angélica, durante o estágio para o jogo decisivo rumo ao Euro-96? Faz sentido um clube da dimensão do Real Madrid aproveitar-se deste filme sexual de terror para despachar Secretário sem dar cavaco? Tem lógica alguém no seu perfeito juízo dizer “assistimos pela primeira vez na história do homem a uma tentativa de homicídio por meios audiovisuais”? Pois é, seja bem-vindo ao caso Paula, uma espécie de mundo paralelo à realidade.
A reportagem vai para o ar no célebre 2 Maio 1997, com base em depoimentos de intervenientes directos e indirectos dos acontecimentos da noite anterior ao Portugal-Irlanda de qualificação para o Euro-96, em Novembro 1995. A SIC entrevista uma prostituta brasileira chamada Angélica Cristina Ribeiro, apresentada com o nome fictício de Paula. O pingue-pongue de perguntas e respostas realça um bacanal dentro do Hotel Atlantic Garden, onde a selecção estagia. Sem papas na língua, Paula conta tudo. Desde o consumo de haxixe por parte dos jogadores até agressões físicas a algumas das prostitutas na parte final do encontro. O caso não é novo. Ou é para quem não lê o jornal “O Semanário” que conta a história toda (atenção, sem os nomes dos intervenientes) logo a seguir à qualificação de Portugal para o Euro-96. Ninguém segue o trilho da notícia. Pelo menos, no imediato.
Jorge Schnitzer, editor do programa “Os Donos da Bola”, agarra-se à história como gato a bofe e o resultado é um programa fora da caixa, com a tal entrevista à Paula, que fora agredida pelos jogadores, ao ponto de ter sido hospitalizada e até sujeita a uma operação plástica. No meio desse relato, Paula aponta o dedo acusador ao adjunto Joaquim Teixeira (como recrutador das prostitutas), ao seleccionador António Oliveira (como padrinho de toda a operação) e aos jogadores Secretário, Fernando Couto e Vítor Baía.
Com estes ingredientes, o programa de sexta-feira à noite atinge níveis de audiência bastante elevados, nunca vistos e jamais alcançados, na linha do milhão e duzentas mil pessoas. É um recorde nacional. Lá dentro, no estúdio, trocam-se galhardetes entre Pôncio Monteiro e Gaspar Ramos: o representante do FC Porto chama parvo ao chefe de departamento de futebol do Benfica. O editor do programa Jorge Schnitzer e o convidado-especial Avelino Ferreira Torres também dividem o estúdio com os outros protagonistas. Às tantas, o telefone toca. É José Carlos Esteves, médico do FC Porto, a dar conta do internamento hospitalar de António Oliveira, derivado de stress provocado pela reportagem. A isto, acrescenta esta declaração: “Assistimos pela primeira vez na história do homem a uma tentativa de homicídio por meios audiovisuais, quase concretizada.”
Na sequência do programa, o presidente da República (Jorge Sampaio) ordena uma investigação profunda e há quem vá para os tribunais contra a SIC. Como Secretário, por exemplo. Vítima de humilhação pública com insinuações de natureza sexual por parte de Paula, o lateral-direito do Real Madrid avança com uma queixa-crime e pede 250 mil euros. Joaquim Teixeira diz-se ofendido na sua dignidade e bom-nome, bem como ter sido vítima de prejuízos de natureza material, psicológica, familiar e profissional. Exige 300 mil euros. Já António Oliveira atira-se à SIC com um processo judicial a troco de 500 mil euros de indemnização. O caso só se resolve em 2000 e a SIC é obrigada a desembolsar 25 mil euros.
Destes três, só Oliveira não sai chamuscado, por assim dizer. Secretário é deixado ao abandono no Real Madrid, para onde se transfere depois do Euro-96. Diz o seu empresário, Manuel Barbosa: “Quinze dias depois da reportagem, fui contactado por alguém do Real Madrid e queriam prescindir dos serviços do jogador. Como a notícia correu por toda a Espanha, a imagem dele ficou denegrida. Secretário deixou o Real Madrid única e exclusivamente por conta dessa reportagem. Sem dúvida alguma.”
E explica tintim por tintim. “Além de perder elevadas somas monetárias pelo resto do contrato por cumprir, veio ganhar duas vezes menos para o FC Porto.” O próprio Pinto da Costa, presidente do FC Porto, confirma esta tese. “A reportagem causou danos gravíssimos ao jogador, quer a nível pessoal, quer a nível profissional. Não tenho dúvidas que se não fosse isso, o Secretário teria cumprido contrato com o Real Madrid.” E Joaquim Teixeira? Deixa de ser adjunto do FC Porto no final da época 1997-98 e passa a ter sérias dificuldades em encontrar colocação noutro clube em Portugal e é obrigado a emigrar (Angola e Roménia). “Esse programa estragou toda a planificação futura de uma vida”, desabafa Joaquim Teixeira.
O programa “Os Donos da Bola”, esse, fecha as portas a 12 Março 1999, de forma repentina e definitiva. A decisão é anunciada através de um lacónico comunicado de seis linhas, assinado pelo director da estação (Emídio Rangel) e enviado à agência Lusa. A direcção de informação da SIC justifica a medida com “as situações equívocas lamentáveis” geradas na sequência de “um processo de eventual reformulação e reformatação do programa” em curso.
Tudo se terá precipitado na última edição de “Os Donos da Bola”, quando se apresenta uma reportagem sobre duas viagens de José Eduardo Moniz, ex-director de informação e programas da RTP, ao estrangeiro, alegadamente pagas pela Olivedesportos – a empresa detentora do exclusivo das transmissões televisivas do futebol em Portugal. A reportagem merece várias críticas por parte dos três comentadores-residentes – Leonor Pinhão (Benfica), Eduardo Barroso (Sporting) e António Tavares Teles (FC Porto). Tal facto desagrada em muito os responsáveis do programa e decide-se por uma reformulação do painel.
Com este objectivo, Emídio Rangel convida três novos comentadores para o programa, de uma semana para a outra: Leonardo Azevedo (FC Porto), Cinha Jardim (Benfica) e Sérgio Abrantes Mendes (Sporting). Está definida a táctica, vamos a jogo? Not so fast. O jornal “A Bola”, na edição de quinta-feira (véspera do programa da SIC), noticia as alterações no painel na primeira página, antes de a SIC avisar Eduardo Barroso e António Tavares Teles das suas saídas. Apenas Leonor Pinhão, jornalista d’A Bola, fora informada da sua substituição. Esta situação leva a uma reacção intempestiva de Eduardo Barroso, “chocado” por ninguém da SIC lhe ter comunicado a decisão de mudar o painel. Eduardo Barroso solicita então uma reunião com Rangel e é precisamente na sequência desta que o director da SIC toma a decisão de suspender definitivamente o programa.