Ivkovic. “Nunca disse que sabia como é que o Geraldão marcava os livres, foi tudo uma mentira pegada”
Parabéns a você, Ivkovic. É muito jogo, 60 anos de idade. Certamente, o único guarda-redes a ganhar dinheiro de Maradona com um penálti defendido. Certamente, o guarda-redes com mais golos sofridos em Portugal antes de chegar cá, negociado por Sousa Cintra para o Sporting, em 1989.
Antes, Ivo sofrera três golos de Oliveira num Sporting 3:0 Dínamo Zagreb (1982), dois do Carlos Manuel num Benfica 2:0 Estrela Vermelha (1984) e ainda quatro entre bis de Sealy e Cascavel num Sporting 4:0 Tirol (1987). Ao todo, nove. Craque. Até no uso da palavra.
Boa tarde Ivkovic, daqui Rui Miguel Tovar, do i.
Estás bom, pá? Há quanto tempo [o i falara com ele em Setembro do ano passado, a propósito do tal desempate de penáltis em San Paolo, entre Nápoles e Sporting, para a Taça UEFA]. Pensei que estivesses amuado comigo.
Não, nada disso. Desta vez, telefono-lhe para uma entrevista de carreira.
É pá, isso vai custar-te tempo e dinheiro. Prepara-te.
Já interiorizei essa ideia. Como é que vieste parar cá a Portugal?
Ui, essa história. O meu passe pertencia ao Tirol Innsbruck, da 1.ª divisão austríaca, e o presidente deles era o dono dos famosos cristais Swarovski. Não me queria deixar sair. Só por cem mil dólares. O Sousa Cintra, recém-eleito presidente do Sporting, não lhe dava isso. Houve ali umas negociações, para ali, para cá, uns telefonemas curtos e outros prolongados, até que eu resolvi intervir e dei 10 mil dólares para completar o preço pedido pelo gajo do Tirol e arrepiei caminho. Meti-me num jacto do Sousa Cintra e fui logo para Lisboa, onde fui apresentado aos adeptos e fiz o reconhecimento ao estádio.
Reconhecimento?
Sim, já lá tinha estado em 1987, durante uma eliminatória europeia [a primeira ronda da Taça das Taças, entre o Sporting e o Tirol]. Levámos 4-0 e até lembro dos golos que sofri: dois do Tony Sealy e outros dois do Paulinho Cascavel, o primeiro de penálti. Lá, em Innsbruck, estivemos a ganhar 2-0 e ganhámos 4-2 mas o Sealy e o Paulinho voltaram a marcar.
Esses dois jogaram consigo no Sporting?
Não, o Sealy já não. O Paulinho, sim. Até foi ele que marcou o primeiro golo do Sporting comigo na baliza [3-2 ao V. Guimarães]. Nessa época [89-90], o Sporting reforçou-se com o Fernando Gomes e os brasileiros Luisinho, defesa-central de classe mundial, Marlon Brandão, do Estrela da Amadora e Valtinho, do Sp. Braga, mais a subida de alguns juniores como Amaral e Figo.
Na altura, já era internacional jugoslavo?
Sim, estreei-me em 1983, com 23 anos, e no ano seguinte fui aos Jogos Olímpicos de Los Angeles, onde sofri um golo do Roger Milla [Jugoslávia-Camarões, 2-1] e trouxe a medalha de bronze para casa. Os guarda-redes jugoslavos eram eu e o Pudar, que mais tarde foi jogar para o Boavista, lembras-te?
Sim, sim.
A mesma dupla que já tinha ido ao Mundial sub-20 em 1979, no Japão. E foi aí que me cruzei com Maradona pela primeira vez.
Num jogo de futebol?
Sim, até te digo a cidade: Omiya. Perdemos 1-0 mas o golo não foi do Maradona. Ele bem que tentou mas quem me enganou foi um outro tipo [Osvaldo Escudero, que nunca jogou pela selecção A da Argentina].
E como…
Sabes como é que o Maradona me queria enganar? A marcar livres em jeito, com três dedos [com a parte exterior do pé]. Coitado! O artista! Mas alguma vez eu ia sofrer golos dessa maneira? Nááá. Da baliza, fiz-lhe logo a sinalética como quem diz ‘assim não’. Ele riu-se. Sempre foi boa onda.
Mesmo quando defendias os penáltis dele?
Iá. Quer dizer, nessa coisa dos penáltis, ele ficou atarantado e demorou a recuperar o sorriso, mas pronto recuperou, isso é que é importante.
Isso aconteceu duas vezes, não foi?
No Sporting-Nápoles em Setembro de 1989 e no Argentina-Jugoslávia em 1990. No primeiro, para a Taça UEFA, fui até ele e apostei 100 dólares.
Esse jogo foi há 20 anos. Há quatro, estiveste noutro Mundial, este na Alemanha, como treinador de guarda-redes da Croácia. Quais foram as principal diferenças que sentiste de 1990 para 2006?
Em 1990, o pós-jogo era fantástico. Por exemplo, na estreia, perdemos com a RFA por 4-1. Deixei soltar uma bola fácil que resultou em golo, mas rapidamente ultrapassei esse erro. Eu e toda a selecção. Sabes porquê? Entre o balneário e o autocarro, havia uma espécie de zona mista para os jogadores e os alemães estavam lá a tomar cerveja. Todos eles, o Matthäus, o Brehme, o Völler, o Klinsmann. Eu entrei lá e comecei a falar com eles. Foi um espectáculo, porque saí de lá a pensar que tinha ganho o jogo. E não toquei em cerveja. O simples convívio com eles fez-me ver que nem tudo estava acabado. Esse sentimento estendeu-se ao resto do plantel. Por isso, chegámos aos quartos-de-final, depois de eliminar a Espanha nos oitavos. E aí sim, foi engraçado ver a diferença entre alemães e espanhóis. Porque os alemães beberam cerveja, falaram e divertiram-se. Os espanhóis, não. Uns arrogantes, sempre de cara fechada,
Mas eles tinham perdido.
Sim, com dois golos do Stojkovic [2-1, após prolongamento], mas nós também perdemos com a Argentina, nos quartos-de-final, e fomos à zona mista. Era uma forma de descontrair. Mas também te digo, espanhóis e argentinos estiveram bem uns para os outros. Se a Espanha foi eliminada nessa tarde gloriosa da Jugoslávia e mostrou-se arrogante, a Argentina fez o mesmo e olha lá que tinha ganho nos penáltis. Sem merecer nada, mas isso é outra história. Ainda bem que esse Mundial foi para a RFA, pela boa disposição e fair-play dos jogadores e, já agora, pelo futebol prático e ofensivo.
Quando chegou do Mundial-90, apresentou-se no Sporting
Sim, já sei o que vais dizer. E estive presente naquela série de 11 vitórias seguidas no início do campeonato. À 12.ª jornada, não joguei, porque estava na selecção, nem o Luisinho, e empatámos 2-2 em Chaves. Mas a minha ausência nada tem a ver com o resultado. Se eu estivesse lá, e não o Sérgio [habitual suplente], o resultado seria o mesmo. A vida é assim, não há volta a dar.
E havia volta a dar três semanas depois, naquele FC Porto-Sporting?
É pá, essa conversa não. Já sei o que vais dizer. Outra vez. É aquele história do Geraldão, não é? Bolas, eu não disse que sabia como é que ele marcava os livres. Simplesmente disse ao jornalista, já não sei a que jornal pertencia, que o Geraldão marcava os livres sempre da mesma maneira, mas que isso não implicava que soubesse o efeito da bola ou a força do remate. Mas pronto, o tal jornal publicou na primeira página, em letras gigantescas, que eu sabia como é que o Geraldão marcava os livres.
E aos cinco minutos, golo do FC Porto.
Do Geraldão. Um tiraço daqueles que nem vi a bola viajar. Só a vi no fundo da baliza. Mas isso foi um equívoco. Compreendam: eu nunca disse aquilo que o jornal noticiou. Foi tudo uma mentira pegada.
Essa foi a época em que o Benfica ganhou o campeonato nas Antas no tal jogo em que teve de se equipar no corredor pelo intenso cheiro a bagaço dentro do balneário e resolvido com dois golos de César Brito (2-0). Alguma vez sentiste esse cheiro a bagaço nas Antas?
Sempre.
Como?
Sempre. Mas julgas que o FC Porto só fez isso para aquele jogo específico com o Benfica? Isso era sistemático. É para perturbar, nada mais. Não é nenhum atentado à vida humana nem nada disso. Quantas vezes entrei ali e senti coisas estranhas! Se viesses cá à Croácia, mostrava-te umas coisas bem piores. Aquilo faz parte da força do FC Porto. É a intimidação. Para eles, é tudo um jogo. Do princípio ao fim. Por isso, é que ganham quase sempre tudo. Pelos jogadores, pela estrutura, pelo futebol, pelo presidente. Mas quem é que não gostaria de ter um presidente como o Pinto da Costa? Por favooor. Dizem mal dele mas, no fundo, no fundo, até desejavam um líder igual ou parecido na forma de cativar tudo e todos através do discurso, da acção, do método.
No Sporting, não havia isso?
É pá, há diferenças. Nós sempre tivemos boas equipas mas faltava-nos sempre um bocadinho para estar ali ao nível de FC Porto. Estive lá quatro anos e não ganhei nada. E olha que os plantéis sempre foram sensacionais.
E os treinadores também?
Sim, Marinho Peres levou-nos às meias-finais da Taça UEFA. E o Bobby Robson era o Bobby Robson. Ainda me lembro dele nos primeiros tempos do Sporting… Maluco com o Amaral [extremo, produto da geração de ouro, campeão mundial em Riade-89]. Para o Robson, naqueles treinos de pré-época, era o Amaral e mais dez. E o miúdo era um fenómeno. Fazia coisas com a bola que mais ninguém fazia. Mas o Amaral rendia o quê nos jogos? Só 20 ou 30 por cento daquele potencial que realmente tinha. Foi uma pena, mas aquilo era psicológico. Ele entrava em campo e a magia desaparecia. Outro que jogava muito era o Peixe, mas também não tinha cabeça para aquilo. Era bom miúdo e bom jogador mas às vezes dispersava-se. E nessa época 1992-93 chegou o Porfírio. Era o mais maluco de todos. Pedia-me para sair connosco, ao Kremlin. Ouve, e não me largava. Quando o ouvia lá ao fundo a chamar-me repetidamente Ivo, Ivo, já sabia que vinha aí malandrice.
Essa foi a sua última época em Alvalade, verdade?
Sim, no Verão de 1993. O Verão quente, em que o Sporting contrata o Pacheco e o Paulo Sousa e quase consegue o João Vieira Pinto. Na época anterior, tinha feito 32 jogos de campeonato em 34 possíveis. Por isso, fiquei surpreso com a dispensa do Robson. O Sousa Cintra foi buscar o Lemajic e o Costinha ao Boavista e eu fui treinar à experiência ao Estoril. Só fiquei lá por obra e graça do Fernando Santos, que me convidou para ficar. Depois, ainda acabei essa época no V. Setúbal.
in jornal i, 11 Ago 2010