Futre. “Fazia treino individual com o Maldini, passá-lo era o cabo das tormentas’

Mais Quem Te Viu E Quem TV 08/13/2020
Tovar FC

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Futre. “Fazia treino individual com o Maldini, passá-lo era o cabo das tormentas’

Paulo. Lo marcan dos, pisa la pelota. Jorge. Arranca por la derecha el genio del futbol mundial e deja el tercero. Dos Santos. Genio, genio, genio, ta-ta-ta-ta-ta-ta-ta. Futre. Gooooooooolo. Goooooooolo. Quiero llorar. Dios santos. Viva el futbol. Golazo.

Domingo, 21 Novembro 1993. Serie A, 12.ª jornada. Em Reggio Emilia, há um Reggiana vs Cremonese. Interesse abaixo de zero. Ou não. Com o número 10, Futre. Estreia absoluta de um jogador com carreira feita em Portugal (Sporting + Porto), Espanha (Atlético Madrid) e França (Marselha). Toma lá Itália. Quatro dias depois do adeus ao Mundial-94, com aquele golo de Dino Baggio, eis Futre numa outra galáxia. Que comece a aventura.

Taffarel, 1.

Uma pessoa fantástica. Foi quem me ajudou mais nos primeiros três dias em Itália, como intérprete.

E no campo?

Tinha muito calma. Com um guarda-redes assim, ganhas logo uma confiança tremenda. Valeu a pena conhecê-lo, nota 10. E olha, Ruizinho, foi visitar-me várias vezes ao hospital. E depois à minha casa. Nota 11.

Só mais uma coisa: o suplente do Taffarel era o Antonioli. Tecnicamente era do outro mundo, mas nunca atingiu o nível esperado.

Ai foi?

Siiiiiim. Ruizinho, o Antonioli era top top top. Guarda-redes de selecção, sem dúvida. Aliás, ele chegou ao Milan e era titular. Só que lesionou-se com gravidade num Juventus-Milan. Entrou o Rossi, que defendeu um penálti do Vialli e segurou o 1-0 do Simone. Depois só deu Rossi, ao ponto de ter batido o recorde de imbatibilidade do futebol italiano.

Parlato, 2.

Central, tal como o Zanutta.

Pois, é o cliente seguinte: Zanutta, 3.

Bom de bola, veterano, Sabia jogar de cor e salteado.

Accardi, 4.

Siciliano, um dos meus melhores amigos do meu tempo na Reggiana. Ele o Padovano iam ver-me a casa quase todos os dias. Como bom siciliano, explicou-me tudo sobre a mafia: o juiz Falcone contra Toto Riina, il grande capo, e Provenzano. Fiquei a saber a história de trás para a frente.

Sgarbossa, 5.

O nosso trinco. Desculpa lá a falta de informação, mas nem joguei 90 minutos com eles. Com alguns, nem cheguei a jogar mais porque já tinham saído da Reggiana quando regressei aos relvados.

De Agostini, 6.

Lateral-esquerdo, internacional italiano nos anos 80.

Ai é esse, o da selecção?

Siiiim. Dentro do balneário, um padre, profissional irrepreensível. Ia sempre à frente no pelotão da corrida, durante os treinos. Se vais em último, é ronha. Se vais à frente, é para dar o exemplo e puxar pela malta. Agora vê, um internacional italiano faz isso e é natural que ganhe o balneário na hora.

Morello, 7.

Jogava como terceiro médio-

Scienza, 8.

Jogava no meio.

Padovano, 9.

Avançado, fez uma carreira brutal na Juventus. E foi campeão europeu. Vê lá se não foi, ò Ruizinho

Vou ver (…) Verdade, até marcou um penálti na final.

Ajax, não é?

Ya, Juventus-Ajax em Roma.

Padovano era craque. Tinha bons movimentos e, ouve lá, não é para qualquer um chegar à Juventus. E marcar golos. Acho que marcou um a alguém importante.

Real Madrid, será?

Exactamente. Lembro-me bem de ver esse jogo e ficar contentíssimo por ele. Estás a ver, um avançado vem de baixo e marca ao Real Madrid na Liga dos Campeões.

Futre, 10.

Essa semana foi uma loucura, só te digo. Estava com a selecção e jogávamos aquela dupla jornada com Estónia, na Luz, e Itália, em Milão.

Eischhhhhh, qualificação para o Mundial-94.

Nem mais, nem mais. Já ia com o joelho mais para lá do que para cá e fui infiltrado com cortisona para jogar. Aguentei-me. Até marquei à Estónia e tudo. Só que o problema da cortisona é que aquilo não te dói durante um tempo e depois é pior ainda. A dor, digo. Quando a dor volta, nem queiras saber. Impossível, Ruizinho, impossível.

Jogaste com Estónia, Itália e…?

Assinei contrato com a Reggiana nesse estágio da selecção e nem vim para Portugal com a selecção, depois do jogo em Milão. Fiquei lá a dormir e cheguei a Reggio Emilia no dia seguinte, um quinta-feira. Toda a cidade saiu à rua, foi um sentimento incrível. Nunca me imaginei naquele cenário. Nesse dia e na sexta, fiz tratamento ao joelho. Treinei-me no sábado e fui titular no domingo, com a Cremonese.

Cremonese, poizéééééé.

Cremonese. Ganhámos 2-0, marquei um golo e saí lesionado.

Não foi com a Cremonense que fizeste o último jogo em Itália, já pelo Milan?

Foooi. Isso mesmo. Ganhámos 7-1, na última jornada. Já éramos campeões e o Capello meteu-me a titular. Saí na segunda parte, perto do fim. Sabes quem me substituiu?

Nem ideia.

Roberto Baggio. Dom Roberto Baggio. Que loucura, loucura.

Ahahahahah. De volta ao Reggiana-Cremonese. Jogaste a quê?

Avançado. No meu terceiro ano de Porto, começaram a marcar-se homem a homem e o Artur Jorge deu-me liberdade de movimentos. Nunca mais fui extremo puro e duro. Tanto estava no lado esquerdo como, dois minutos depois, já estava no direito.

Espectáculo. Mateut, 11.

Romeno, com pinta de jogador e bom toque de bola. Tanto jogava a 8, como a 10. Um trabalhador inato.

Obrigado, já está o 11 da Reggiana.

Já está? Então e o De Napoli?

Aquele internacional italiano?

Ah pois, o gajo que corria para o Maradona e titular da Itália no Mundial-90

Também era da Reggiana?

Jogava, jogava.

Aqui não está.

Devia estar lesionado ou assim. Craque, craque.

Por falar em lesão, deves ter passado mal.

Mal, muito mal. Salvou-me o entusiasmo dos adeptos. No hospital, à porta de casa. Inesquecível. E também a cobertura mediática. Que depois foi diminuindo de intensidade. Tramado, hein, Ruizinho.

Como assim?

Na primeira lesão, todos à minha volta. Na segunda, menos, muito menos. Na terceira, em Paris, tive de ser eu a telefonar para A Bola e chamar o jornalista. Fui eu a dar a notícia. Tramado, tramado. Tenho uma chamada, até à próxima, abraço, abraço.

Passam-se uns dias, mais um pingue pongue fortíssimo, agora sobre o Atlético Madrid.

E este 11?

Ruizinho, isto é magia. Adoro falar contigo porque desencantas cada coisa e só falamos de coisas boas. Neste jogo, ganhámos nou ganhámos?

Ganharam, 2:0 ao Real no Santiago Bernabéu.

Este é o onze da final da Copa?

Nem mais.

O Toni não jogou, a sério?

É o que diz o 11.

Incrível. Jurava a pés juntos que tinha jogado a titular. Agora não vejo o onze, diz-me aí.

Abel, 1.

Fechado, fechadíssimo. Até roçava o antipático, sabes? Mas quando consegues furar aquela capa, é das melhores pessoas do mundo, com um humor finíssimo. Nos primeiros tempos, porra, não lhe arrancava nem uma emoção, fosse boa ou má. Com o tempo, ele abriu-se e é fantástico.

Como guarda-redes?

Grande porteiro, hein? Grande mesmo. Fechava a baliza com categoria e bateu o recorde espanhol de imbatbilidade. Se não me engano, até foi recorde mundial. Vê lá isso aí Ruizinho

(…)

[é o Ruizinho a ir ao doctor google]

(…)

É isso, 1275 minutos sem sofrer golos.

Em que época, em que época, 1990-91?

Ya, como é que sabias?

Dasssss, Ruizinho, há momentos inesquecíveis. Uma equipa como o Atlético Madrid estar tanto tempo sem sofrer golos é inesquecível e pertencer a esse plantel faz-nos sentir de outro planeta. Se não me engano, o Abel ganhou o troféu Zamora para o guarda-redes menos batido da Liga, não?

Só pode.

(…)

[google, again]

(…)

Isso mesmo, 17 golos sofridos em 33 jogos. Segunda melhor marca de sempre.

Ahahahahahah, grande Abel. Lindo, lindo, lindo. Foi uma época grande, enorme.

Também ganharam a Taça do Rei, certo?

Siiiiim, ao Maiorca, onde jogava o Hassan, que depois foi para o Farense. E daí para o Benfica. Ganhámos a Copa dois anos seguidos, era um Atlético formidável. E, atenção, o Maiorca tinha um guarda-redes fora de série, o Zaki.

O marroquino do Mundial-86?

Pooooois, nem mais, Ruizinho.

Incrível, as voltas que a vida dá.

Podes crer, amigo: joguei com ele em 1986, no México, e depois a final da Copa em 1991. Era um porteiro magnífico. Aliás, quando cheguei a Espanha, era um desfile de competência. Se formos só para africanos, havia o N’Kono do Espanyol. Jogava enormidades, voava de um poste ao outro com uma elasticidade nunca vista.

E o Buyo, só para picar?

Ahahahahahahahah. Porra, o Buyo deu-me cabo do juízo. Que picardias.

Que começaram antes ou…?

Ahahahahah, o que me foste lembrar: Sporting-Sevilha, não é?

Vi no outro dia: ele era porteiro do Sevilha, tu extremo do Sporting.

Começou aí a nossa ligação, sim. Ganhei eu a primeira batalha, foi o Sporting quem eliminou o Sevilha para a Taça UEFA, se não estou em erro.

Adiante.

É melhor é, Ruizinho, mas tens de parar com as tuas coisas.

Ahahahaha. Tomás, 2.

Titular da selecção espanhola, daqueles laterais raçudos, rápido a ir à bola. Se falhasse a bola, olha paciência, ahahahah.

Varria tudo?

Tudo e mais alguma coisa. Nos treinos nem me aproximava dele. Nem dele nem do Arteche nem do Goicoechea. Fugia deles.

A sério?

Esquece, não dava. O Goicoechea, então, já tinha fama. Lesionou o Schuster, lesionou o Maradona. Esquece, eram defesas do piorio.

Mas não era um estágio útil para os jogos?

Porra, nem me lembres. Havia um que se chamava Serer. Vê aí na net, jogou no Maiorca e depois Valencia. O gajo era grande, rápido e fazia-me marcação individual a todo o campo. Até no Calderón me fazia a vida negra. Porque, Ruizinho, estamos a falar de um tempo em que era muito difícil levar um amarelo nos primeiros minutos. Simplesmente os árbitros não fazia isso. E eles, os mais duros, aproveitavam para entrar a matar. Nos jogos fora, tinha de ter olhos na nuca, senão era varrido sempre sempre sempre.

Imagino. Soler, 3.

Jogava à esquerda. Ou a meio. Acho que é o único a jogar nos dois grandes de Barcelona e nos dois grandes de Madrid. Mais ofensivo que o Tomás.

Solozabal, 4.

Presidente da fundação do Atlético Madrid, bom miúdo.

López, 5.

López assassino.

Então?

Era o grito de guerra nos jogos fora.

Porra, a sério?

Ruizinho, o López ahahahahahah levava alfinetes nas meias para dentro do campo. Nos cantos, toma lá disto.

Noooooo.

Verdade, verdade. Fora de campo, uma jóia. Como nasceu em Ceuta, perto de Marrocos, chamávamos-lhe de cigano. Fazíamos uma coisa engraçada no final de cada treino.

Conta.

Um para um. À melhor de cinco. Eu a atacar e eu a defender. Ele tinha de me tirar a bola antes que o fintasse.

E então?

Ganhava apertado, três a dois. Às vezes, quatro a um.

E o López?

Deixava-o sempre ganhar o primeiro para dar pica, ahahahahahahah. Estou a brincar, o López era competitivo à brava. No Milan, sabes como quem fazia esse exercício?

Nem ideia.

Paolo.

Maldini?

Grandeeee. Pelo lado do Paolo, e com três operações ao joelho.

E que tal?

Ficava ela por ela. Passá-lo era o cabo das tormentas. O Paolo era um fenómeno.

Evidente. Vou continuar.

E não pares.

Donato, 6.

Líbero, atleta de Deus. Veio juntamente com o Baltasar para o Atlético. E há uma história curiosa.

Siga a marinha.

Curiosamente, o Atlético ia assinar com o Júlio César, do Vasco da Gama. Era o Torneio Ramón Carranza. Não sei o que aconteceu, só sei que o Gil y Gil não viu o primeiro jogo e o segundo só o viu pela televisão. Resultado: não quis saber do outro e assinou com o Donato.

Deu-se bem.

Era a medalha de ouro do Gil y Gil, até porque o Donato chegou à selecção espanhola.

Manolo, 7.

Quase sempre o meu companheiro de quarto. Ele ou o Abel. Grandes, os dois. Amigos para sempre. O Manolo era especial. Vê uma coisa Ruizinho, o manolo vinha como extremo direito e só tinha 1,78 metros de altura. De repente, faz-se melhor marcador da liga espanhola. Melhor marcador, hã.

G’anda classe.

Muita. Como é um baixinho daqueles consegue ser o pichichi? E, claro, foi ao Mundial-90. Prémio mais que merecido.

Schuster, 8.

Fora de série, um dos maiores 8 da história. Falavam-me coisas horríveis do rapaz. Ele chegou ao balneário e era uma jóia. Andava sempre com dois guarda-costas, porque apanhou um susto valente no Barça.

Então, o quê?

O rapto do Quini, avançado do Barça e pichichi umas seis vezes. Aliás, o Gomes foi ocupar a vaga do Quini no Sporting [Gijón].

Verdade, ressaca do verão quente de 1980.

O Quini era um nome grandioso do futebol espanhol e, de repente, raptado. O Schuster jogava nesse Barça e apanhou um cagaço, vai lá vai. Por isso, começou a andar com guarda-costas. E tinha um medo que se pelava da ETA. Verdade seja dita, pegou-me o medo.

Da ETA?

Epá, sim. Mal assinei pelo Atlético e me mudei para Madrid, sabes qual foi a primeira frase que me disseram?

Medo.

Muito. ‘Não andes pelo centro de Madrid entre as 7 às 10 manhã’

Porquê?

Isso perguntei eu.

E?

‘É a hora dos atentados da ETA’. Como se isso fosse pouco, a polícia portuguesa apanhou uns etarras no Algarve e foi o fim da picada.

Imagino.

Não imaginas não.

Pois, não imagino.

Era hardcore, à grande e à espanhola.

E apanhaste algum susto?

Ufff, nem um. Mas também treinava diariamente com Tomás, Arteche e Goicoechea. Porra, esses três eram do piorio.

Ahahahahahahah. E o Schuster?

Finíssimo. Elegante, possante. Tínhamos um código nas bolas paradas. Se eu queria a bola no pé, apontava com o indicador para baixo e, depois, dava dois passos a fingir que arrancava. Quando queria a bola lançada para as costas da defesa, fazia com o polegar para cima.

E?

A bola caía no meu pé. Mas, Ruizinho, ali na hora. Nem precisava de olhar para tras. Schuster foi craque, era incrível o seu toque de bola.

Vizcaíno, 9.

Trinco, fazia o trabalho sujo e varria aquilo tudo.

Futre, 10. Capitão e tudo.

Grande honra, foi um momento histórico. Dois, aliás. O golo e depois a entrega do troféu das mãos do rei Juan Carlos. Um orgulho enorme para qualquer jogador, até porque o Atlético Madrid ganhava a Copa em pleno Santiago Bernabéu, casa do arqui-rival e nosso adversário nessa noite. Tremendo, tremendo, só te digo, tremendo.

Foste expulso na ½ final.

Nem me digas nada. Foi a 1.ª mão, com o Depor. Ganhámos 2:0 e fui expulso aos 81 minutos.

Duplo amarelo?

Isso é que era bom, olha olha. Vermelho directo, Ruizinho.

Uyyyy. E agora, dois ou mais jogos de suspensão?

Por aí.

Falhavas a final.

Claaaaaro, e isso não podia acontecer. Simplesmente não podia.

O que se passou então?

Falhei o jogo da 2.ª mão e depois joguei a final.

Como?

Epá, meti-me de joelhos a pedir desculpa à frente do Villar, então presidente da federação.

Resultou.

Nem me digas nada, foi um alívio. E, digo-te, estar naquela final foi uma bênção. Para mim, para o Atlético e até para Portugal. Fui o primeiro português a levantar a Copa como capitão.

Moya, 11.

Jogava solto, à esquerda. Mexia-se bem, defendia certinho.

Aragonés, treinador.

Campeão, grande campeão. Viu-se muitos anos depois, já como seleccionador espanhol, vencedor do Euro-2008. Via tudo três passos à frente em relação aos outros. Visionário e comprometido com a causa do Atlético. Uma figura maiúscula do Atlético, hã!, craque do meio-campo.

E o feitio?

Ahahahah. Complicado. Andámos muitas vezes às turras, mas faz parte. Pior era o Gil y Gil.

Imagino.

Epá, o Gil y Gil tirava-me do sério. Ruizinho, tenho de ir. Liga-me amanhã ou isso, é sempre um prazer viajar no tempo contigo.

Meu dito, meu feito. Uma semana depois, a terceira e última chamada. A ideia é falar do Sporting. Que fartote.

Heyyyyyyy, tudo fixe?

Ruizinho, como é que é?

Tudo em forma. Viste a foto?

Se vi? Porra, que fotão. Imperdível, de onde a sacaste?

Foi por empréstimo do Aurélio.

O mister Aurélio?

Nem mais.

Enorme Aurélio. Gente do alto, treinador do melhor que há.

Bem sei, o tempo não vai apagar essas histórias.

Ai não vai. Nem eu deixaria, o mister Aurélio foi o homem que nos agarrou a todos à conta de psicologia, força de vontade e intermináveis palavras de incentivo. É um homem valioso para o país e até para o mundo. Vê bem, ò Ruizinho, forma dois Bolas de Ouro, com Figo e Ronaldo, mais um Bola de Prata, eu. É muito, não há ninguém assim em todo o mundo na história.

Podes crer. Podemos começar?

Claaaaro.

Quem é o primeiro à esquerda, em cima?

Fernando Jorge, o Figueira. Apanhei-o anos e anos depois, num avião da TAP, como hospedeiro de bordo. Foi cá uma alegria, ahahahahah.

E ao lado dele?

Rui Filipe, o grande Ruizinho. Amigo do coração. Fomos juntos a Rocheville para aquele torneio em França que me tornou conhecido e jogámos no Sporting. Quando vou para o Porto, em 1984, ele também já lá está. Há coincidências belas, essa é uma delas. Grande Ruizinho.

Futre no Porto. Essa transferência é um must de Verão.

Ahahahahahahah. Ganhava 70 contos [350 euros] por mês no Sporting e o FC Porto ofereceu-me 27 mil contos [134 mil euros] em três anos mais carro e casa. Falei com o Sporting e pedi-lhes 18 mil contos [90 mil euros] em três anos, 6 mil por ano. Eles disseram-me que estava louco e eu fui para o FC Porto, alegando falta de condições psicológicas. Aquilo que ainda hoje questiono é se o dirigente a quem pedi o aumento chegou mesmo a falar com o presidente João Rocha sobre as minhas exigências.

Ao teu lado, Ferrinho.

Central ou lateral-direito, ainda jogou nos seniores do Sporting.

Ao lado, quem é?

Epá, agora apanhaste-me.

O Aurélio diz que é um Dito.

Dito? Vagamente, sim, lembro-me de um Dito. Nessa época, Ruizinho, joguei em dois escalões e foi um galo do caraças.

Porquê?

Perdi as duas finais do Nacional numa semana.

Chi-ça.

Galo galo, fiquei na azia. Nem imaginas.

Como é que foi?

Primeiro, se não estou em erro, perdi a final de iniciados. Com o Porto, em Leiria. Estávamos a perder 2:0 e conseguimos o empate. Nos penáltis, o Porto ganhou.

Quem era o treinador?

Mister César Nascimento. Outro dos grandes, uma vénia para ele.

E depois?

Depois, perdi a final dos juvenis. Com o Braga, em, deixa-me ver deixa-me ver, ou Coimbra ou Leiria.

Como é que correu?

Perdemos 1:0.

Galo mesmo, duas finais perdidas.

Nem me digas nada, porra.

O último em pé é o Jorge Tavares.

Jorginho. Vinha do Oriental e reencontrei-me num dia memorável, o da conquista do título de campeão nacional em 1986. Nas Antas.

Porto-Covilhã?

Exacto. Ganhámos 4-2 na última jornada e apurámo-nos para a Taça dos Campeões, que iríamos levantar na época seguinte. O Jorge foi extremo-direito nessa tarde e eu o extremo-esquerdo. Que regabofe.

E as voltas que a vida dá.

Sim, também é isso. Conhecemo-nos desde jovens e depois o destino prega-nos estas partidas saudáveis.

Em baixo, quem é o primeiro à esquerda?

Araújo, grande Araújo. Era o nosso ponta-de-lança, Que eu saiba, nunca jogou na 1.ª divisão. Na 2.ª, sei que marcou golos.

E depois?

Eugénio, o bebé. Uma carreira em cheio no Farense e também Braga. Jogou anos e anos na 1.ª divisão, isso certifica-o como craque. Já o era no Sporting. Saudades.

Ao lado do Eugénio?

Luís Pereira. Reconhecia-o em qualquer fotografia. Outro avançado, craque.

Por último

Quaresma. Extremo-direito, jogava muito.

Falaste-me das finais perdidas em iniciados e juvenis. Nunca foste campeão no Sporting?

Juniores, em 1983. Marcámos mais de 100 golos e acumulámos mais de 30 jogos seguidos sem perder [confirma-se a dupla informação, 101 golos e 34 jogos].

Grande época.

Começámos mal, empatámos em casa com o Estoril.

E depois?

Demos cabo do sistema.

E tu?

Acho que fui o melhor marcador [correcto e afirmativo: 23 golos com dois hat-tricks pelo meio].

Lembras-te do jogo do título?

Santa Clara, 5:0 em Alvalade. Tínhamos empatado com eles nos Açores e estávamos empatados ao intervalo em Alvalade. Na segunda parte, foi outro filme. Que título.

Esse é o ano em que saltas para a equipa principal, certo?

Sim, 1983. Sou campeão de juniores em Junho, um mês depois da estreia pelos seniores.

Um mês depois?

Estreio-me em Maio, com a Portuguesa dos Desportos.

Ah bom, bom.

A estreia oficial é em Agosto, com o Penafiel.

Claro, o tal jogo dos 5:1.

Eu a dividir o campo com Manuel Fernandes, Jordão e Oliveira. Nem queria acreditar, de sonho.

Mesmo.

E depois fiz asneira.

Quando?

Nessa noite. O golo do Penafiel é um penálti cometido por mim. Nem um defesa dos distritais fazia aquilo. Digo-te, nunca mais me aproximei da grande área.

Ahahahahahah. Mil obrigado, grande abraço.

Grande abraço, digo eu, Ruizinho. Que viagem.

Passam-se uns dias, muitos. Às tantas, é Futre quem me lança o isco.

Isto é o quê?

Foram os 100 anos da federação inglesa. Na altura, o Resto do Mundo era uma seleção de respeito. Não é como agora com os amigos deste e os amigos daquele. Não. Naquele tempo, éramos convocados com pompa e circunstância. Aliás, fui convocado para o jogo nesse Verão, enquanto saía do Porto para o Atlético Madrid. Ainda pensei, ‘tu queres ver que isto ainda vai tudo por água abaixo?’ Mas não, o Atlético Madrid libertou-me e fui jogar com o Maradona. Aquilo era para ser levado a sério. Quer dizer, o ambiente fora do campo era descontraído. Lá dentro era para ganhar.

Nessa tarde, como foi?
Perdemos 3-0. Era a seleção inglesa em peso, mais rotinada que nós.

Nós, quem?
Dasaev, Elkjaer, Celso, Berthold, Hysen, Platini, Maradona, eu. Ah, e o Lineker. Como ele jogava no Barcelona, estava do nosso lado.

Grande equipa. Quem era o treinador?
Terry Venables, o inglês do Barcelona.

E o deles?
Boooooby Robson [diz o Bobby como se estivesse na rádio]

E como foi conviver com o Maradona?
Maravilha, claro. Ele já estava num outro patamar. Chegou com guarda-costas. Só assim é que ele podia avançar na rua. Não me lembro se o conheci no jantar, na véspera, ou no balneário, pouco antes do jogo. Inclino-me para a segunda opção. Não tenho ideia de o ver no jantar.

Como foi o aperto de mão?
Todos os apertos de mão com ele foram memoráveis. Ele era o Maradona, não é? Uma figura distinta. Por muito bom que fosses ou que tivesses sido, o Maradona é o Maradona. Sem tirar nem pôr, é um génio. Levou a Argentina a duas finais de Mundiais. Levou o Nápoles a dois títulos de campeão italiano. Nem é preciso conhecer muito bem a história do futebol para se entender que esses quatro momentos são de se tirar o chapéu. E ele, Maradona, não só estava lá como ainda foi o ator principal. Génio, génio, génio.

Como te correu esse jogo em Wembley?
Não fiz nada de jeito. Estava encantado por jogar ao lado de Maradona, vê bem. Passou-me tudo ao lado. Lembro-me que o jogo passou em Portugal, na RTP, em direto. Lá está, naquele tempo, a seleção do resto do Mundo tinha um peso indiscutível. E, claro, o nome de Maradona levava qualquer um ao delírio.

Até os ingleses?
Até os ingleses, sim, sim.

Pergunto-te porque isso foi um ano depois daquele 2:1 à Inglaterra no Mundial do México-86?
Pois, percebo a pergunta. Digo-te uma coisa. Aquele estádio Wembley era lindo, a relva estava impecável, os adeptos acorreram em massa. Tudo se conjugava para uma tarde soberba, única. E foi. Mas aqueles assobios ao Maradona foram devastadores. Para ele, para nós, jogadores, e para o próprio futebol. Imaginas, Ruizinho, 70 mil pessoas a assobiar um único jogador sempre e cada vez que ele tocava na bola? Ele aguentou-se bem, mas lembro-me da sua frustração no balneário e até no hotel.

Nesse dia, Maradona joga com o 10?
Claro.

Claaaaaro? Então e tu?
Ahahahahah. Pois, tive de abrir uma exceção. Joguei com o 11. E o Platini a 9. Pronto, está tudo dito sobre o Maradona.

Mais algum jogo com o Maradona?
Olha, agora falei no Platini e lembrei-me do seu jogo de despedida, em 1988. Aí, joguei com o número 6.

Seis?
Exactamente, eheheheheh. Número 6. O 2 foi o João Pinto.

E mais do Maradona?
Mais do Maradona? Ele tirou-me da tristeza em 1986.

Então?
É o Mundial do México. A nossa seleção vem para casa no final da fase de grupos. Ganhámos à Inglaterra e, depois, perdemos com Polónia e Marrocos. Casa. Por sorte, o nosso voo chega a Lisboa às seis da manhã. Ainda não havia muita gente. Se fosse às seis da tarde, ainda hoje lá estávamos a levar com tomates e ovos. Mal cheguei, fui para casa dos meus pais. Abro a porta e o meu pai faz-me aquele olhar de vergonha. Aquilo matou-me. Quer dizer, já vinha do México sem pica nenhuma. Chegas a casa e, taaauuu, toma lá disto. Nada a apontar, atenção. O meu pai lançou-me aquele olhar e arrepiei caminho. Fui para o Algarve e tranquei-me numa casa, desanimado com tudo. Nem saía de casa. Mesmo. Juro. Se saísse, seria o cabo dos trabalhos. Optei por ficar dentro de um cubículo.

A ver o Mundial?
Claro. Quando há aquele jogo, o Argentina-Inglaterra, há muita conversa pela Guerra das Malvinas. Começa o jogo e aquilo muda-me a disposição. Mudei o chip, Rui. Aquele 2-0 é um sonho. Mesmo. Sonhamos com aquilo desde pequeninos. Sonhamos fazer a diferença daquela maneira. O Maradona, assim do nada, começa a correr e eu acompanhá-lo no sofá. Também corro por ele. Ultrapassa um, dois, três, quatro. Quando faz golo, é o delírio. Ele tornou realidade um sonho. Rui, isso é praticamente impossível. E ele tornou-o possível no jogo mais importante das suas vidas, pela tal Guerra das Malvinas, em pleno Mundial, em pleno mata-mata. Estou a ver tudo, a jogada, as emoções. Aquilo mudou-me. Maradona mudou-me com aquele golo. Libertei-me do meu estado parado e triste. Quis imitá-lo, um dia. Na final da Taça dos Campeões 1987, quando faço aquela jogada, que não se compara com a do Maradona, atenção, estive tão perto. Já passou e o que interessa é que aquele slalom do Maradona deu-me vida quando mais precisava.

A partir daí, puxaste pela Argentina?
Sem dúvida. Aí e também no Mundial-90. Argentina, sempre.

E no Mundial anterior?
Em 1982? Itália, então? Só via o Bruno Conti à minha frente. Era o meu ídolo e eu torcia pela Roma. Grande Conti. Que fez um grande Mundial. Agora vê a cena: todos os meus amigos eram pelo Brasil do Zico, Sócrates, Júnior, Falcão e eu era o único da Itália. Estás a ver a cabeça deles naquela tarde do Sarriá, não ’tás? Eheheheheheh, 3-2 para mim. Itália, grande Itália. Agora, aquela marcação do Gentile ao Maradona é uma coisa… Pfffff, pobre Maradona. Digo-te: Messi e Ronaldo nunca foram marcados assim.

E no Mundial anterior? (desculpem, isto está em loop)
Em 1978? Holanda. Era uma paixão de 1974. Só tinha oito anos mas já sabia o que era e quem era o Cruijff. Era cá um génio. Outro. O cruijff não foi ao Mundial-78 mas agarrei-me ao Rensenbrink para torcer pela Holanda e aquela final dos papelinhos em Buenos Aires continua bem presente na minha cabeça. Com prolongamento e tudo, foi um festival de bola. O Kempes deu a volta à Holanda.

E mais do Maradona? (desculpem, isto está em loop)
Apertei-lhe outra vez a mão num jogo em que fomos capitães: eu no Atlético, ele no Sevilha. Era um jogador distinto, como já disse, e uma pessoa tranquila.

Trocaste de camisola com ele?
Não, olha nunca fui de trocar camisolas com ninguém. Quanto muito, alguém me pedia. Se eu pedisse a todos, ou quase todos, não havia armários para tanta coisa. Pobre Ikea.

Nem uma camisola tens?
Uma só, a do Schuster do Barcelona. Era miúdo e admirava-o imenso.

Grande história.

Ruizinho, tenho de atender esta chamada. Grande abraço, amigo

Abraçooooo.

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