Mário Jorge. «Antes do jogo, o Berthold perguntou-me pelo Futre. E eu: ‘Já te dou o Futre’»
Estugarda, 1985. A selecção portuguesa comete a proeza de ganhar 1:0 à RFA, golo do meio da rua de Carlos Manuel. A façanha permite-nos o apuramento in extremis para o Mundial do México, em 1986. O onze dessa noite inclui o estreante José António e junta representantes dos quatro campeões nacionais mais um do Boavista (Frederico). Futurologia de José Torres.
Heyyyyy, Mário Jorge?
Rui, tudo bem?
Tudo impecável. E por aí?
Na boa.
Já viste a ficha do jogo?
RFA-Portugal.
Estás pronto?
Vamos a isso.
Bento, 1.
Ele e o Damas marcaram as décadas 70 e 80 do futebol português, com mais participações do Bento na selecção.
Pois, verdade.
O Bento era mais eficiente, o Damas mais espectacular. O Damas, posso falar à vontade pelo convívio de anos e anos no Sporting, era tramado. Não nos deixava pôr o pé em ramo verde. Como o idolatrava, era sempre a abrir.
O Damas era o teu ídolo?
Meu, e não só. O Damas era o Sporting em carne e osso.
E dava-se bem com o Bento?
Muito bem mesmo. Já se conheciam há muuuuito tempo.
E nesse dia em Estugarda, como se portou o Bento?
Fechou a baliza. Ponto.
João Pinto, 2.
Mítico capitão do Porto, grande pulmão e muito intenso nos processos, tanto o defensivo como o ofensivo. Foi internacional juvenil e júnior comigo. E esperanças, também. E nos AA, claro. Ele não deu qualquer hipótese à concorrência, fosse ela quem fosse.
Fora do campo, que tal?
Uma pessoa calmíssima.
Inácio, 3.
Joguei com ele no ano em que fomos campeões no Sporting em 1982. Ele partiu a perna e substitui-o a lateral-esquerdo, pelo que começámos uma relação ainda mais próxima, porque dava-me muitos conselhos. Afinal de contas, era um dos líderes de balneário e a sua carreira já era extraordinária.
Sim, ele era qualquer coisa.
Muito bom pé esquerdo e uma coisa engraçada.
Qual?
A sua especialidade era o carrinho. Acertava sempre na bola na hora agá.
Venâncio, 4.
Terrível na marcação. Terrível de bom, salvo seja. Ahahahahahah.
Ahahahahaha.
Muito poderoso no jogo aéreo, aprendeu muito com o Eurico no início dos anos 80. Marcou o Rummenigge e deu-se bem. Digo eu. Ahahahah. G’randa joga.
E o Venâncio era fixe fora de campo?
Por norma, um jogador agressivo dentro de campo é tranquilo fora dele. O Venâncio respeitava essa ideia.
Frederico, 5.
Infelizmente já não está entre nós, uma pena imensa.
Podes crer, era um homem impecável.
Mesmo. E jogava nas horas. Fazia o seu papel sem alaridos nem nada. Tocava na bola e pronto. Já nem me lembro de quem ele marcou nessa noite. Terá sido o Völler?
Boa pergunta.
Tens de ver isso, ò Rui.
Carlos Manuel, 6.
Claro, o 6. Acabou por jogar comigo no Sporting. E depois ainda o apanho no Estoril por seis meses. Um jogador fantástico, muito intenso e uma meia distância extraordinária.
Viu-se, aliás.
Ahahahahah. Uns 15 minutos antes, ele também rematou fora da área e a bola foi ao lado. À segunda, toma lá disto.
Fantástico.
O Carlos Manuel é um dos melhores jogadores da sua geração, muito forte na condução de bola. Nos treinos, treinava a finalização através dos livres directos.
E fora do relvado?
Muito extrovertido, sempre bem-disposto.
José António, 7.
Jogador de souplesse, com um recorte técnico muito bom, muito acima da média. Além disso, era um central que não fazia muitas faltas, sabia roubar a bola na hora certa.
Foi uma surpresa no 11 de Torres.
Foi a sua estreia na selecção e isso dá essa ideia, mas foi um jogador que acompanhou sempre a selecção. Era a referência do Belenenses e, nessa altura, o Belenenses jogava nas competições europeias e incomodava os grandes. Nessa noite, ele estava ali para as sobras. E aliviou-nos imensas bolas debaixo de pressão.
Disso lembro-me bem. E com uma calma impressionante.
Ele era assim, até como pessoa. A sua forma de estar parecia a de um menino da Linha. Ahahahahahah.
Veloso, 8.
O lateral do Benfica, tanto à direita como à esquerda. Nesse jogo, jogou a médio direito para conter o Littbarski, que era um extremo-esquerdo destro.
Gomes, 9.
O bibota era fantástico. Grande capacidade técnica e inteligência dentro da área. Coitado, jogou sozinho lá na frente. Ahahahah. Ainda apanhou umas bolas jogáveis. Digo eu. Ahahahahah.
Ainda o apanhaste no Sporting?
Exacto, apanhei-o e deu uma dimensão diferente ao Sporting. Porque o seu nome era grande, porque marcou golos, sobretudo na segunda época, e porque era um grande profissional. Conversava muito com os mais novos e criava bom ambiente. Um craque, mai’nada.
Jaime Pacheco, 10.
Eiscchhhhhh. Uma capacidade de trabalho imensa. Quem não corresse ao lado dele, estava tramado.
Sempre que o vejo a jogar, divirto-me.
Porra, o gajo dava o corpo às balas uma e outra vez. Como adversário, moía-nos a cabeça, era um chato sempre atrás de nós a morder-nos os calcanhares. Como companheiro de equipa, dava gozo vê-lo jogar. Primeiro, pautava o jogo como ninguém. Depois, era muito bom no passe. E, para acabar, o que era fora do campo também o era lá dentro: alegre e com capacidade para contagiar.
Mário Jorge, 11.
Presente.
Foi uma surpresa?
Só soube uma hora antes do jogo. A história é longa.
Temos tempo.
O Futre joga na Checoslováquia e depois sai da convocatória. Nem sequer foi opção para o jogo com Malta, a três dias de Estugarda. Com a Checoslováquia, o Ribeiro também joga. Na Luz, joga o Palhares e eu vou para o banco. O Palhares lesiona-se e não segue caminho para Estugarda. A opção tinha de recair sobre mim, mas só soube uma hora antes do jogo.
Correu bem?
Siiiim. Deu-me algum estatuto. Dentro do Sporting, digo. Quando regresso a Alvalade, as pessoas já reparam mais em mim. No final do jogo, o Gomes vira-se para mim e diz ‘nunca é tarde para esperar’.
Jogaste onde?
Médio esquerdo para travar o corredor direito.
Quem era o lateral?
Berthold. Antes do jogo, perguntou-me pelo Futre.
E tu?
‘Futre? Já te dou o Futre’. Ainda falhei um golo. Ou melhor, o Schumacher fez uma grande defesa. É uma jogada de envolvência pela esquerda, em que driblo dois defesas e atiro. Ele faz uma defesa por instinto, é canto para nós.
E o ambiente?
Diziam que a comunidade emigrante ia marcar presença. De início, aquecimento e isso, nada. Aos 10 minutos, percebemos que estavam lá uns dez mil portugueses. Ouvíamos perfeitamente. E continuámos a trocar bem a bola. Os alemães raramente acertavam o passo e, às tantas, vemos o capitão Rummenigge a barasfustar com os colegas. Foi o sinal.
De?
O sinal de que estávamos a incomodar. E que ia ser uma noite diferente.
Histórica, mesmo.
A chegada ao balneário foi inesquecível.
E o aeroporto?
Na Portela? Cheio, cheio. Fomos para um varandim e tudo. Saímos pela porta das traseiras, onde a polícia já estava à nossa espera.
Espectáculo.
A Alemanha nunca tinha perdido em casa para o apuramento do Mundial e todos os jogadores deles eram colossais. O Briegel, então, parecia um jogador de futebol americano. Ainda por cima, vínhamos de um aflito 3-2 sobre Malta e todos diziam que iam levar uns cinco ou seis. Entre nós, os jogadores, dizíamos que menos de dois já era bom.
Obrigado, Mário. Grande abraço.
Abraço
(…)
Passa-se um dia
(…)
E outro
(…)
E mais um
(…)
Às tantas, telefonema do Mário Jorge.
Heyyyyyyyy.
Rui, tudo bem?
Tuuuuudo.
Só para rematar aquela conversa. É preciso ver outra coisa sobre Estugarda: jogámos em Estugarda sem Diamantino, sem Futre, sem Manuel Fernandes, sem Jordão, sem Oliveira, sem Eurico. Estou a esquecer-me de alguém, bem sei, mas estes nomes já devem dizer muita coisa.
Claro que sim. No ano seguinte, mais um resultado fora do normal para o Mário Jorge.
7-1?
Na mouche.
Essa noite foi histórica.
O jogo não foi à tarde?
A noite no Plateau, quero dizer. O Meade só bebia champanhe. E oferecia a toda a gente. No primeiro treino do Sporting nessa semana, o porteiro do Plateau aparece-nos no estádio a perguntar pelo Meade.
Então?
O Meade saiu sem pagar, ahahahahahah.