Manuel José. ‘Nos penáltis vs Nápoles, escolho o Gomes e ele recusa. Insisto e atira-me à trave’

Mais You Talkin' To Me? 10/16/2020
Tovar FC

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Manuel José. ‘Nos penáltis vs Nápoles, escolho o Gomes e ele recusa. Insisto e atira-me à trave’

Outubro, clássico, Alvalade, selecção. Quatro palavras-chave. Antes de hoje, quando?

1989. A 1.ª divisão interrompe a sua marcha por duas semanas para o duplo compromisso do Mundial-90, com derrota na Checoslováquia (2:1) e vitória sobre Luxemburgo (3:0). Dos quatro golos, três pertencem a Rui Águas. Que se lesiona e falha o clássico em Alvalade. No outro lado, Gomes é a grande figura como adversário do Porto pela primeira vez desde sempre.

O Sporting ganha 1:0, autogolo de André. Nas suas costas, Gomes espreita a oportunidade. Na zona mista, André graceja. ‘Prefiro ter sido o autor do golo, o Gomes não podia marcar ao Porto’. A jogada desenrola-se no lado esquerdo do ataque, com cruzamento do recém-entrado Paulinho Cascavel para o lugar do desastrado Lima (duas perdidas de baliza aberta ainda na primeira parte atiçam os adeptos sportinguistas). Baía sai dos postes e parece ter o lance controlado, só que André corta a bola em jeito de antecipação a Gomes e é golo. O único do clássico, ganho pelo Sporting de Manuel José. Ei-lo em todo o seu esplendor.

Manuel José, 74 anos de idade. Na estreia como jogador de 1.ª divisão (Benfica 1968), faz-se campeão nacional. Na estreia como treinador (Espinho 1978), marca um golo de livre direto. Na estreia como treinador no estrangeiro (Al Ahly-2001), ganha 1:0 ao Real Madrid. Manuel José, algarvio de gema, natural de Vila Real de Santo António. É o responsável pela única participação europeia do Portimonense (1985). É o responsável pelos 7:1 no dérbi Sporting-Benfica (1986). É o responsável pelo quinto lugar da União Leiria, à frente do Benfica (2001). É o responsável pelos 6:1 no dérbi do Cairo (Al Ahly-Zamalek 2002).

Estou?

Boa tarde, é o Manuel José?
Sou, sim.

É o Rui Miguel Tovar. Tudo bem?
Òòòò Rui, tudo bem? [parêntesis reto, porque os curvos já estão démodè, para explicar esta série de ós: a única vez que vi as pirâmides de Gizé foi com Manuel José ao lado; a única vez que toco na taça da Liga dos Campeões Africanos, é com Manuel José ao lado; a única vez que fujo a sete pés de uma multidão eufórica, no meio das pirâmides de Gizé e com a taça da Liga dos Campeões Africanos na mão, é com Manuel José; tudo isto em 2006]

Tudo bem, obrigado. Posso roubar 15 minutos ao Manuel José?
Claro.

O Manuel José foi o primeiro treinador do Boavista a ganhar na casa do Porto, para a 1.ª mão da Supertaça.
Esse jogo tem uma história curiosa.

Já imaginava.
Estávamos no inverno de 1992 e chovia que se fartava. O Porto ia fazer três jogos nessa semana. Se não me engano, ia a Guimarães, depois à Suécia para a Liga dos Campeões e só então jogava em casa, connosco. Vi esse calendário e pensei numa tática para ganhar nas Antas.

Qual era?
Mandava Marlon e Artur para o banco.

Xiiiiiii. Quem joga então?
O Ricky, sozinho na frente. Eu sabia que o Porto vinha cansado. Pela qualidade dos adversários, pelo esforço das viagens e também pelos relvados mal tratados, ora pelas chuvas, em Guimarães, ora pela neve, em Gotemburgo. Quando chegasse a nossa vez, eles estariam mais cansados que nós e devíamos aproveitar, embora o árbitro fosse o João Mesquita.

Então?
Aaaah, íamos jogar contra 12. Ou melhor, 14 porque os fiscais-de-linha também contam. Já se sabia que o mar corria sempre para o mesmo lado.

Isso é assim?
[Manuel José solta aquela gargalhada rouca, num jeito muito seu] Era assim mesmo. Só para veres, o João Mesquita mostrou um amarelo ao Marlon e outro ao Artur, com eles no banco [outra gargalhada]. Foi perto do intervalo, depois do 1-0 do Kostadinov. No balneário, aquilo era uma gritaria danada, os jogadores estavam histéricos. Dei dois berros e disse-lhes ‘amigos, estamos a fazer o jogo deles, vamos lá acalmar e assentar ideias; nos primeiros 15 minutos da segunda parte, o marlon e o artur vão aquecer e vocês não podem sofrer mais nenhum golo; quando os soltar, é para ganhar’.

E depois?
O Kostadinov tem uma oportunidade para marcar. Nem me lembro se falhou ou se o Alfredo defendeu. Com Marlon e Artur em campo, jogámos em 3-4-3 e aquilo saiu direitinho. O Marlon marca o golo do empate, o Artur o da vitória.

Eis a primeira vitória na casa do Porto.
Calma, ainda falta a segunda mão, no Bessa.

Então?
Estamos a perder 2:0 perto do fim quando meto um miúdo dos juniores, de 18 anos. O Bambo. Ele entra e vai-se a eles sem medo nenhum. Nenhum mesmo. Aquilo foi heróico. E olha que os centrais deles eram o Fernando Couto e o Jorge Costa, tanto campeões da bola como campeões do mau feitio. O Bambo não se intimidou minimamente e incomodou-os para burro. Ainda não se falava em pressing e nós encostámos o Porto à sua área durante 15 minutos. O Tavares reduziu [79’], o Marlon empatou [81’]. Ganhámos a Supertaça.

No ano anterior, o Boavista já tinha ganho a Taça de Portugal ao Porto.
Dois-um no Jamor. Nesse jogo, meceremos a vitória de longe. Fomos a ganhar para o intervalo, com um golo do Marlon. Na segunda parte, eles marcam pelo Jaime Magalhães e nós reagimos logo, pelo Ricky.

Aí ainda com João Pinto.
Sim, ele foi para o Benfica nesse verão.

E quem foi para o Boavista?
Pedi ao Valentim o Sánchez e o Rui Bento.

Essa equipa do Boavista é o Boavistão.
[sai outra gargalhada rouca] Pffff, os recursos eram fantásticos. Não me lembro de nenhuma outra equipa ter ganho tanto aos grandes como nós. Nem o Braga de hoje, nem o Vitória de Guimarães de ontem ou o Belenenses de anteontem. Ganhámos vezes e vezes aos grandes.

Além dessas duas vitórias ao Porto?
Nunca mais me esqueço do 1:0 na Luz, ao Benfica de Eriksson, com um golo do Casaca, na primeira jornada do campeonato. E depois eliminámos o Inter, então detentor da Taça UEFA.

O Boavista das camisolas esquisitas.
Não sei quem o disse, mas aquilo ficou conhecido mundialmente. Cá, ganhámos 2:1 e podia ter sido quatro ou cinco. Lá, fizemos uma exibição de alto nível e 0-0. Com umas artimanhas pelo meio. Mas agora não dá tempo.

Só uma artimanha então.
Bem, em Milão, havia uma sala de aquecimento para as equipas. Antes do jogo, o Facchetti, então director-desportivo e depois presidente, disse-me que a sala estava à nossa disposição. Respondi-lhe que queria ir para o relvado. Ele ficou espantado e contra-atacou a dizer que ia fazer queixa ao árbitro. ‘Podes fazer o que quiseres, eu vou para o relvado’. Para quê?

Sim, para quê?
Para levar com os assobios no aquecimento e não no início do jogo. Foi o que aconteceu. Fomo-nos aquecer no relvado e ouvimos de tudo. Quando entrámos em San Siro, devidamente equipados, já fomos mais relaxados.

E a outra artimanha?
Só mais esta. Ao intervalo, 0-0. Soubemos que o presidente deles [Massimo Moratti] tinha ido ao balneário do árbitro, um inglês qualquer. Bem, disse aos meus jogadores para defender longe da área, sem tackles nem nada. Dito e feito. O Inter não nos importunou por aí além e passámos a jogar 3-4-3 em Milão.

3-4-3, outra vez?
Sim senhor. Lá na frente, dois baixinhos rápidos, Coelho e Marlon Brandão, e um génio, João Pinto. No banco, Ricky.

Lá está, esse Boavista é memorável.
Lembro-me perfeitamente do Valentim dizer-me para ganhar em casa e pontuar fora no campeonato. E eu respondi-lhe que não, que era para ganhar sempre. Ele deve ter julgado que eu era maluco ou assim. A verdade é que o Boavista tinha uma equipa sensacional. Jogávamos em 3-4-3, com bons jogadores talentosos e quase sempre ao primeiro/segundo toque. A filosofia é sempre a mesma. Daí que diga insistentemente que o Jesus é um óptimo treinador, que vai deixar marcar. As equipas dele são de autor. Ele é que as faz. Bem sei que lhe dou umas caneladas na televisão e isso é por culpa do ego patológico dele. De resto, é um treinador bom, bom, bom, bom mas bom mesmo. Os jogadores dão sempre mais do que podem e os resultados aparecem. Isso é obra do treinador. O Jesus é daqueles treinadores para a história do nosso futebol.

Há pouco, falou-me do Eriksson.
Por exemplo. Era um homem calmo, tranquilo. Deixou obra feita porque o Benfica começou a jogar olhos nos olhos com toda a gente. Tanto cá, em Portugal, como lá fora. Tanto assim que foi à final da Taça UEFA 1983. E depois à da Taça dos Campeões 1990.

E o Otto Glória, que profissionalizou o futebol do Benfica em 1954?
Outro exemplo. Era um senhor simpático, com um discurso açucarado. O que nós queríamos ouvir, ele dizia-nos. Brasileiro, claro está.

Conhece-o pessoalmente?
Se o conheço? Essa é boa, ele lançou-me no Benfica.

Uyyyyyy.
Cheguei ao Benfica em 1962, para os juniores. O treinador era o Fernando Cabrita e eu jogava a extremo-esquerdo. Nos juniores, marquei um golo ao Sporting, com um chapéu ao Damas quase do meio-campo. Na época 1968-69, sagrei-me campeão nacional, com um jogo apenas.

Hã, campeão?
Isso mesmo. Num jogo com a Académica. Nesses tempos, a Académica era a equipa que levava mais adeptos à Luz, excepção feita a Sporting e FC Porto. Substituí o Simões aos 70 minutos, com o resultado em 2-1 para eles. O campo estava enlameado e eu nem cheirei a bola. Joguei mesmo mal. Devo ter sido assobiado pelo público, mas disso nem me lembro. Quem nos salvou foi o Praia, autor dos dois golos da reviravolta, o último deles em cima dos 90 minutos. Magrinho e levezinho, ele corria por ali fora e passava por cima deles com uma facilidade.

E guarda a medalha de campeão?
Qual quê. Sagrámo-nos campeões nacional na última jornada, em Tomar [4-0], e alguns dias depois telefonaram-me para o quartel de Queluz, onde fazia a tropa, para ir receber a medalha de campeão numa cerimónia organizada pelo Benfica, mas não fui. Achei que não merecia. Então, joguei 19 minutos, e mal, e ia receber a medalha? Não, aquilo não era para mim.

E depois?
No final da época, saí do Benfica porque eram sempre os mesmos que jogavam e eu estava cansado de ficar de fora, embora estivesse consciente do valor de todo aquele plantel com Eusébio, José Augusto, Simões… Queria era jogar. E não me bastava representar o Benfica nas reservas, na Taça de Honra e em outras provas.

Foi para onde?
Ainda me lembro do director desportivo, uma glória chamada Francisco Calado [capitão do Benfica nos anos 50], pedir-me para não sair porque ia ter as minhas oportunidades na equipa principal. Preferi ir para o União de Tomar. Nesse ano, Humberto, Vítor Martins e Nené subiram à equipa principal e começaram a jogar. Sabe uma coisa: só comecei a levar a sério o futebol aos 27 anos. Antes disso, era uma brincadeira. Depois disso, e até aos 34 anos, dei tudo o que tinha e mais alguma coisa, mas já não merecia mais créditos e tive azar.

Azar, como?
Segunda-feira, Agosto 1973: um BMW parou à frente da oficina de carros que eu e o meu irmão partilhávamos, abriu-se a porta e saiu um dirigente do Sporting que me queria levar imediatamente para Lisboa, dois dias depois de me ter estreado pelo Farense, num sábado à noite, para a Taça de Honra de Faro. Eu queria ir mas, quando estávamos a caminho da casa do presidente do Farense, que era na mesma rua da minha oficina, lembrei-me que já tinha jogado pelo Farense, pelo que era impossível representar o Sporting nessa mesma época, como era desejo do treinador Mário Lino. Um ano depois, foi o FC Porto que se mostrou interessado, mas aí meteu-se o 25 de Abril e foi uma confusão tremenda. Optei por ficar no Farense. Em 1975, com o ambiente mais calmo, o FC Porto voltou a oferecer-me contrato, mas o Mário Lino, que estava a treinar o Farense depois de se sagrar campeão pelo Sporting, não me deixou sair de Faro. Sabe de quem é a culpa?

Nem ideia.
A culpa disto tudo é do meu irmão. Ele é que me convenceu a ser treinador. Eu queria lá ser treinador. Jogava futebol e estava bom. Quem me dera ter o mesmo sucesso como jogador do que como treinador.

O seu primeiro clube é o Espinho, certo?
Sim, e mais uma vez a culpa é do irmão. Telefonei-lhe a dizer que o presidente do Espinho queria-me como treinador e ele convenceu-me a aceitar. A negociação teve até piada.

Conte lá.
O presidente Carlos Cabral disse-me que eu ia ganhar o ordenado de jogador mais 4.500 escudos. Devo ter sido o treinador mais mal pago da 2ª divisão. De sempre [gargalhadas roucas, parte 3]. Ai ai

Pronto, e o Manuel José é o único treinador-jogador com um golo na estreia.
A sério? Quando?

Aliados do Lordelo.
Aiiiii. Sabe quem jogava aí?

Quem?
O Jaime Pacheco, com 18 aninhos prá aí. Ele é que me falou desse golo, uma vez. Foi de livre directo e a bola ficou presa lá em cima, sabe? Na intersecção entre a barra e o poste, onde a coruja faz o ninho. Confirma-me o Jaime Pacheco. ‘Mister, tenho a certeza: foi o nosso guarda-redes e tudo a tirá-la dali, aos saltos.’

Uau, livre directo?
Cortava bem a bola, aquilo fazia um efeito e, ao mesmo tempo, saía como força. Gostava de os marcar, sim. E tenho uma história curiosa, à 10ª ou 11ª jornada. Jogámos com o Riopele e estávamos em antepenúltimo lugar. O Riopele não jogou com um autocarro, mas com uns nove ou dez. Não havia maneira de a bola entrar. A dez minutos do fim, mais coisa menos coisa, há um livre à entrada da área. Eu ajeito a bola e digo para o companheiro do lado, ‘ò Reis, se esta não entrar, prepara-te que o lugar de treinador é teu. Vou abdicar disto.’ Mas isto é como dizem os chineses. O talento e a sorte quando se encontram com a oportunidade… Foi o que aconteceu.

Golo?
Um-zero. Bola ao meio, eles foram lá à frente na ganância do empate e nós fizemos o 2-0 para o Espinho. A partir daí, nunca mais perdemos. Foram 17 jogos invictos e subimos à 1ª divisão como campeões da Zona Norte.

Especialista em livres directos, então?
Eu era especialista em livres, o Eusébio é O especialista. Tenho uma boa história com ele, na Venezuela. Fomos jogar um torneio e calhou-nos defrontar o Alianza Lima, com jogadores da selecção do Peru no Mundial-78. Entrámos no campo e reparei que as barras da baliza estavam mais baixas que o costume. Fui medi-las e conseguia tocar na trave sem sequer saltar.

Ninguém coloca balizas novas?
Qual quê?! Jogámos assim e há um livre para nós. Eu quero marcar mas o Eusébio já se sabe como é, naquele estilo ‘eu marco, eu marco, eu marco’. Não era eu marco o livre, era eu marco o golo. Bastava-lhe a bola passar por cima da barreira e era golo. Nesse dia, a bola passou por cima da barreira e eu saiu a correr campo fora a festejar. Eu também, mas a olhar para trás. Foi aí que vi a bola bater na barra e ressaltar para as mãos do guarda-redes do Alianza. Avisei o Eusébio e ele muito incrédulo ‘mas como não foi golo?’

Porque as medidas das balizas não estavam bem.
Pois, eu avisei. O Eusébio era um portento. Mesmo no Beira-Mar, quando já estava menos rápido, era um fenómeno. Como jogador e pessoa. Um fe-nó-me-no. Vi-o marcar um golo ao Sporting a 30 metros, meu Deus. Vi outro golo dele, ao Vitória de Setúbal, no Bonfim, num livre a 30 metros, debaixo de uma chuva torrencial. Perdemos 5-3 mas aquele golo continua na minha memória. Eu já me tinha cruzado com ele no Benfica em 1968, e é claro que oito anos depois havia diferenças físicas, mas ainda era o Eusébio. Tenho outra dele.

Pois, imagino.
Estava eu, o Abel e o Eusébio a dar um passeio e entrámos numa rua meio manhosa. Parámos numa loja de relógios, porque o Eusébio adorava vê-los. Estávamos fora da loja quando o dono se pôs à porta e a olhar fixamente para o Eusébio. Perguntou-lhe se era ele. À resposta positiva, ele sacou de uma máquina fotográfica e chamou a mulher para lhe tirar uma fotografia. Depois ofereceu-lhe o relógio, que tinha máquina calculadora e tudo. O Eusébio reconhecido na Venezuela, numa rua daquelas? Quem poderia imaginar? Mesmo eu, que já o conhecia, fiquei espantado. O Eusébio, ai ai. Sabe quanto é o Benfica cobrava para jogar lá fora com o Eusébio?

Quanto?
Cinco mil contos.

E sem o Eusébio?
Metade, 2500 contos. Esta era a tabela do Benfica no Verão 1969, quando saí de lá e o Benfica foi fazer uma digressão ao continente americano. Isto é assim, o Rui puxa por mim e isto não acaba mais.

Muito bem, obrigado por tudo e abraço.
Abraço.

(Arghhhhhhh, esqueci-me de lhe perguntar sobre o Nápoles-Sporting; ligo-lhe, não lhe ligo, eis a questão. Hoje, já não. Amanhã, sim, é o dia)

Desculpe lá ò Manuel José, esqueci-me do Sporting-Nápoles.
À vontade. Esse jogo tem três histórias. Duas com o Maradona, uma com o Gomes. Quando cheguei ao balneário no jogo da segunda mão, depois do 0-0 em Alvalade, disse aos jogadores que não ia haver marcação individual ao Maradona. Nunca fui disso nem o seria naquela hora. Fazia marcação à zona: quem estivesse mais perto, estrovava a acção do Maradona. E alertei para o facto de ele jogar só com o pé esquerdo. O direito, por assim dizer, servia para subir o autocarro e pouco mais. Então, disse aos jogadores para obrigar o Maradona a jogar com o pé direito. Numa jogada, ali junto à linha lateral com a linha do meio-campo, a bola vem para ele e o Valtinho, um calmeirão de 1,92 metros de altura que conheci no Braga, faz o que lhe digo. Sabe o que faz o Maradona?

Estou curioso.
Na impossibilidade de seguir a jogada com o pé esquerdo, dá-lhe um toque com o direito para o lado e faz um passe de letra a desmarcar o Carnevale. Valeu-nos o Ivkovic. Agora imagine isto: um passe de letra a isolar um companheiro?! Só o Maradona. No final do jogo, estávamos cabisbaixos e o balneário em silêncio. De repente, entra por ali dentro o Maradona a dizer ‘portero, portero’. Numa mão, a nota dos 100 dólares da aposta. Na outra, a camisola 10. Aquilo desanunviou-nos.

Pois é, os penáltis. Como é que se perde isso?
Escolhi os cinco e meti o Luisinho em primeiro. O Luisinho era um central muuuuito acima da média. Craque mesmo. Central do Brasil no Mundial-82, veja bem. Titular da equipa de Telé Santana, com Júnior, Falcão, Zico, Sócrates, Cerezo. Enfim, craque da cabeça aos pés. E ele falhou.

Pfffffff.
Ainda por cima, eles também falharam o primeiro remate, antes do nosso. Até ao fim da primeira série, o Marlon atirou ao poste e o Ivkovic defendeu o tal remate do Maradona. Vai começar a segunda série e o Gomes diz-me que não quer ir. Porque o Luisinho falhou e tal. E eu argumento que não for ele, bibota d’ouro e marcador de penáltis no Porto, quem tem moral? No meio da conversa, o Oceano intromete-se e diz que bate o penálti sem problemas. Mas eu quero o Gomes. Ele vai lá e atira à trave. Fomos eliminados.

Anos depois, voltou a Nápoles pelo Boavista.
E fui eliminado, outra vez. Cá, só foi 1-1. Deviam ter sido uns quatro ou cinco. Lá, perdemos. Dois-zero ou dois-um?

Dois-um, golo do Luciano.
Ah, esse brasileiro. Deram-me uma cassete com os golos dele e foi aí que reparei no Artur.

O Artur, aquele da Supertaça 1992-93?
Esse mesmo, era rápido como uma flecha.

Imagino que isso de tropeçar em jogadores desse nível seja raro.
Lá está você a puxar por mim [gargalhada rouca, a sequela]. Mas onde é que isto vai parar? Está preparado? Estágio do Sporting na aldeia das Açoteias. Estamos muito bem a treinar e aparece-me um senhor jovem, dos seus 24/25 anos, com um outro ainda mais miúdo, 20/21. Ele é empresário e representa o Raphael Meade. Lembra-se?

Xiiiiii, claro.
Diz-me que quer uma oportunidade. E eu, sem pestanejar, digo-lhe para treinar ali mesmo, no jardim do hotel, com os outros jogadores. Aquilo nem tinha as dimensões de um campo de futebol. Ele parte-me a loiça. Tinha técnica e ainda uma força enorme, vinha do Arsenal. Demos-lhe uma camisola do Sporting. Ao empresário, também. Enquanto os jogadores foram para os seus quartos, o Meade mais o empresário foram à sua vida e meteram-se no bar do hotel a beber umas cervejas. Tudo bem, na boa. Na manhã seguinte, o caos. Eles beberam demasiado e fizeram uma triste figura na piscina do hotel, vestidos à Sporting. Vieram queixar-se a mim, à hora do pequeno-almoço. Quando os encontrei, disse-lhes que o negócio já não ia ser feito, que aquilo da noite anterior era uma vergonha. ‘Eu não me importo nada que bebam cervejas, façam o que quiserem na folga. Agora, quando vocês vestem a camisola do Sporting Clube de Portugal, vocês têm de respeitar o Sporting Clube de Portugal. O que fizeram não tem desculpa.” Eles todos encavacados, a pedir mil desculpas. Eu perguntei então ao Meade ‘queres mesmo jogar no Sporting Clube de Portugal?’. E ele a dizer sim. ‘Então tens de pagar uma multa de 100 contos. Aceitas ou não?’ Ele faz as suas contas de cabeça e disse que sim. Pronto, Meade no Sporting. E o João Rocha descontou-lhe mesmo 100 contos no primeiro ordenado.

E ele marcou uma série de golos na Europa.
Marcou ao Athletic, em Bilbau. Ao Colónia, em Alvalade. E ao Barcelona, em Alvalade. Lembro-me desses todos.

Vem aí história, não vem?
A culpa é do Rui, ò Rui. Antes de Bilbau, tenho de contar a eliminatória com o Dínamo Tirana. O avançado deles é o Abazai, que depois joga comigo no Boavista como lateral e central. A vida que as voltas dá. Na Albânia, 0-0. Em Alvalade, 0-0 ao intervalo. Eles eram muito certos a defender. Aos 50-e-poucos minutos, eles fazem um contra-ataque e quase marcam. A bola ia marcar quando o Gabriel, que era exímio no tackle, saca uma bola na linha de golo. Fomos lá para a frente e marcámos o 1-0, pelo Venâncio, num canto.

Agora sim, Bilbau.
Em Bilbau, já sabia ao que ia. Como sou de Vila Real de Santo António, falo português até ao almoço e espanhol até ao jantar. Portanto, comecei logo a sacar informações sobre o Athletic, que isto aqui não é como agora em que se pode rebobinar jogos na televisão até sete dias depois. Descobri o quê? O estádio deles era conhecido como o charco de San Mamés. E porquê? Regavam o relvado ao intervalo. Avisei os jogadores deste detalhe. Bom, adiante. O Athletic era treinado pelo Clemente e havia o Zubizarreta, o Goikoetxea, que lesionara gravemente o Maradona num Athletic-Barça, mais o avançado Julio Salinas e os extremos Argorte e Noriega. Ao intervalo, 1:0. Vamos a sair do balneário e as escadas de acesso ao relvado todas alagadas. Todas meeesmo. O João Rocha ia à minha frente, escorregou e caiu. Ele fui com ele. Aquilo estava tudo alagado. Era um estratagema, pronto. Os jogadores foram então ao balneário para trocar de pitons e demoraram um pouco mais, como é natural. O árbitro [Daina, da Suíça, o da final da Taça dos Campeões 1985, entre Liverpool e Juventus, de que resultam 39 mortos] ameaça-nos com a derrota em caso de atraso na entrada em campo. Foi só assim um encosto para ser autoritário. A verdade é que fomos entrando aos poucos.

Que aventura.
Na segunda parte, o bom do Goikoetxea pega-se com o Jordão e o Jordão é expulso. Na altura, já está 2:0 para eles.

E agora?
Meto o Meade. Ele era o homem ideal. Corria que nem um desalmado e era forte como um touro. E digo ao Sousa e ao Jaime Pacheco para fazerem passes longos, para as costas da defesa. No primeiro passe, Meade isola-se e atira, à saída do Zubizarreta. A bola vai a entrar para a baliza e trava. O charco de San Mamés. Lá estáááá. No segundo passe, acho que do Sousa, o Meade isola-se outra vez, contorna o Zubizarreta e dá-lhe bem para a baliza. Nós, com 10, animamos a eliminatória.

Em Alvalade, é um fartote.
Ainda hoje, pessoas com 35/40/45 anos apanham-me na rua e dizem-me que foi o melhor jogo europeu do Sporting em Alvalade. Foi 3:0, podiam ter sido mais. Golos de Manuel Fernandes, Meade e Sousa. O do Sousa é cá um golo [gargalhada rouca ataca de novo], Da mesma forma, o 1:1 com o Colónia, na eliminatória seguinte, é um resultado mentiroso. Golo do Meade e eles marcam no último instante. Devíamos ter ganho por três ou quatro. O Colónia do Schumacher na baliza e do Allofs no ataque. Mais Littbarski e tal. Fizemos um jogo, tchi. O Schumacher defendeu dois remates do Sousa e ainda hoje não sabe como. As duas bolas bateram-lhe na cara. Mesmo. Em cheio. Lá, na Alemanha, perdemos 2:0 num campo inclinado. O árbitro era aquele italiano alto, que depois foi presidente da federação. O Paolo Casarin. Fez uma série de malandrices, entre as quais marcar um penálti que não era. Esse, o Damas ainda defendeu.

Athletic, Colónia. Só falta o Barça.
Julgava que isso já estava esquecido. Queres mesmo mais? Barcelona. Essa eliminatória é das mais equilibradas que há. Depois de aviarmos o Akranes com um total 16:0, com 9:0 na Islândia e 6:0 em Alvalade, vamos ao Camp Nou para impor o nosso estilo. Com 0-0, o Negrete, o do pontapé de moinho no Mundial-86 e que era perfeito com o pé esquerdo, falha-me um golo de baliza aberta. O Zubizarreta sai-se, ele mete-lhe a bola por cima e depois atira-me ao lado. Excesso de confiança. Ele simplesmente não parou a bola antes de rematar nem olhou para a baliza. Simplesmente, atirou convencido de que seria golo. Não foi. E há mais do Negrete.

Ainda nesse jogo?
Coitado é de mim. Livre para o Barça perto do fim [73’]. Marca o Julio Alberto. O Negrete sai da barreira antes de tempo e o árbitro alemão [Prokop] apita falta. Como a bola entra, o mesmo árbitro indica o meio-campo. Assim mesmo.

E em Alvalade?
Golos do Negrete e do Meade, 2:0. O Cruijff a meter toda a gente lá na frente e nós a controlar o jogo. Lembro-me de um lance de quatro para dois. E os dois do Barça é o Zubizarreta mais um defesa. Quem tem a bola é o Fernando Mendes, que fazia anos nesse dia e foi quem fez os cruzamentos para os dois golos. Quatro para dois e o que faz o Fernando Mendes? Um chapéu ao Zubizarreta.

Tssssssss.
Às tantas, muito muito perto do fim [86’], o Roberto atira um remate indefensável. Parece que o estou a ver agora. Que pontapé. Aquilo foi fatal, eliminou-nos

Um mês depois, 7:1 ao Benfica.
Mais, queres mais? ‘Tou tramado. Digo aos meus jogadores antes do jogo: ‘eles são melhores que nós e temos de fazer isto para impedi-los de jogar como sabem: quando perdermos a bola, recuamos todos, menos o Meade. Ele é o primeiro a pressionar quem tem a bola. Sempre. Quando recuperarmos a bola, soltamo-nos. Tu, para o Litos e o Mário Jorge, fazem diagonais para baralhar a defesa. A defesa era Oliveira e Dito no centro mais Veloso e Álvaro. Tudo jogadores consagrados.’ Fazemos o 1-0, depois o 2-0, ele reduzem e, a partir daí, foi aquilo que se sabe. Não é comum marcar quatro golos de bola parada. Às vezes, aguentamos e aguentamos uma época inteira só para ver um. Ali, no dérbi, quatro.

Não é esse o ano em que o Manuel José ganha duas vezes ao Benfica?
Em Abril, para o campeonato da época anterior, 2:1. Golos de Morato, Manuel Fernandes e Maniche. O Sporting não ganhava desde 1965. Há 21 anos. A festa no balneário é indescritível. O João Rocha entrou de fato e gravata, meteu-se debaixo do chuveiro para cumprimentar todos os jogadores, subiu o valor do prémio de jogo e tudo. Só visto. Esse é o jogo que dá o título de campeão nacional ao Porto e permite-lhe entrar na Taça dos Campeões, conquistada na época seguinte. Sabe uma coisa?

[agora já não sou eu quem faz as perguntas]
Pelo Boavista, ganhei três vezes ao Benfica na mesma época. Um-zero na Luz, golo do Casaca. Atenção, o Benfica não perdia em casa para o campeonato desde 1987. E isso foi em 1991. Um-zero no Bessa, pelo Ricky. E dois-um na Luz para a meia-final da Taça de Portugal. Bis do Ricky. Nessa final, ganhámos 2-1 ao Porto.

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