As duas finais, RFA e Alemanha
RFA em 1986, Alemanha em 1990. Duas selecções, o mesmo país. A queda do muro de Berlim acentua a diferença. Maradona convive com ambas as realidades, uma para o bem (1986), outra para o mal (1990). E, sorte a nossa (e do resto do planeta), escreve para o jornal argentino El Grafico as suas memórias desses tempos. Aquí seguem os melhores momentos da pena afiada do génio.
1986. “Que sensação fantástica. Estar aqui até ao fim. Ir à final. Os alemães enganam, porque jogam assim-assim e ganham, mas a nossa fé é enorme. Temos um equipazo, feito de jogadores que se impuseram com a naturalidade dos grandes. Até os suplentes marcam. Viram o Pasculli [companheiro de quarto de Maradona durante todo o Mundial-86] nos oitavos-de-final? Um golo e adiós Uruguai. Depois, a Inglaterra e a Bélgica. Marquei quatro golos nesses dois golos. São momentos inesquecíveis e as imagens passam-me pela cabeça a mil à hora, sem interrupção. Venha lá a RFA para mais flashes
(…)
Não acredito, ainda não acredito. Eu bem dizia que a Argentina era mais que Maradona e os outros 10, como os alemães quiseram fazer crer na véspera. O Mundial é nosso, a Taça está connosco. Quero entrar para o avião. Quero festejar com o povo argentino. Quero mostrar a taça a todos. Ao lado dos meus companheiros desta epopeia inolvidável.
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Que partidazo. Começámos melhor e marcámos de cabeça, por Tata Brown [que substituiu o lesionado Passarela, capitão do Mundial-78, também ganho pela Argentina]. Na segunda parte, fizemos o 2-0 por Valdano. Até aí, os alemães estavam retraídos, exclusivamente preocupados comigo. Matthäus andou atrás de mim o tempo todo, mas foi um adversário leal, digno e limpo. Depois, Beckenbauer [seleccionador alemão] meteu Förster a marcar-me em cima. Com o 2-0, eles libertaram-se, passaram a jogar sem complexos e aí sentimos dificuldade para segurá-los. Eles têm aquele espírito de luta impressionante. O Matthäus subiu na posição de oito, o Magath também como 10, os laterais Briegel e Brehme fixaram-se no nosso meio-campo. Sofremos o empate num piscar de olhos em dois lances de bola parada [cantos]. Meu Deus, um prolongamento… Não, não pode ser. Aos 80 e tal minutos, Enrique recupera uma bola e sai a jogar em vez de despachá-la. Fez-me um passe impecável e eu só ouço Burru [Burruchaga, autor do 3-2] a pedir-me a bola. Fiz-lhe a vontade com um passe cruzado. Os alemães tentaram o fora-de-jogo mas fomos mais rápidos que eles. O Briegel deve ter batido o recorde dos 50 metros atrás do Burru, mas nem isso foi suficiente. Que êxtase. Impressionante a festa. Os mexicanos carregaram todos os jogadores ás costas. Acho que até toquei no céu.”
1990. “Estamos na final. Contra tudo e contra todos, estamos na final. Desde o início que os italianos assobiam-nos no aquecimento, no hino, no jogo. Onde quer que joguemos, somos humilhados. Mesmo em Nápoles, no campo do meu Nápoles, quase ficamos surdos com tanta raiva junta. A meia-final com a Itália foi uma guerra pessoal. Antes do jogo, disse que não deixava de ter graça a Itália pedir ajuda ao povo napolitano para apoiar a squadra azzurra, quando os napolitanos não são considerados italianos durante os 364 dias do ano. Caiu o Carmo e a Trindade. Isto afastou ainda mais a Argentina do público italiano, mas a minha língua é solta e afiada. Ainda digo o que quero e penso. Quando assim não for, tranquem-me num quarto e deixem-me sozinho. Por enquanto, ainda sou livre e dono do meu pensamento. Este jogo ganhámos [1-1 e 5-4 nos penáltis] e estamos na final
(…)
Venha agora a RFA. Venha agora o Matthäus. É um adversário digno, de respeito. Conheço-o bastante bem, não só da final de há quatro anos. Jogamos em Itália, ele no Inter e eu no Nápoles. Somos amigos e respeitamo-nos. Eu, então, admiro-o bastante, sobretudo depois daquele gesto dele na meia-final com a Inglaterra. Em vez de festejar a vitória nos penáltis e a consequente qualificação para a final, foi a correr para o Waddle [o inglês que falhou o último penálti] e falou com ele. Que grande! (…) A final é em Roma. Lá vamos nós jogar fora outra vez. Se fosse em Nápoles, ainda poderia ser equilibrado. Agora em Roma, não. Ainda por cima, jogam lá o Völler e o Berthold. Eles jogam em casa, mas vamos dar a volta a mais esta ‘contrariedade’
(…)
A final, que desastre! Nem quero dizer nada. Nem me apetece olhar ao espelho. Não apertei a mão ao Havelange [presidente da FIFA]? Não fui à conferência de imprensa pós-jogo? Não, não apertei. Não, não falei com os jornalistas. Não estou em condições de dizer nada. Estou revoltado. Com a arbitragem [do mexicano Codesal, que expulsou dois argentinos e marcou o penálti que garantiu a vitória alemã, a sete minutos do fim], com a FIFA. Ainda bem que o Matthäus me disse ao ouvido que também acha que o penálti é duvidoso”.