Bilardo. ‘Fomos campeões mundiais com Maradona a 9’
A Argentina chega ao Brasil e nós vamos para a Argentina. Não, não é embirração, isto faz tudo parte de um plano. Lógico, bem elaborado. É segunda-feira, dia 9 de Junho. Amanhã, é terça-feira 10. Depois quarta 11, quinta 12, sexta 13 e assim sucessivamente. Estamos em 2014, mas também poderíamos muito bem estar em 1986. No glorioso Mundial do México, onde a Argentina se sagra campeã pela segunda e última vez. Porque em 1986 o 9 de Junho calha a uma segunda-feira, o 10 a uma terça, o 11 a uma quarta e a sexta-feira também é 13.
Primeiro país a organizar o Mundial pela segunda vez, o México até nem é a escolha inicial da FIFA, mas sim a Colômbia. Problemas políticos e financeiros fazem o governo daquele país retirar o apoio ao comité de organização. Sem dinheiro, os colombianos abdicam do trono em Outubro de 1982. Canadá, EUA, Brasil e México oferecem-se para substituir a Colômbia. A falta de tradição dos dois países norte-americanos e a ausência de apoio do governo federal brasileiro garantem o triunfo do México.
Oito meses antes do início do evento, um terramoto abala o país. Morrem 30 mil pessoas, mas os estádios, esses, mantêm-se de pé. A força mexicana vem então ao de cima e é possível acolher um Mundial espectacular. Se em 1970 o México vê Pelé no seu auge, é a vez de Maradona ser rei e senhor dos acontecimentos. Posto isto, vai dar Argentina em 2014? Há razões de sobra, a começar por aqueles que melhor conhecemos: o ataque. Messi, Agüero, Higuaín, Pastore, Lavezzi
e Palacio. É de gritos. Como encaixá-los num onze? É tarefa de Alejandro Sabella.
Em 1986, o homem que orienta Maradona chama-se Carlos Bilardo. No seu
estilo fanfarrão e folclórico, apanhamolo mais animado que nunca por sermos
portugueses.
Ahhh Portugal, que lindo, que lindo
[repete-se mais umas quantas vezes mas não podemos aventurar-nos a ser fiéis senão corremos o risco de não sair daqui]
Nunca joguei com Portugal mas aqueles dois títulos mundiais sub-20 seguidos foram muito falados na Argentina. Eu segui-vos muito e fiquei admirado com a organização de bola, o toque de bola, a alegria em campo. [Jorge] Couto, [João] Pinto, Figo, Rui [Costa]. Belos, belos jogadores. Deram muito ao futebol. É bom ter referências, não é?
[a ideia é responder sim, mas esbarramos na sua dialéctica]
Veja bem, ligou-me e eu lembrei-me logo desses jogadores. Que lindo, que lindo.
O futebol é uma coisa sensacional, espectacular. É global, ponto. Se perguntar à
minha filha, quem é o Pinto, ela sabe.
E o Maradona, ela também sabe?
Uyyyy, sabe o que ela me dizia?
[a ideia é responder não, mas esbarramos na sua dialética]
Que eu passava mais tempo com o Maradona do que com ela. Que eu abraçava
mais o Maradona que ela. Mas noooooooooooooo [os argentinos gostam de prolongar o seu estado de alma].
Mas então não abraçava mais o Maradona do que a sua filha?
Ciúmes, os dela eram engraçados. Há ciúmes desgraçados, não é? Os dela comovem-me sempre.
Além disso, estar abraçado ao Maradona é algo normal, sobretudo naquele Verão de 1986?
Siiiiiiiiiiii. Foi um Junho muy muy especial. E não foi nada fácil.
Então?
Tinha a imprensa em cima de mim desde 1983.
Porquê?
O capitão era o Passarella mas eu passei a braçadeira para o Maradona.
O Passarella, capitão da Argentina campeã do mundo em 1978?
Esse mesmo, o central. De passada larga e firme, sempre com a cabeça levantada e a bola colada ao pé. Marcava golos e mais golos, uma máquina. Parecia um
avançado [Passarella ainda hoje é o segundo defesa com mais golos nos campeonatos nacionais, só atrás de Koeman], mas tinha de ressuscitar um morto.
Quem?
Maradona. Aquele Mundial-82 fez-lhe mal [Argentina, detentora do ceptro mundial, eliminada na segunda fase de grupos por Brasil e Itália; Maradona marca dois golos à Hungria de Meszaros e é expulso vs. Brasil por agredir Serginho, que depois viria a jogar no Belenenses], era preciso reabilitá-lo, por assim dizer. Escute: Maradona é Maradona, sempre foi assim. Ele nunca se foi abaixo. Mas a braçadeira de capitão deu-lhe um plus. Aumentou-lhe a grandeza. Eu só procurava isso, porque o objectivo da Argentina era ser campeã mundial de novo.
Passarella levou isso a bem?
Não foi uma decisão do seu agrado, claro, mas eu não estava ali para agradar
ninguém. Estava ali para levar a Argentina ao título. Além disso, o homem que
escolhi para substituir Passarella cumpriu o seu papel na perfeição. Até demais:
marcou um golo na final, o 1-0. Chamava-se Brown e tive de o chamar à selecção de uma maneira pouco ortodoxa.
Como assim?
Um dia, liguei-lhe e perguntei-lhe onde estava. ‘Em casa’, responde ele. Agarro
num comboio e vou ter com ele. Aquilo foi difícil, ele não estava para aí virado.
Faço-lhe então uns desenhos num papel qualquer, de como queria que ele jogasse e de como nós iríamos jogar. Ele, às tantas, diz-me ‘pronto, está bem, eu vou’.
Grande estratégia.
A nossa força era a concentração. Veja bem: treinávamos os festejos dos golos
mas quando chegava a hora de jogar éramos implacáveis. Digo-lhe isto não por
ser campeão.
Ai não?
Noooooooooooooo. Em sete jogos, só ficámos em desvantagem num [e por apenas 27 minutos]: com a Itália, penálti do Altobelli.
Mas empataram por Maradona. Para mim, e outros amigos meus, esse golo é o melhor desse Mundial. Quero dizer, o da Inglaterra é um primor, mas o da Itália é de uma execução técnica m-a-r-a-v-i-l-h-o-s-a.
[ri-se mais que ligeiramente] Não é o primeiro que me diz isto mas a verdade é
que já não ouvia essa teoria há anos e anos. É um golo soberbo porque vários
motivos: a bola sai enrolada dos pés do Valdano e o marcador do Maradona é
nada mais nada menos que Scirea, um monstro em todos os bons sentidos. E a
bola vai morrer encostada ao poste contrário, devagar devagarinho. Até me arrepio todo. Digo agora: estou arrepiado a rever esse golo. Golazo.
Esse jogo com a Itália é o único em que a Argentina se vê em desvantagem?
Isso. De resto, fomos senhores do jogo. Mas nem sempre de uma forma bonita. Leio a imprensa dessa altura e há mais críticas que elogios. Porque jogávamos com marcação individual. O que acho piada é sermos criticados nesse torneio, e eu senti-o na pele, mas o Maradona foi o jogador mais mal tratado desse Mundial.
Aquele jogo com a Coreia…
Isso foi um atropelo sistemático. Não o deixavam sequer progredir. Com o Uruguai, também.
Nos oitavos-de-final, não é?
Sim, ganhámos 1-0. Jogo complicado pela rivalidade e tudo o mais.
Esse não é o jogo em que a Argentina joga com o segundo equipamento. Há
aí uma história qualquer, não há?
Siiiiiiiiiiiiiiiii. Era uma camisola de algodão e o jogo estava marcado para o meio.dia. O sol a pique. Não podíamos jogar assim. Pedimos à Le Coq Sportif que fizessem camisolas azuis mais leves mas a resposta foi negativa. Impossível, disseram eles. Só nos restava uma opção.
Qual?
Correr todas as lojas da Cidade do México à procura da camisola mais leve. Compararam-se dois tipos de camisolas e levaram-me ao hotel. Não nos conseguimos decidir até porque Maradona apareceu por ali e apontou para uma. “Com esta, ganhamos à Inglaterra.”
E ganharam.
Voltámos à loja e comprámos 38 camisolas. Contratámos um desenhador para
nos fazer o logo da federação argentina, contratámos umas costureiras para bordar o logo e os números prateados. Assim se fez aquela camisola.
De um jogo histórico, ainda por cima.
Mas histórico mesmo é o 3-2 à RFA.
É esse o meu pensamento. Às vezes, perguntam-me se prefiro o 2-1 à Inglaterra
ou a vitória por penáltis à Itália em 1990 e eu digo sempre a segunda opção porque nos permitiu chegar à final. O 2-1 à Inglaterra é só [o só entre aspas, claro] subir mais um degrau até à final.
Como funcionou o 3-2 à RFA. Qual foi a artimanha?
Fácil. Deslocámos Maradona para a posição de avançado-centro e recuámos Valdano mais Burruchaga para segurar os laterais deles, sobretudo aquele que corria desalmadamente, o Briguel.
Maradona a 9?
[mais risos abafados] Maradona a 9. Tinha lido durante a semana que o Beckenbauer ia apostar na marcação individual sobre o Maradona. Seria o Matthäus. Interiorizei essa ideia, falei com o Maradona e chegámos a um acordo: quanto mais ele avançasse no terreno, melhor para nós, mais espaço teríamos no meio-campo para as diagonais de Valdano e Burruchaga. Porque se Matthäus fosse com Maradona, abriria ali um fosso. Foi o que aconteceu, embora tivéssemos ganhado com um passe do Maradona do meio-campo para a corrida do Burruchaga.
Ainda tem a medalha de campeão?
Noooooooooo. Naquela azáfama da festa, uns indivíduos quaisquer invadiram
o nosso autocarro e eu ofereci-lhes a medalha como forma de acabar com
aquilo. Pronto, não tenho.
E a de finalista de 1990?
Também não. Deitei-a fora ou assim, já não me lembro. Não sou nada apegado
às coisas.
in jornal i, 12 Jun 2014