Zenga. ‘O Rui Barros era pequenino mas estava sempre ligado à corrente’
Guerin Sportivo é a revista desportiva mais antiga do mundo. É italiana e nasce em 1912. Nos anos 80, com o boom do futebol de Milan, Inter, Nápoles, Roma, Juventus, Sampdoria e Verona (todos eles campeões nacionais entre 1983 e 1991), a revista ganha asas. Se os protagonistas jogam lá, é fácil entender o fascínio pelo GS. Só se vende em papelarias de gabarito internacional, como aquela nas traseiras da Avenida Columbano Pinheiro. Paga-se em escudos (um décimo do preço de capa, em liras) e folheia-se com prazer. Nas fichas de jogo da Serie A, há fotografias de todos os golos (ou consequentes festejos) e até desenhos das jogadas desses momentos gloriosos. Uma vez, a capa é o Uomo Ragno. Dá que pensar. O Uomo Ragno, quem é esse? O homem-ranho? Não, nem pensar. Em Itália, o Uomo Ragno é o Homem-Aranha. É a alcunha de um dos guarda-redes mais míticos dos anos 80: Zenga. Cinco letras apenas bastam para mexer com o pessoal dessa época. Zenga representa o Inter e a Itália. Dois i com muita pinta. A esses, é favor juntar mais um, se faz favor: o do jornal i. Começa aqui a paródia de um guarda-redes com respostas para tudo e uma bagagem infinita como contador de histórias. Apanhamo-lo no Dubai.
Zenga, o uomo ragno. Durante anos e anos, olhava para a capa do Guerin Sportivo do meu pai e ficava a pensar ‘o homem ranho’ [acrescentamos um atchim e fingimos um assoar de nariz entre um italiano pouco ou nada habilidoso para dar a entender a nossa matarruana ideia] Aaaaaaahhhh, amico, isso é o fascinante mundo das línguas. É incrível, não é? Fazme lembrar o meu primeiro treino no National Bucareste, na Roménia. Chego lá para o primeiro treino, reúno a malta toda e pergunto-lhes ‘alguém fala italiano?’ Pfff, silêncio. Depois pergunto-lhes ‘e inglês?’ Outro silêncio. Estou tramado, digo eu para mim e também para o meu adjunto, o Petrescu. Saltamos para o campo, treino de duas horas. Trabalhamos no duro. No final, entre relvado e balneário, o capitão Gabriel [Caramarin] vira-se para mim e solta num perfeito italiano ‘aqui somos todos poliglotas mas queríamos saber o que ias fazer a seguir ao silêncio.’
[quero fazer a segunda pergunta e sou apanhado na curva]
Queres outro belo exemplo? Chego aos EUA para jogar nos New England Revolution e não sei nada de nada de inglês. Quem me ajuda é o Alexi Lalas, aquele da barba ruiva, sabes? Bom, adiante. No meu primeiro jogo fora de casa, em Dallas, vejo o roupeiro e aponto-lhe o meu armário enquanto digo ‘coisas, ok?’, como quem diz mete-me aqui o equipamento. E o equipamento não vinha. Lá está, teve de ser o Lalas a explicar-me, entre sorrisos, que ali cada um era responsável pela sua roupa. Tudo ao contrário de Itália. Se eu estivesse à espera do roupeiro, ainda lá andava.
Quando é que nasceu a alcunha do Uomo Ragno?
Amico, não me lembro disso. Não sou muito de viver o passado. Nem tenho fotografias desses tempos lá em casa. O passado já foi. Temos de viver o presente em benefício do futuro. Comecei a ler muito sobre isso quando jogava no Inter do Trapattoni. Zenga isto, uomo ragno aquilo. Houve até um jornalista, italiano, claro, que me disse uma vez que eu defenderia aquela bola do Van Basten no Euro-88. Bah, quer dizer, aquilo foi um golo impossível. Não poderia impedi-lo. Mas ele insiste que sim, que o Dasaev era completo mas uma autêntica estátua. Não se mexia, ao contrário de mim. Tu, Zenga, diz-me ele, defendias aquilo. Não sei, não sei. Mas o uomo ragno devia-se a isso mesmo, ao facto de fazer defesas impossíveis e, claro, de montar uma teia de aranha na minha baliza, fosse ela no Meazza ou em Turim.
Ou em Lisboa. Falo daquele empate com o Sporting nas meias-finais da Taça UEFA 89-90. Aquilo foi um jogo de sentido único e nem um golo?
Aaaaaaah, aí jogámos encolhidos e o Sporting fez tudo para marcar um golo. Não conseguiu mas lembro-me de uma noite trabalhosa. O Trapattoni já nos tinha alertado para isso. Aliás, nem precisava. O Sporting eliminara o Bolonha na eliminatória anterior e percebíamos que estavam com fome de bola. Nessa noite em particular, não houve um jogador que fez dois ou três remates na minha cara sem acertar com a baliza? Quem era, sabes?
Oceano?
Sim, sim, talvez, quem sabe? Acho que era. Oceano. Huuum, sim, Oceano, é isso. É só puxar pela cabeça. O português que mais me lembro é o Rui Barros, da Juventus. Era pequenino mas estava sempre ligado à corrente. Quando o via lá ao fundo, ele era pequeno. Mas quando se aproximava, ele aumentava de tamanho. Ele crescia nos jogos grandes.
E o que lhe diz o nome Caniggia?
Aí estás a mexer numa ferida antiga. Só o Maradona é que me percebeu nesse lance. O Caniggia antecipou-se à minha antecipação, tão simples como isso. Sim senhor, saí dos postes mas era claro como água como ia atirar a bola para bem longe. Acontece que o Caniggia foi esperto e intrometeu-se entre mim e o Ferri. Um-um. Foi o meu primeiro golo sofrido nesse Mundial, e nas meias-finais. Depois disso, o jogo arrastou-se para os penáltis e quê? [pausa] [silêncio]
Há aí história?
Embrulhei aqui as histórias e lembrei-me de um desempate de penáltis pelo Steaua com o Valencia, 16 avos-de-final da Liga Europa. Perdemos 2-0 no Mestalla. Quando chegamos ao balneário, digo aos meus jogadores ‘a partir de amanhã, treinamos penáltis todos os dias’. Na 2.ª mão, ganhámos 2-0 e passámos para os oitavos porque o Di Vaio falhou um penálti. Nunca vi Bucareste acordada até tão tarde.
Há aí história, insisto pelo Itália-Argentina do Mundial-90.
Scusa, scusa [desculpa desculpa]. Nunca defendi um penálti em 20 anos na baliza. No outro lado, estava um monstro chamado Goicoechea, que resolvera a eliminatória com a Jugoslávia. Perdemos no desempate. E perdi sobretudo eu. Porque a partir daí a minha vida em Itália mudou. As pessoas começaram a insultar-me a meio dos jogos, a insultar a minha família e até entoavam cânticos de Argentina, Argentina. Não, assim não. Fui para os EUA e sabes o que vivi lá?
Nem ideia.
Uma experiência lindíssima. Tanto assim é que deixei amigos e mais amigos. Um dia, volto a Boston para um jogo de despedida e dão-me um microfone para falar aos adeptos. Detalhe, nesse dia, perdemos 5-1. Seja como for, eles aplaudem-nos como se fossemos os seus heróis. E somos, no fundo. Microfone na mão e eu começo por dizer ‘i have a dream’. Não digo mais nada porque há invasão de campo. E eu não sabia nada do discurso de Martin Luther King, que ignorante! Eles invadem o campo, umas 42 mil pessoas, e o presidente do clube fica tão impressionado com a fama que me oferece logo ali a renovação por mais um ano. Que cultura. Admiro-a profundamente.
Roménia e EUA. Também treinaste na Sérvia, não foi?
O Estrela Vermelha, o maior clube que já treinei. Aquilo é um mundo à parte. Inimaginável. Nos dérbis com o Partizan, o presidente que era o Stojkovic, um homem extraordinário e figura da Jugoslávia no Mundial-90, obrigou-me a passar toda a semana acompanhado por dois seguranças. Aquilo faz faísca A viagem para o estádio deles é feito num autocarro blindado. Chove de tudo. Jogamos, vestimo-nos e reentramos no autocarro. Nem sequer tomamos banho. Atravessamos a avenida [tipo 2.ª Circular] e entramos no nosso estádio, o Marakanã. Só assim é que falamos aos jornalistas. No território inimigo, não se passa nem um minuto mais que o necessário.
E Turquia, no Gaziantepspor?
Também se sente a rivalidade, mas a um outro nível. Talvez se tivesse estado num Fenerbahçe, Galatasaray ou Besiktas… No Gaziantepspor só me lembro de um episódio engraçado: fomos jogar a Istambul e pedi autorização ao árbitro para atrasar o início do jogo por uns minutos para tirar fotografias debaixo da baliza em que o Liverpool marcou os três numa determinada final europeia [3-3 vs. Milan em 2005].
Ai é assim? Eu sou do Milan, sabes?
[volta o scusa, scusa do uomo ragno misturado com gargalhadas bem sonoras]
E, olha, aquela equipa das camisolas esquisitas? [pimba]
Boavista. Fomos surpreendidos aí em Portugal [2-1] e não conseguimos dar a volta em Itália [0-0]. Foi pena. E também foi a demonstração de que as surpresas acontecem, que há equipas determinadas em atingir o sucesso e conseguem-no com trabalho, muito trabalho. Mas eu não disse aquilo das camisolas esquisitas. Foi outra pessoa. [ao quem?, seguem-se risos]