Great Scott #374: Quem é o número 10 do Sporting com taquicardia a meio de um jogo?
Ronaldo
Diz Aurélio Pereira, o homem com o olho mais vivo deste mundo e arredores. ‘Ronaldo caiu no Sporting como um ovni. E pensar que tudo começou com uma dívida da transferência do Franco que impedia o Nacional de inscrever jogadores se não pagasse os direitos de formação, a nós e ao Odivelas. Entra em acção Marques Freitas, o presidente do núcleo sportinguista da Madeira e também sócio do Nacional. Contactou-me para dizer que o Nacional tinha um miúdo muito bom e perguntou se podia haver um encontro de contas. A dívida, diga-se de passagem, era na ordem dos quatro mil e quinhentos contos.
Estávamos em 1997, reinavam os escudos e os contos. Agora é mais euros e aí seria qualquer coisa como 25 mil euros. Quando a hipótese me foi colocada, nunca pensei no sucesso da missão. Até porque não tinha visto nunca o miúdo de quem ele falava. Mas como tinha um respeito por Marques Freitas, um senhor muito educado e sempre presente, e a sua persistência era muita, arrisquei um estágio de oito dias em Lisboa. ‘O doutor manda-me o miúdo e paga as passagens’.
O núcleo do Sporting na Madeira pagou as duas passagens ida e volta. Uma para o tal miúdo, outro para o seu padrinho, Fernão Sousa. Não o fui receber ao aeroporto nem vi o primeiro treino, no campo do Sporting da Torre. Essa honra coube ao Osvaldo Silva e ao Paulo Cardoso, ambos responsáveis técnicos desse escalão. Escreveu Paulo Cardoso o seguinte: ‘Organizámos um jogo. Fisicamente, Cristiano não chamava a atenção. Além disso, havia alguns rapazes mais velhos. Na primeira vez que apanhou a bola, descartou-se logo de dois ou três adversários. Olhei para o Osvaldo Silva e disse-lhe ‘viste? o que foi isto?’ Passam uns minutos e a acção repete-se: velocidade, dribles, coordenação. Como nos chamou a atenção, no dia seguinte fizemos uma segunda prova, nos nossos campos ligados ao Estádio José Alvalade, para que o Aurélio Pereira e outros técnicos pudessem observá-lo com mais tranquilidade e comodidade.’
Mal me viram, disseram-me que o miúdo estava, de facto, para além do normal. Fui ver o segundo treino e confirmei tudo o que me tinham dito: desenvoltura fantástica, velocidade de execução, jogo aéreo, pé direito, pé esquerdo. Tive a sensação de que estavam todos completamente rendidos ao miúdo. Às tantas, um miúdo chamado João Oliveira está a marcá-lo muito em cima, antes de um lançamento lateral, e ele volta-se para dizer: ‘ó miúdo, tem lá calma’. Como é que é possível?! ‘Ó miúdo tem calma’ quando ele era o mais novo?! Chamava-se Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro e tinha todo ele o futebol de rua nos seus movimentos. O à-vontade e o não ter medo de nada, características imprescindíveis para ir longe, muito longe. O Ronaldo veio definitivamente para Lisboa em 1997-98. Ele era tão bom que se metia a dar toques no pavilhão por debaixo da bancada e até os seniores iam vê-lo.
O Ronaldo representa o futebol de rua na sua plenitude. Bem sei que há uma profunda diferença entre o futebol do passado e o do presente. Tudo melhorou: a formação dos treinadores, o conhecimento e a experiência casaram na perfeição, as novas tecnologias permitem avanços fantásticos, as equipas técnicas preenchem todos os requisitos e abrangem todas as áreas de treino. Nada se faz ao acaso. Tudo isso é verdade, mas há uma coisa que se mantém e que, afinal de contas, é a principal razão do sucesso. O futebol continua a ser jogado por humanos e, às vezes, as pessoas esquecem-se desse detalhe pela maneira como falam e olham a modalidade como se tudo pudesse ser antecipado e controlado pelo lado científico desumanizado. Nada mais errado. Para mim, o jogador é o elo mais forte. Sou um defensor ferrenho do futebol humanizado não mecanizado. Aprendi isso na escola da vida, onde as propinas são mais caras. No caso de treinar os mais novos, aprendi a evitar a especialização precoce, a intervenção sistemática na decisão do atleta e a gestão do erro. O futebol é um jogo de erros, é preciso saber conviver com eles para crescer com maior segurança. Em suma, a criança deve jogar muito para aprender, e não aprender muito para jogar.
Dizia eu, o futebol é um jogo jogado por humanos. Há excepções, como Futre, Figo, Ronaldo e outros. Ronaldo, como disse, caiu como um ovni. Foi um ET. Se não ficasse no Sporting, o Nacional era obrigado a pagar-nos 25 mil euros. Se ficasse, a dívida ficava amortizada. Para justificar uma ou outra decisão, tinha de redigir um relatório para a direcção. Fiz, claro. E eles ficaram muito espantados com a proposta de aquisição do Ronaldo. A primeira reacção foi para o conselho directivo, na pessoa de Simões de Almeida, com conhecimento para o gabinete jurídico, à atenção de Rita Figueira No dia 28 Junho 1997, escrevi o seguinte: ‘Apesar de parecer exagerado o custo pretendido por este jovem de 12 anos, poderá no futuro ser um grande investimento, face à qualidade demonstrada nos teste efectuados juntos dos nossos técnicos.’
Uma semana depois, a Rita Figueira envia-me outro faxe. ‘Relativamente à eventual transferência do jogador infantil Ronaldo, do Nacional, agradecia que nos informem, uma vez que na comunicação que me foi feita não resulta suficientes claro, por quanto tempo é que o Nacional irá suportar as despesas escolares, de estadia e deslocação ao jogador. Este é um elemento essencial para que se possa analisar a proposta, uma vez que o Sporting, como contrapartida, tem de renunciar imediatamente à indemnização decretada pela FPF de quatro mil e quinhentos contos.’
Na resposta, escrevi que o Núcleo do Sporting na Madeira suportaria as despesas, que tudo fora tratado entre o Núcleo e a Isabel Trigo Mira, a quem o Sporting deve muitíssimo, e que o jogador em questão era de valor acrescentado. ‘Informo que este jovem tem como praticante de futebol qualidades muito acima da média e estou em crer que justificará o investimento aparentemente avultado nesta altura.’ Eles, do departamento financeiro e jurídico, chamaram-me. Para os homens do dinheiro, um cêntimo é um euro. O Simões de Almeida questionou-me, na sala de administração. Disse de minha justiça e, passado meia-hora, a Rita Figueira ligou-me a dizer que o Simões de Almeida assinara o tal documento. O Ronaldo era nosso. Curiosamente, uns anos mais tarde, no dia da inauguração do novo estádio do Sporting, encontrei o Simões de Almeida a beber um café, num quiosque junto aos camarotes. ‘Então, o miúdo?’ perguntei-lhe. E ele, a rir-se, ‘joga umas coisas, joga umas coisas’.
Repito-me, o Ronaldo era nosso. Só falta assinar. Fui à Madeira, aproveitei uma viagem dos juniores do Sporting, treinados pelo meu irmão. Reuni a família do Ronaldo no Hotel Infante Dom Henrique, no centro de Funchal. Falámos, jantámos e assinámos. Foi no dia 7 de Junho de 1997. Lá está o sete. Ele só perguntava ‘onde está a caneta, onde está a caneta?’. Já aí mostrava um miúdo com olho vivo e pé ligeiro. Foi agradável e útil conhecer os alicerces do Ronaldo. Nunca me esquecerei dos olhinhos dele, a brilhar intensamente, ao lado da mãe Dolores – que é uma sportinguista dos sete costados. O pai também estava, e até bebemos uma poncha.
O acordo foi pagar ao Ronaldo dez contos por mês (50 euros), porque sabíamos que ele ia mesmo dar jogador da bola. Dos bons, digo. Porque o Ronaldo tinha tudo no seu ADN, nós não lhe subtraímos nada. Aumentámos-lhe a possibilidade de criar e foi o próprio Ronaldo quem se transformou num jogador da indústria futebolística. Quando entrou no Manchester United, era mais artístico. Quando chegou ao Real Madrid, transformou o seu jogo e fez-se goleador por conta própria, ao ponto de ultrapassar duas lendas do golo do clube como Di Stéfano e Raúl. Quando aterrou na Juventus, Ronaldo é o golo em si. Com a sua tenacidade e condição física, vai jogar nas calmas até aos 37/38 anos.
Dito isto até me emociono a pensar em todas as dificuldades passadas por ele neste caminho desde a Madeira em 1997. Só para perceberem bem a coisa, o Ronaldo foi cobiçado pelo Benfica em 1999. As saudades da família eram muitas e o Benfica atravessou-se no caminho com uma proposta que incluía trabalho à dona Dolores em Lisboa mais uma casa alugada. Soubemos dessa investida e, em apenas dois dias, resolvemos a situação. Pus-me em campo e tratei do assunto em conjunto com a administração do Sporting. O novo contrato, assinado com a presença da mãe, durava quatro anos, de 1999 até 2003. No primeiro ano, o Ronaldo ganharia 50 contos (250 euros). No segundo, 75 (€375). No terceiro, 100 (€500). No quarto, 125 (€625). Com direito a subsídio de férias e de Natal mais seis viagens de ida e volta até ao Funchal, fossem para ele ou família.
A nossa estratégia não acaba aqui. Nesse mesmo mês de Setembro 1999, Ronaldo estreia-se a capitão do Sporting, na Reboleira, vs Estrela da Amadora. Um mês depois, em Pina Manique, vs Casa Pia, apanhámos (ele e todos nós) um valente susto. À meia hora de jogo, o árbitro apitou de repente, o Ronaldo estava a sentir-se mal. Um princípio de taquicardia.
O enviado-especial do Jornal Sporting a Pina Manique é José do Carmo Francisco. O relato é cru. ‘Jogo muito complicado, num lamaçal impróprio e com um relvado impecável ali ao lado. Era uma manhã própria de Outubro, com chuva, frio e vento. Sem que nada o fizesse prever, o árbitro António Cardoso interrompe o jogo para assistir o número 10 do Sporting e chama o enfermeiro Manuel Fontinha, que ainda hoje trabalha no Sporting. O pulso do Ronaldo estava rápido demais e foi preciso uma injecção para suster a taquicardia. Mais tarde, soube-se que o problema era grave e congénito, porque o músculo do coração funcionava em duplicado. Ou seja, batia muito depressa’
Volta Aurélio à fala. ‘A mãe Dolores soube logo do sucedido por telefone e, claro, ficou em sobressalto. Tal como nós. Foi um susto daqueles. E passou, felizmente. Graças à velocidade de reacção dos médicos do Sporting, falo da dupla Virgílio Abreu e Gomes Pereira. O Ronaldo foi submetido a uma operação a laser no Hospital de Santa Cruz, em Carnaxide, e recomeçou a treinar na semana seguinte, com todos os cuidados. Disse-o e repito-o quantas vezes forem precisas: Ronaldo é um menino abençoado por Deus.’
Ronaldo volta a jogar uma semana depois do princípio de taquicardia, a 24 Outubro, vs Alverca, como substituto na segunda parte; no sábado seguinte, 31 Outubro, vs Amora, outra presença como substituto na segunda parte, aqui coroada com um golo; a primeira vez em que é titular acontece seis semanas depois do episódio em Pina Manique, vs Estoril, a 28 Novembro.