Great Scott #499: Quem é o único a marcar por 21 épocas seguidas na 1.ª divisão portuguesa?

Great Scott Mais 03/17/2022
Tovar FC

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Great Scott #499: Quem é o único a marcar por 21 épocas seguidas na 1.ª divisão portuguesa?

José Torres

Quem garante o terceiro lugar de Portugal no Mundial-66? Quem marca por 21 épocas seguidas na 1.ª divisão? Quem troca de camisola com Pelé no Mundial-66? Quem tem mais de 1,90 metros de altura? José Torres, de seu nome. É único, é especial. É o bom gigante.

Da família, José herda o apelido Torres e a habilidade para o futebol: o pai Francisco é defesa do Carvelinhos, o tio Carlos chega mesmo a representar o Benfica por quatro épocas, de 1933 até 1937, com um total de 34 golos em 60 jogos e dois títulos (campeonato da 1.ª divisão, Taça de Portugal). “Atenção, o meu pai só não foi para o Benfica porque o meu tio já tinha um pequeno negócio de peixe em Torres Novas e desviou-o, por assim dizer.” Curiosamente, também o pai quer fazer isso ao filho. “Ele não queria que eu jogasse porque achava-me muito fraquinho e tinha medo que eu ficasse tuberculoso. Foi preciso o senhor Henrique, encarregado da Oficina dos Claras, vir falar com o meu pai para acelerar o meu processo como futebolista. Mas só fui com a condição de fazer um completo exame médico.”

Oficina dos Claras? Antes de ser futebolista, Torres é aprendiz de serralheiro mecânico. “Entre 1953 e 1959. Curiosamente, não existo para a Segurança Social como futebolista, só como serralheiro. Soube isso quando meti os papéis para a reforma; de todos os descontos no Benfica, Estoril e Vitória FC, nem sequer um entra na Segurança Social.” Por via disso, Torres passa os últimos anos da sua vida a receber 400 euros de reforma. Uma vergonha a todos os níveis. Inqualificável, mesmo. Como é que Torres convive com essa tramóia? “Quando se é jovem, quando se tem 24 anos e se joga ao lado do Eusébio, ninguém pensa na reforma que é uma coisa a 40 anos de distância. Rasgava os recibos, não ligava nada a essas coisas. Queria era jogar à bola e divertir-me.”

Diverte-se e diverte os demais, Torres é um paz de alma, sempre brincalhão. Conta Simões a propósito: “Uma das travessuras mais frequentes era meter a sua dentadura na sopa de alguém, às escondidas. Está a ver o ar de qualquer um de nós a levar a colher à boca, não está?” A sua altura já se faz sentir a bem do futebol no campo do Clube Desportivo de Torres Novas, onde Torres brilha intensamente à conta de 105 golos em duas épocas na 3.ª divisão. A eficácia traduz-se em convites além-fronteiras. “Uma vez, fomos a Badajoz para disputar um torneio chamado a Taça Monumental e deram-nos como pensão um quartel abandonado com sacos de palha em vez de colchões. Mudámo-nos para um asilo, onde os velhos só tossiam. Dentro do campo, foi o bom e o bonito: ganhámos 4-1 mas o árbitro estava a prolongar o jogo para ver se a equipa da casa conseguia o empate. Às tantas, o alcaide entra em campo e acaba com aquela fantochada.” Calma, há mais deste material. “A organização só nos deu batatas cozidas com feijão verde, tivemos de comprar atum. A sorte é que foi divertido e a banda de Riachos tocou durante toda a viagem.”

Em 1959, o treinador brasileiro Otto Glória, de saída do Benfica, dá o sim à sua contratação. O tempo dar-lhe-á razão. Só que o tempo, esse malandro, demora a passar. “Ouça, o José Águas era a nossa referência, porque era lindo de morrer, como diziam as senhoras daquela época, e porque marcava golos a torto e a direito, fosse com o pé direito, o esquerdo ou a cabeça, fosse de vólei ou só encostar, fosse dentro ou fora da área. Além disso, o Águas era o nosso capitão. Para que Torres entrasse na equipa, foi preciso penar.” Tem razão, Simões.

Para se afirmar na primeira equipa, Torres teve de penar. E muito. Até vê muitos craques passarem-lhe à frente, como Eusébio. É célebre a conversa entre os dois no Lar do Jogador, na ressaca de um jogo do Benfica na Covilhã, para o campeonato. “Acho que tenho lugar nesta equipa”, diz Eusébio. Ao que Torres responde: “A sério? Tens de saber esperar, porque eu estou aqui há um ano e ainda não me deram uma oportunidade de criar raízes no onze.” A nível oficioso, Torres até joga de quando em vez. “Na Escócia, em 1960, um jornalista escocês disse que eu parecia um jogador de basquetebol e o Guttmann respondeu que eu jogava pouco mas já valia dois mil contos ao Benfica se me quissessem contratar. E depois acrescentou, ‘dentro de três anos, nem o conseguem contratar pelo dobro’.”

Três épocas, diz Guttmann. Até parece bruxo. Será? A verdade é que Torres demora três épocas a chegar ao topo. Enquanto isso, só é chamado na ausência de Águas, por lesão. Na primeira época, em 1959-60, acontece duas vezes. Em ambas, Torres deixa a sua marca indelével do golo: um ao Covilhã, outro à CUF, ambos na Luz. Em 1960-61, repete-se o cenário: dois jogos, dois golos (Braga, na Luz, e Académica, na Luz). Há um senão. Bem glorioso, por sinal. Na Taça de Portugal, o Benfica de Guttmann elimina Salgueiros e Olhanense com 22 golos. À sua conta, Torres inscreve nove, com destaque para um póquer em Olhão e um hat-trick no Porto.

Por incrível que pareça, isto dos números repete-se com frequência. Vai daí, mais dois golos em dois jogos na época 1961-62 (CUF, no Barreiro, e Vitória, em Guimarães). Na Taça de Portugal, mais uma demonstração inequívoca de eficácia com 13 golos em seis jogos. Desses 13, quase metade é ao Ferroviário da Beira (seis num 7-1). Na Europa, o Benfica sagra-se bicampeão europeu. Ao 3-2 vs Barcelona em Berna, dá o 5-3 ao Real Madrid em Amesterdão. Nessa noite gloriosa, os regulamentos da UEFA impedem Torres de dar o seu contributo. “A minha maior mágoa é não ter sido campeão europeu, culpa de uma regra sem pés nem cabeça. O Cavém lesionou-se nessa final e eu podia ter entrado, só que ainda não era o tempo das substituições. Daí para a frente, foi um calvário. Perdemos todas as três finais, com Milan, Inter e Manchester United.”

A saída de Bela Guttmann e a entrada de Fernando Riera contribuem para a reviravolta na vida de Torres. “Precisei de muitos golos na equipa das reservas para chegar à principal. Foi obra de Riera, que falou comigo depois de eu ter marcado dez golos num 12-0 ao Alhandra. Passei assim à primeira categoria e, na estreia, marquei três golos ao Belenenses numa vitória por 4-1.” Está lançado. E de que maneira. Na primeira época a titular, em 1962-63, Torres comete a proeza de se sagrar melhor marcador da 1.ª divisão, com 26 golos – mais dois que Lourenço (Académica) e três que Eusébio (Benfica). “Há dois jogadores”, conta Simões, “esquecidos ou pouco falados dessa era do Benfica: um é o Torres, o outro é o Jaime Graça. Veja lá isto, o Torres foi melhor marcador de uma equipa com o Eusébio. Isso diz tudo sobre o Torres. Só que há mais, muito mais sobre o Torres. Que demorou o seu tempo a conquistar os adeptos, que se queixavam do seu estilo a correr com os joelhos para a frente em comparação com o Águas, que era elegante a correr para a frente, de lado, de costas, enfim em tudo. Só que os golos silenciam qualquer contestação.”

Golos, eis a palavra chave de Torres. No final da primeira volta da 1.ª divisão 1962-63, o número de golos equipa-se ao de jogos (13). Destaca-se um póquer ao Feirense (6-1). Na segunda volta, outro póquer (Vitória SC 6-2). Sem esquecer as assistências, sobretudo para Eusébio. “Havia jogos em que, às tantas, atirávamos a bola lá para a área. Se o Torres acertasse bem, era golo. Se não, o Eusébio estava atento à segunda bola.” A táctica dá certo, o Benfica é campeão nacional e impede o bi do Sporting. Como tal, Torres ganha a primeira internacionalização, com a Bulgária, em Roma, no jogo de desempate para o Euro-64.

A partir daqui, tanto Benfica como Portugal preenchem a vida de Torres. E vice-versa. Basta ver os números na época 1963-64. Torres só faz 15 jogos e assina 22 golos. Há sete bis e dois hat-tricks nesse registo absolutamente demolidor. Quer dizer, a pré-época já indicia boas vibrações a avaliar pela final do Ramón Carranza, o lendário torneio de Verão em Cádis. O Benfica, sem Torres, elimina o Barcelona na meia-final, por 3-2. Na decisão, a 1 Setembro, a Fiorentina ganha 1-0 ao intervalo. Para a segunda parte, sai o número 9 Santana, entra o 12 Torres. O que se segue é uma exibição majestosa, com quatro golos, dois dos quais no prolongamento. Acaba 7-3 e Torres é obviamente o melhor em campo. “Não só pelos quatro golos”, escreve o Diário de Lisboa, “mas por ter estado em todo o lado, até na defesa, a enxotar bolas nos períodos mais críticos.”

A fartura de golos é uma realidade constante. Daí que seja o melhor marcador da Taça dos Campeões 1964-65, com nove golos (cinco ao Aris Bonnevoie, dois ao La Chaux-de-Fonds e outros ao Vasas, na meia-final). Na 1.ª divisão, é comum ultrapassar a fasquia da dezena antes do fim da primeira volta. Na selecção, a pontaria também dá finalmente os seus frutos: um golo à Suíça, em Zurique, e dois à Inglaterra, no Jamor. Na qualificação para o Mundial-66, Portugal é Eusébio, Eusébio e mais Eusébio. O nome de Torres só aparece antes da fase final, com sete golos em quatro golos nos particulares com Escócia (1), Dinamarca (2), Uruguai (3) e Roménia (1).

No Mundial propriamente dito, Torres dá o ar de sua graça. Sela a vitória sobre a Hungria (3-1), no jogo inaugural. Sela a vitória sobre a Bulgária (3-0). Ambos em Old Trafford. E sela o terceiro lugar, com o 2-1 à URSS de Yashin. O jogo está quase quase a ir para o prolongamento, quando Torres combina bem com José Augusto e acaba com a dúvida. Ufffff. Curiosa então a declaração do francês Just Fontaine, melhor marcador do Mundial-58 com 13 golos. “Fala-se de Eusébio, um terrível rematador que tem, no entanto, o defeito de pensar mais em si do que nos companheiros e cita-se Bobby Charlton. Mas eu gostaria de vê-los, dentro da grande área, a lutar como luta Torres. Este avançado é um caso raro de utilidade. Como é esforçado e inteligente, o seu jogo de cabeça é perfeito, do melhor que se tem visto em toda a história. Ele marcou três golos e deu pelo menos uns dez.” Justificadíssimos os 10 contos a Torres.

Como assim, dez contos? O prémio da FIFA para o melhor marcador desse Mundial da Inglaterra é 80 contos. Recebe-o Eusébio. Que divide com Torres. “Já tínhamos combinado: se o ajudasse a ser melhor marcador, ele dava-me uma parte. Assim foi.” E é muito, dez contos em 1966? Só para se ter uma ideia: “Joguei no Benfica durante 12 épocas e nunca recebi mais do que quatro contos. Recebia luvas mas nada de especial. Por exemplo, nos primeiros cinco anos de Benfica, recebi 75 contos de luvas, enquanto outros como Serafim e Iaúca faziam contratos milionários.” Na ressaca do Mundial, continua a haver golos para todos o gostos. O mais importante é o da final da Taça de Portugal 1970, com o Sporting, no Jamor: 2-0 a Damas. É o canto do cisne. No Benfica, queremos dizer.

Em 1971, já com 33 anos de idade, o seu nome está envolvido na transferência mais cara até então do futebol português: o Benfica contrata Vítor Baptista a troco de três mil contos mais Torres, Matine e Praia. “Saio de consciência tranquila. Fiz o meu dever, com 280 golos nas reservas mais 226 na equipa principal. Agradeço a todos os treinadores que me ensinaram: Guttmann era astuto, Riera era um homem de grande cultura, que falava sempre nos olhos. E agradeço ao Benfica a oportunidade de ter viajado por todo o mundo. O país que me ficou para sempre gravado no coração foi o Japão. Pela simpatia das pessoas e pelas coisas espantosas que já vi, como uma espécie de Avenida da Liberdade com 42 quilómetros e parques subterrâneos de estacionamento a cada dois mil metros.”

Na despedida, a 31 Julho, com o Arsenal, o treinador inglês Jimmy Hagan dá-lhe a titularidade e substitui-o para os aplausos aos dois minutos. Não é gralha, não senhor, é mesmo dois minutos, 180 segundos. O jogo pára e Torres sai. Para o Bonfim, onde ainda joga quatro épocas ao nível mais alto. Tanto na 1.ª divisão, com 58 golos, como na UEFA, com 14. É obra, sem dúvida. Ainda marca 14 vezes nas competições europeias, a clubes como Leeds, Tottenham, Estugarda, Nîmes, Beerschot e Spartak Moscovo. “Os segredos de Torres”, salienta o inevitável Simões, “baseiam-se na alimentação, sempre regrada e sem álcool, e também na família. Ele sempre foi apaixonado pela mulher e essa estabilidade emocional constante garante a qualquer um mais anos de boa vida.” Alcinda é o nome da senhora. Para Torres, a outra desportista da família. “Só que o desporto dela é outro: é uma artista a bordar, a fazer pequenas esculturas de gesso, a pintar naif. Houve um dia em que um jornalista da revista Ler gostou muito do seu trabalho e pediu-lhe para exibi-lo no Casino Estoril.”

Olha olha, liga mesmo bem: Estoril. Estamos em 1975 e agora? Aos 36 anos de idade, Torres sai do Vitória e assenta arraiais no Estoril. Por cinco anos (ya, até aos 41), a Amoreira vibra com as aventuras do bom gigante, assim alcunhado pelo coração de ouro e a facilidade em marcar golos. Um deles seria histórico, na Luz, a 2 Novembro 1977, no dia em que o realizador italiano Pier Paolo Pasolini é assassinado. O Estoril leva uma cabazada nomal de 7-1 e é de Torres o último festejo da tarde, aos 88 minutos. A alegria nas bancadas é audível até em Torres Novas. Tal como os aplausos, por ocasião da entrada em campo, para o lugar de Nélson Reis, aos 53 minutos. O coração não esquece, razão que alguns homens alienam. Siga a marinha.

Torres é uma máquina e acumula golos em 1976-77 (Portimonense, Porto, Braga e Leixões), 1977-78 (Académica), 1978-79 (Varzim) e 1979-80 (União). É em Leiria que Torres marca pela 21.ª edição seguida do campeonato. Que estrondo, senhoras e senhores. Que sensação. É de homem. Nunca antes visto, jamais repetido. Pelo meio, é novamente o herói, em 1978, ano em que recebe a taça para o jogador mais correcto da 1.ª divisão. “É o melhor troféu aqui de casa. Esse e a Bola de Prata pelo título de melhor marcador em 1963. E, já agora, a camisola do Pelé no Mundial-66.” Essa é que é essa, Torres tem a amarelinha número 10 (a do Brasil, não a do Torres Novas). De má memória para Pelé. De bom augúrio para Torres.

Eis a sequência de golos nas 21 épocas

1959-60 1
1960-61 2
1961-62 2
1962-63 26
1963-64 22
1964-65 23
1965-66 18
1966-67 8
1967-68 17
1968-69 16
1969-70 13
1970-71 2
1971-72 21
1972-73 13
1973-74 15
1974-75 4
1975-76 7
1976-77 4
1977-78 1
1978-79 1
1979-80 1
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