Great Scott #500: Único melhor marcador da 2.ª e 1.ª divisão portuguesas?
Yekini
África minha. Nossa. Deles. É um continente peculiar, sem dúvida. Esqueçamos por breves momentos todos aqueles internacionais portugueses nascidos e criados na África colonial, concentremo-nos nos africanos de gema, digamos assim. Há uma série de históricos com agá maiúsculo na 1.ª divisão portuguesa e até dá para fazer um plantel competitivo, entre guarda-redes inultrapassáveis como Rufai, defesa-centrais altamente competitivos como Naybet, médios cerebrais como N’Dinga, extremos mais rápidos que a própria sombra como Amunike, implácaveis marcadores de livres directos como N’Kama e goleadores destemidos.
É assim, goleadores destemidos sem exemplos? Há mais de uma mão cheia deles. Incluo apenas os melhores marcadores da 1.ª divisão, por ordem cronológica: Vata (Angola) 1989, Ricky (Nigéria) 1992, Yekini (Nigéria) 1994, Hassan (Marrocos) 1995, Fary (Senegal) 2003, McCarthy (África do Sul) 2004 e Meyong (Camarões) 2006. Todos eles deixam uma marca indelével no futebol português. E até europeu, como Vata a esticar o braço direito no golo decisivo do apuramento benfiquista para a final da Taça dos Campeões 1990. Agora de todos eles, só há um que acumula o título de melhor marcador da 1.ª divisão com o da 2.ª. E, ainda por cima, em anos seguidos.
Rashiiiiiiiiiidi Yeeeeeeeeeekini. Há quem ligue ao número de títulos para definir o melhor dos melhores. Há quem some os golos da carreira para desempatar uma comparação entre jogador x e y. E há quem só enumere as fintas, como Maradona, que sabe de cor e salteado quantos túneis faz e a quem. No caso africano, a definição de um craque vale pela entoação do nome futebolístico em comentários televisivos e radialistas de qualquer cadeia. Durante os anos 90, Rashiiiiiiiiiidi Yeeeeeeeeeekini é a figura mais sonante, o avançado mais possante, o goleador mais entusiasmante. Diz a história, corroborada com números do além.
E a história de Rashidi? É a mais conturbada possível e imaginável. Nasce como Rashidi Labioye em Kaduna, como segundo filho do casal Sikiratu e Yekini Labioye. Convive com nove irmãos, fruto das duas mulheres do pai (à luz da lei muçulmana, qualquer homem pode ter até quatro mulheres ao mesmo tempo), e cresce agarrada à bola. Sempre a bola. Fora a bola, o que mais o prende? Nada. Rashidi balda-se às aulas à grande e à nigeriana. Arrasta consigo os irmãos mais novos Kamoru (guarda-redes) e Akeem (apanha-bolas). Os três fazem gazeta sem parar, mas só Rashidi apanha a valer da mãe. Apanha mesmo.
E aprende a lição? Essa é boa, claro que não. No dia seguinte, Rashidi comete o mesmo pecado. A brincadeira repete-se em parar. Uma vez, Rashidi nem aparece em casa durante duas semanas. O pai, mais preocupado que nunca, procura-o incessantemente e acaba por encontrá-lo em Jaaji, perto de um complexo militar, a jogar um torneio.
À bronca segue-se a ida para casa, sem nenhuma palavra pelo meio. No dia seguinte, o melhor amigo do pai toma conta da ocorrência e sugere a vida do campo para Rashidi, em Ira, onde vive Kasali, o irmão mais novo de Yekini Labioye.
Na casa do tio agricultor, a vida torna-se um inferno constante. Além de ser mal tratado constantemente, às vezes sem explicação, é obrigado a saber o Corão de trás para a frente para recitá-lo antes de todas as refeições. Se falha uma palavra, é o cabo das tormentas e passa noites a fio fora de casa, ao frio. Se o tempo estiver quente, o tio tranca-o num quarto, com cadeado e tudo, sem comida nem bebida.
É um cenário dantesco. Fora de casa, Rashidi é o mesmo de sempre, com uma agravante: à falta de irmãos no seu dia a dia, angaria alunos da sua turma para jogar futebol longe da colégio, durante o horário escolar. O director apercebe-se da mudança gradual do interesse dos alunos bem comportados em futebol, sobretudo através da descida das notas, e expulsa Rashidi como grande culpado.
Sem vontade de voltar para a casa do tio, o rapaz volta às escondidas do pai para Kaduna e convive com a solidão, no meio da pobreza. Ganha uns trocos a lavar carros e a engraxar sapatos. Também caça animais pequenos, arte apr(e)endida na vida do campo.
Em 1978, a morte do pai num acidente de viação apanha-o de surpresa e o luto prolonga-se por semanas. Meses, até. Quando volta à realidade, por assim dizer, Rashidi assume o apelido Yekini, como forma de homenagear ao pai, e entra na equipa do UNTL (United Nigeria Textile Limited). Só o futebol o pode salvar. E salva.
Na primeira época, é o melhor marcador da equipa. No segundo, também. É o rei do golo na região de Kaduna. Aos 19 anos, transfere-se para o Shooting Stars. O salto é gigantesco, como se fosse de uma equipa distrital para um grande, de um Ponte da Barca para o Benfica.
E agora? Pura e simplesmente, transforma-se em Rashiiiiiiiiiidi Yeeeeeeeeeekini. Em dois anos, marca 45 golos em 53 jogos. No mesmo ano de 1984, é campeão nigeriano, chega à selecção (até é convocado para a Taça Africa das Nações) e só falha o título africano, culpa da força do Zamalek, com duas vitórias na final da Taça dos Campeões (2-0 no Cairo, 1-0 em Lagos). No dia seguinte à consagração dos egípcios, o governo nigeriano lança um inacreditável comunicado oficial a falar de uma exibição vergonhosa do Shooting Stars.
Sem paciência para intromissões de qualquer espécie e também porque o presidente do clube se deixa abalroar pelas críticas, metade da equipa sai e emigra para a Costa do Marfim. O bom do Yekini continua no Shooting Stars e só abandona em 1986, ano em que desce à 2.ª divisão. Vale-lhe a ajuda de Best Ogedegbe, director desportivo do Abiola Babes, um clube em crescimento e inovador na parte do pagamento de salário e apartamento aos jogadores.
Yekini recebe 500 nairas por mês. É muito dinheiro, em 1987. E dá para comprar um carro, o seu primeiro em toda a vida: um Peugeot 504 branco, matrícula OY 754 U. O veículo dura pouco tempo, proque é alvo de uma emboscada por parte dos adeptos do Shooting Stars, irados com a saída de Yekini da equipa.
A partir daí, o avançado nunca mais quer ver o Shooting Stars à frente. Seja jogos pela televisão, seja convites da direcção para entrar na estrutura, já depois de arrumadas as chuteiras. Adiante, o futebol de Rashiiiiiiiiiidi Yeeeeeeeeeekini ganha encanto. É o melhor marcador da 1.ª divisão nigeriana 1987-88, com 16 golos, na época em que o Abiola Babes vence a Taça da Nigéria, sem esquecer a caminhada até à meia-final da Taça das Taças africanas – aqui, Rashiiiiiiiiiidi Yeeeeeeeeeekini marca os dois golos inesquecíveis ao super-favorito ASEC Mimosas (2-0), na segunda eliminatória.
É importante este bis porque o Abiola Babes abre falência e o clube fecha as portas. Yekini está solto e o Africa Sports, eterno rival dos ASEC, acena-lhe com uma proposta irrecusável. Uma saída para o estrangeiro é o desejo de qualquer predestinado, é o justo reconhecimento por todo um trabalho de anos e anos. Na Costa do Marfim, as qualidades de Rashiiiiiiiiiidi Yeeeeeeeeeekini vêm ainda mais ao de cima.
É o melhor marcador do campeonato 1988-89 e é bicampeão marfinense nos dois anos de serviço. Pelo meio, joga a terceira Taça Africana das Nações seguida pela Nigéria e assina três golos (1-0 ao Egipto, 1-0 à Costa do Marfim, na fase de grupos, e 2-0 à Zâmbia, na meia-final). Titular na decisão, com o número 9 nas costas, é derrubado pela anfitriã Argélia de Madjer. A desilusão custa-lhe a passar. Afinal de contas, é a terceira final continental perdida. Em compensação, o Vitória FC contrata-o.
Em Setúbal, a entoação do craque inclui muito mais i’s e e’s. Qualquer coisa como Rashiiiiiiiiiiiiiiiiiiiidi Yeeeeeeeeeeeeeeeeeekini. A estreia nem é gloriosa de todo. No Torneio Costa Azul, com o Estrela da Amadora, o brasileiro Duílio dá-lhe água pela barba. As pessoas estranham o comportamento apático do nigeriano, de compleição física fora do normal. Diamantino atira mais achas para a fogueira. “Quando o vimos pela primeira vez, pensámos todos ‘olha, mais um craque [dito de forma irónica] vindo sabe-se lá de onde’. Com os joelhos para dentro, ele era ligeiramente trapalhão a correr. Mas ficámos convencidos ao fim do primeiro treino. Era forte, ia ao choque sem problema e rematava exemplarmente bem.”
Correcto e afirmativo. Na estreia oficial, para a 1.ª divisão, um golo ao Vitória SC. No segundo jogo, um golo em Penafiel. No terceiro, outro ao Salgueiros. Ainda faz mais 10 até final da época. Na última jornada, os aflitos Vitória e Estrela (olha a coincidência) empatam 1-1 no Bonfim e afundam-se os dois. Na 2.ª divisão, o Vitória FC vive dois anos infernais, só consolados pela energia de Rashiiiiiiiiiidi Yeeeeeeeeeekini. Imagine-se só, ele é o melhor marcador do campeonato em 1992 e, de novo, em 1993. Ao todo, 56 golos em 62 jogos. Sem falar nos 7 golos em apenas 6 jogos da Taça de Portugal. Que categoria, chi-ça. Profissional do golo, só pode.
Diamantino volta a falar. “Lembro-me perfeitamente de um jogo em Ovar, com a Ovarense. Deve ter sido em Dezembro ou Janeiro, estava a chover torrencialmente e o campo já estava empapado antes do início do jogo, castigado por aquele temporal. Era daqueles dias em que nem as formigas saem à rua, quanto mais os jogadores. Menos o Yekini. Ele marcou quatro golos, ganhámos 4-1 e há um golo que não me sai da memória: um pontapé quase do meio da rua, cheio de intenção, em que a bola bate na parede encostada à baliza e sai disparada. O guarda-redes deve ter pensado que nem tinha sido golo. Mas foi. E que golo.” O treinador dessa Ovarense é Manuel Fernandes. “Foi a minha única derrota em casa nessa época, o Yekini era especial em todos os mandamentos da área, porque era grande, possante e excelente rematador.”
Se o Vitória FC falha a subida em 1992, o erro já não se repete em 1993. É absolutamento mágico o contributo de Rashiiiiiiiiiidi Yeeeeeeeeeekini, com 35 golos (Chiquinho é o segundo melhor do clube, com 11, e Diamantino o terceiro, 5). O Vitória só sobe na última jornada (3-1 ao Torreense), e graças à derrota da Académica em Castelo Branco (2-1).
Tomé, jogador e director do Vitória FC, tem uma história engraçada. “Ele chegava ao departamento de futebol e perguntava insistentemente pela couve. Era a forma de ele dizer dólares, ele era pago em dólares.” Da epopeia goleadora de Rashiiiiiiiiiidi Yeeeeeeeeeekini, há uma semana inesquecível com dois póqueres seguidos, vs Leixões (6-1 no Bonfim) e Académica (5-3 em Coimbra). Ninguém faz isto nos anos 90, nem sequer Jardel. É um registo demolidor.
Se isto é demolidor, o que dizer da época 1993-94? Muitos mais i’s e e’s. Passa a ser Rashiiiiiiiiiidiiiiiii Yeeeeeeeeeekiiiiiiiniiiiiiiii. Desculpem lá, é a mais pura verdade. Vamos por partes, com respeito pela cronologia. Em Outubro 1993, a Nigéria qualifica-se pela primeira vez para um Mundial. Dos 17 golos, oito pertencem-lhe. Em Novembro 1993, marca dois golos ao Benfica (já o havia feito ao Sporting, em Agosto) e o Vitória ganha espantosamente por 5-2.
Em Abril 1994, dois golos ao Gabão na fase de grupos, mais dois ao Zaire nos ¼ final e um à Costa do Marfim nas meias garantem-lhe o título de melhor marcador da Taça Africana das Nações. E ainda o de melhor jogador, numa competição ganha pela Nigéria à Zâmbia (2-1), com bis de Amunike, então no Sporting. No regresso à realidade portuguesa, um bis (Marítimo) e um hat-trick (Salgueiros), na tarde em que o seu nome é aclamado pelo público sadino de pé, conferem-lhe o título de melhor marcador da 1.ª divisão. Os seus 21 golos superam os 18 de Drulovic e 16 de Kostadinov, ambos do Porto.
A viagem para o Mundial dos EUA é um tormento. Conta o seu companheiro Oliseh. “Havia imensas invejas dentro do grupo e Yekini já tinha assinado com o Olympiacos, da Grécia, e ia ganhar qualquer coisa como 100 mil libras por mês. Isto é verdade: a bola raramente passava-lhe à frente, não havia jogo de equipa para o Yekini.” À excepção de Finidi, um jovem mal tratado pela família nos primeiros anos de vida, como Rashidi. Curiosamente (ou nem por isso), o primeiro golo de sempre da Nigéria é uma aliança entre Finidi e Yekini. Do cruzamento, sai o pontapé para o golo à Bulgária.
Nos festejos, a imagem é icónica: Yekini ntra pela baliza adentro, junta os punhos, abana as redes e grita desesperadamente. “Ouvi um monte de lixo sobre esse assunto, que disse mal da federação, que lancei feitiçarias. Enfim, nada a ver. Primeiro, gritei o nome do meu: Yekiiiiiiiiniiiiiiiiiiiii- Depois, Rashiiiiiiiiiidiiiiiii Yeeeeeeeeeekiiiiiiiniiiiiiiii. E acabei por agradecer a Deus.” O festejo seria repetido na estreia pelo Sporting Gijón.
Ah é verdade, esquecemo-nos de dizer que Yekini, já galardoado o melhor jogador africano do ano (o primeiro nigeriano de sempre), só faz quatro jogos pelo Olympiacos e regressa à Nigéria para descansar, Voltaria em força, com o Sporting. O de Gijón – curiosamente, o de Portugal também está a um passo de contratá-lo (a ele mais Oceano e Carlos Xavier) no mercado de inverno em 1994, só que a federação portuguesa proíbe o Sporting de se mexer pelo desacordo de verbas com a Ovarense em relação à transferência de Luís Manuel.
Pronto, agora sim, Gijón. É a estreia do Real Madrid de Capello. A lateral-direito, outra estreia: Secretário. À esquerda, também: Roberto Carlos. Esqueçam tudo isso, Rashiiiiiiiiiidiiiiiii Yeeeeeeeeeekiiiiiiiniiiiiiiii dá cabo deles com dois golos lindos, O 1-0 é um remate do meio da rua, de primeira e sem preparação, ao ângulo. O 2-1 é um cabeceamento entre os centrais Sanchís e Alkorta. É aí que vai de joelhos para dentro da baliza e abana as redes como se ainda estivesse no Mundial. Sem abrir a boca, desta vez.
Sem golos no Sporting Gijón, seria muito mais feliz na Suíça, ao serviço do Zurique em 1997-98. Ainda hoje há adeptos que se recordam de um hat-trick ao Aarau. A experiência é recompensadora, com 14 golos em 28 jogos, e equivale-lhe o regresso à selecção em 1998, de olho no Mundial em França. Como é óbvio, Rashiiiiiiiiiidiiiiiii Yeeeeeeeeeekiiiiiiiniiiiiiiii faz o que lhe compete e marca à Jamaica. Seria o 37.º e último golo, 13 deles na Taça Africana das Nações (segundo melhor de sempre, só atrás dos 15 de Eto’o), em 58 internacionalizações.
No futebol português, ainda marcaria três golos, sempre pelo Vitória FC, num regresso a meio gás, já com 33 anos de idade. O seu treinador é Manuel Fernandes. “As pessoas de Setúbal adoravam-no e chamavam-no de Jaquim. Como Yekini não lhes entrava na cabeça, era o Jaquim. Então era Jaquim para aqui, Jaquim para ali.” O Jaquim deixa saudades. Que uma determinada adepta do Vitória. Solta aí Diamantino. “Havia quatro pessoas bem identificadas nas bancadas, porque eram todas mulheres e uma era coxa, a outra era marreca e mais não sei o quê; uma delas andava com um boneco preto pela cidade, mas um bonceo grande, era o Jaquim.” África minha. Nossa. Dele. Do Rashiiiiiiiiiidiiiiiii Yeeeeeeeeeekiiiiiiiniiiiiiiii.
1991-92 (Vitória FC, 22 golos na 2.ª divisão)
Belenenses (c) | 1 |
Benfica C Branco (f) | 1 |
Portimonense (f) | 2 |
Ovarense (f) | 4 |
Estrela (c) | 2 |
Olhanense (c) | 1 |
Feirense (f) | 1 |
U. Leiria (c) | 1 |
Leixões (f) | 2 |
Aves (c) | 1 |
Benfica C Branco (c) | 1 |
Portimonense (c) | 2 |
Ovarense (c) | 1 |
Rio Ave (c) | 2 |
1992-93 (Vitória FC, 35 golos na 2.ª divisão)
Rio Ave (c) | 2 |
Académica (c) | 3 |
Ovarense (c) | 1 |
Nacional (f) | 1 |
Campomaiorense (c) | 2 |
Penafiel (f) | 2 |
Felgueiras (c) | 1 |
U. Leiria (c) | 1 |
Estrela (c) | 1 |
Leixões (c) | 4 |
Académica (f) | 4 |
Nacional (c) | 1 |
Aves (c) | 3 |
Campomaiorense (f) | 2 |
Penafiel (c) | 1 |
U. Madeira (c) | 1 |
Louletano (f) | 2 |
Amora (c) | 3 |
1993-94 (Vitória FC, 21 na 1.ª divisão)
Sporting (c) | 2 |
Boavista (c) | 1 |
Beira-Mar (f) | 1 |
Benfica (c) | 2 |
Famalicão (c) | 2 |
Braga (f) | 1 |
Paços (c) | 1 |
Farense (f) | 1 |
Belenenses (c) | 1 |
Estrela (c) | 1 |
U. Madeira (c) | 1 |
Gil Vicente (f) | 1 |
Vitória SC (c) | 1 |
Marítimo (c) | 2 |
Salgueiros (c) | 3 |