Great Scott #559: Único melhor marcador dos Jogos Olímpicos com óculos?

Great Scott Mais 06/09/2022
Tovar FC

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Great Scott #559: Único melhor marcador dos Jogos Olímpicos com óculos?

Frossi

A notícia desportiva com mais impacto no dia 15 Agosto 1936 é a morte de Ricardo Zamora*. O Diário de Lisboa dedica-lhe meia coluna a dar conta do seu estilo arrebatador, dentro e fora dos relvados. O texto é curto e glorioso. Zamora é a grande referência de Espanha, o mais internacional de todos e um guarda-redes impossível de bater, só de penálti.

Da final olímpica em Berlim nem ai nem ui. Nada de nada. Para o registo, Itália 2:1 Áustria – atenção, muita atenção, a Itália entra na competição com o estatuto de campeã mundial. Na estreia, 1:0 vs EUA num jogo célebre pela agressividade excessiva de Achille Piccini. À sua conta, dois adversários têm de sair do campo, por lesão. O árbitro alemão Carl Weingartner ainda expulsa Piccini, só que os italianos lhe tapam a boca e fazem trinta por uma linha. Resultado, Piccini é expulso e continua em campo. É assim, a ditadura no futebol. Pormenor, o golo solitário é de Annibale Frossi, recentemente transferido do L’Aquila, da 2.ª divisão, para o grande Inter, agora Ambrosiana-Inter, por imposição de Mussolini. É assim, a ditadura no futebol.

Nos ¼, a Itália goleia o Japão por 8:0. O homem da tarde é Biagi, com quatro golos. Com três, Frossi. Com um, Capelli. Nesse mesmo dia, 7 Agosto, Hitler vê a primeira e última partida de futebol, acompanhado pelos vices Gobbels e Göring. A Alemanha entra em campo convicta da sua superioridade e sai vergada ao peso de uma derrota embaraçosa vs Noruega, por 2:0, bis do herói improvável Isaksen, uma espécie de Jesse Owens do futebol.

Avançamos para a ½ final e a Itália encontra a Noruega. Sem Isaksen, lesionado numa mão, a Itália sela o apuramento após prolongamento. Frossi é o autor do 2:1 definitivo aos 96 minutos. No dia 15, no Olímpico de Berlim, construído para esses Jogos, 80 mil espectadores puxam pela Áustria. O árbitro é o alemão Peco Bauwens. Alemanha e Áustria, get it? Pois bem, a Itália contraria a lógica e silencia a multidão com dois golos de Frossi. O primeiro aos 70’, imediatamente respondido à letra por Kainberger (79’). No início do prolongamento (92’), Frossi garante o ouro à Itália.

Ouve-se então o hino Fratelli d’Italia, glorifica-se o seleccionador Vittorio Pozzo e premeia-se o melhor marcador desses Jogos, o tal Annibale Frossi. Com sete golos, o homem ultrapassa in extremis o peruano Teodoro Fernández (seis golos em dois jogos). Míope desde criança, Frossi usa óculos. Verdade, um pré-Davids. A sua história é peculiar. Antes de concluir o secundário, Frossi abandona Udine e vai jogar para Pádua sem dar cavaco à mãe – o pai morrera já há muito. Quando a mãe toma conhecimento, chama a polícia e Frossi é recambiado para casa.

Frossi só sai da Udinese aos 20 anos de idade, após ter captado o olho clínico de Toni Calderan num jogo de rua entre miúdos. À partida, a fragilidade física e os óculos à intelectual descartam-no como elemento a ter em conta. Com a bola no pé, é outra loiça. Frossi domina e controla todos os aspectos do jogo, dentro e fora da área. Tanto assiste com inteligência como marca golos sem parar. É craque.

Na primeira época, Frossi passa ao lado da subida da Udinese à 1.ª divisão, quase sempre como suplente, sob o comando de Eugen Payer. Na segunda, o irmão de Eugen assume a equipa e Imre Payer aposta em Frossi, ora como extremo-direito, ora como avançado-centro. Dá-se bem, com 10 golos em 32 jogos. Em 1932, é transferido finalmente para o Pádua, com o sim da mãe. Segue-se Bari (1933-34), depois Pádua (1934-35) e L’Aquila (1935-36). O Inter aparece-lhe em 1936, ano de Jogos Olímpicos, a troco de 50 mil liras.

Convocado para o evento como estudante de direito (os Jogos adoptam o amadorismo, o futebol também), Frossi é titular para o seleccionador Vittorio Pozzo, cuja adoração pelo seu míope é tão evidente que até lhe arranja um elástico para encaixar os óculos à volta da cabeça (sim, é verdade, antes não há elástico e Frossi costuma perder os óculos em jogadas mais viris). Mais, Pozzo admira Frossi pela sua velocidade. Aliás, a alcunha de Frossi é ‘piu veloce’.

Dizíamos, Pozzo admira Frossi pela sua velocidade e arranja um encontro com Jesse Owens, o homem das quatro medalhas de ouro (salto em comprimento, 4×100 m, 200 m e 100 m). O negro Owens estraga os Jogos a Hitler, ditador da moda ariana, e bate o recorde dos 100 m com o tempo de 10 segundos e duas décimas. Pois bem, Frossi só faz mais um segundo e duas décimas. E com bola. É um fenómeno, lá está.

Pozzo junta-os em Berlim e os dois atletas convivem alegremente. Owens até é visto em amena cavaqueira com toda a selecção de futebol italiana, na vila olímpica, acompanhado pelos amigos inseparáveis: o acordeão e a guitarra. É um regabofe, Owens é campeão dos 100 m no dia 3 e, a partir daí, trabalha com Pozzo e Cª na tentativa de os ensinar a dosear o esforço entre sprints. Frossi é o aluno mais aplicado e sai-se com a sua, graças aos sete golos em quatro jogos – desses sete, três garantem a vitória.

De regresso a casa, Frossi recusa-se a fazer a saudação romana ao regime de Mussolini (é de homem, caramba) e cumpre o sonho de jogar ao lado de Giuseppe Meazza no Inter e começa a ganhar títulos a sério. Primeiro é campeão italiano em 1938, depois vence a Taça de Itália em 1939 (óbvio, marca um golo na final, vs Novara) e volta a ser campeão italiano em 1940. Arruma as chuteiras em 1945 e faz-se empregado na Alfa Romeo.

Como a paixão pelo futebol é forte, fortíssima, Frossi faz-se olheiro e, depois, treinador. Fala-se dele como o criador do 5-4-1 em Itália, com base no catenaccio. ‘O resultado perfeito no futebol é 0:0, quando as duas equipas cumprem todos os requisitos.’ Que figura. Senhoras e senhores, Frossi.

*ah é verdade, Zamora só morre em 1978, aos 77 anos.

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