Great Scott #655: Quem é o árbitro inicialmente designado pela FIFA para a final do Mundial-78 e para a finalíssima do Mundial-82?
Klein
Hoje abrimos com Eduardo Galeano.
O árbitro é arbitrário por definição. Este é o abominável tirano que exerce a sua ditadura sem oposição possível e o verdugo afectado que exerce seu poder absoluto com gestos de ópera.
Apito na boca, o árbitro sopra os ventos da fatalidade do destino e confirma ou anula os golos. Cartão na mão, levanta as cores da condenação: o amarelo, que castiga o pecador e o obriga ao arrependimento, ou o vermelho, que o atira para o exílio.
Os fiscais-de-linha, que ajudam, mas não mandam, olham de fora. Só o árbitro entra em campo; e com toda razão se benze ao entrar, assim que surge diante da multidão que ruge. O seu trabalho consiste em se fazer odiar.
Única unanimidade do futebol: todos o odeiam. É vaiado sempre, jamais é aplaudido.
Ninguém corre mais do que ele. É o único obrigado a correr o tempo todo.
Este intruso que ofega sem descanso entre os 22 jogadores galopa como um cavalo, e a recompensa por tanto sacrifício é a multidão que exige a sua cabeça. Do princípio ao fim de cada partida, a suar as estopinhas, o árbitro é obrigado a seguir a bola branca que vai e vem entre os pés alheios. É evidente que adoraria brincar com ela, mas nunca essa graça lhe foi concedida. Quando a bola, por acidente, bate em seu corpo, todo o público se lembra da mãe dele. E, no entanto, pelo simples fato de estar ali, no sagrado espaço verde onde a bola gira e voa, ele aguenta insultos, vaias, pedradas e maldições.
Às vezes, raras vezes, alguma decisão do árbitro coincide com a vontade do torcedor, mas nem assim consegue provar a sua inocência. Os derrotados perdem por causa dele e os vitoriosos ganham apesar dele.
Álibi de todos os erros, explicação para todas as desgraças, as torcidas teriam que inventá-lo se ele não existisse. Quanto mais o odeiam, mais precisam dele.
Durante mais de um século, o árbitro vestiu-se de luto. Por quem?
Por ele.
Agora, disfarça com cores.
Posto isto, Abraham Klein nasce em Timisoara, na Roménia, e convive com os bombardeamentos tanto dos alemães como dos aliados em plena 2.ª Guerra. Em 1947, Klein embarca num comboio para a Holanda, juntamente com 500 adolescentes, todos sem pai nem mãe – no caso de Abraham, ambos refugiados.
Em 1958, aos 24 anos de idade, apita o primeiro jogo do campeonato israelita e é chamado para os Jogos Olímpicos-68, na Cidade do México. Faz dois jogos, sempre a um excelente nível, e é convocado para o Mundial-70, outra vez no México, culpa do seu óptimo preparo físico em qualquer condição atmosférica – e a altitude do México tem muito que se lhe diga.
O seu primeiro jogo é como fiscal-de-linha. Há dois, sempre. Klein é o primeiro assistente, por assim dizer, é aquele que fica no lado do banco dos suplentes. Tudo corre às mil maravilhas no Brasil 4:1 Checoslováquia. Mais adiante, a FIFA nomeia Klein para o Brasil vs Inglaterra. É o jogo mais sonante de toda a fase de grupos pelo encontro entre os dois últimos campeões mundiais. Como recompensa, Klein ganha 10 libras – pagaria 100 por uma fotografia dele com os capitães Carlos Alberto e Bobby Moore, ainda hoje exposta no seu museu, em Haifa.
Tanto brasileiros como ingleses torcem o nariz à nomeação de Klein, um árbitro sem nome nem experiência. De facto, Abraham só apitara quatro internacionais. O homem fecha-se no quarto de hotel e absorve todos os movimentos dos jogadores brasileiros e ingleses. Por isso mesmo, tem a coragem de mandar seguir uma jogada em que Pelé cai na área, embrulhado com Mullery, porque sabe a manha do Rei em jogadas de bola divida e enrolada. Vista e revista a repetição, Pelé faz-se mesmo ao penálti.
É eleito para o Itália vs México nos ¼, só que o mal de Montzeuma (diarreia e vómitos provocados pela apimentada comida mexicana) dita a sua lei e Klein retira-se do Mundial antes de tempo. Voltaria em 1974? Caaalma, antes disso, em 1972, a organização brasileira da Minicopa chama-o e Klein apita a final da competição entre Brasil e Portugal. Decide um golo de Jairzinho ao cair do pano, de cabeça, a aproveitar uma saída mal calculada dos postes de José Henrique, o famoso Zé Gato.
Agora sim, voltaria ao Mundial em 1974? Nem por isso. A FIFA opta pela sua ausência por via dos trágicos acontecimentos nos Jogos Olímpicos-72, em Munique, com o assassinato de sete atletas israelitas. Klein só regressa aos grandes palcos nos Jogos Olímpicos-76, em Montreal (Canadá), e depois no Mundial-78, na Argentina.
A jogar em casa, protegida pela euforia dos seus adeptos e pelo regime ditatorial da junta militar do General Videla, a Argentina saca proveito de erros de arbitragem nos dois primeiros jogos, vs Hungria e França. No tudo ou nada da fase de grupos, vs Itália, a FIFA nomeia Klein para meter um travão nas ofertas. Klein apita cinco estrelas, recusa um par de mergulhos dos argentinos na área contrária e a Itália ganha 1:0. Como resultado, a Argentina acaba em segundo e é desviada de Buenos Aires. Tal como Klein, eleito para o Áustria vs RFA em Córdoba, na segunda fase de grupos.
Para a final, a FIFA tem um plano e chama-se Abraham Klein. Já tem 42 anos, está no auge da carreira e reúne todos os requisitos indispensáveis para assumir um jogo de cortar à faca, entre Argentina e Holanda. Acontece o fungagá da bicharada. As forças argentinas, desportivas e políticas, juntam-se e congeminam contra o israelita.
Quem apita a final é o italiano Sergio Gonella, altamente pressionado e com a escandalosa decisão de adiar o pontapé de saída por longínquos oito minutos, tudo porque o capitão argentino Passarella protesta a mão (esquerda) de gesso de René van de Kerkhof. Ora bem, o holandês jogara o Mundial todo com o gesso, devidamente autorizado pela FIFA, e aquilo cheira a esturro. E é. Gonella vai na conversa. Pobre futebol. Klein, esse, faz o terceiro e quarto lugares, entre Brasil e Itália.
Coincidência das coincidências, Klein volta ao Mundial daí a quatro anos (1982), em Espanha, onde Kuwait e Argélia se estreiam e decidem boicotar Abraham pela nacionalidade. Caso a FIFA mantivesse a nomeação, as televisões árabes simplesmente não transmitem o Mundial. O que faz a FIFA? Decide esta mini guerra fria com uma decisão sabática: nos jogos de Klein, seja como árbitro, seja como assistente, o seu nome não consta na ficha de jogo.
Bom, adiante. O Mundial é um espanto, só visto. Há futebol de ataque, há surpresas e há a maior goleada de sempre, um 10:1 da Hungria vs El Salvador. Na segunda fase, o sorteio dita um grupo de três campeões mundiais: Itália, Brasil e Argentina (por desordem alfabética, para evitar confusões). Klein é então o escolhido para o último jogo do grupo, Brasil vs Itália.
Desta vez, no Sarriá. Agora mais decisivo que nunca. Se o Brasil empata, segue em frente. Se a Itália ganha, o futebol poesia sai de cena. Na véspera do clássico, Klein fala abertamente com os jornalistas. ‘Os brasileiros sabem jogar futebol como ninguém. Preocupam-se apenas com o espectáculo e não querem saber do árbitro. Como não tive problemas com o Brasil em 1978, também não os terei agora.’ Pergunta-lhe sobre a eventual final e ele, Klein, atira sem deixar cair. ‘À excepção do Brasil, não consigo ver outra equipa em condições de chegar à final.’
Acontece Paolo. Isso mesmo, a Itália cor de Rossi dá a surpresa e sai vitoriosa por 3:2. Na retina, um lance de penálti claro de Gentile a Zico. Aliás, Zico é obrigado a sair de campo na sequência dessa jogada para trocar a camisola 10, toda rasgada de lado. Entre um momento e outro, Zico refila com o árbitro e Klein justifica-se. ‘Apitei fora-de-jogo por indicação do fiscal-de-linha [Thomson Tam Sun Chan, de Hong Kong].’
A FIFA volta a cogitar Klein para a final, só que a saída abrupta do futebol poesia do Brasil é substituída pela nomeação do árbitro desse país, Arnaldo César Coelho, de seu nome. Como fiscal-de-linha número um, o tal a correr de um lado para o outro junto aos bancos de suplentes, eis Abraham Klein. Se a final acaba empatada, joga-se a finalíssima e, aí sim, Klein é o eleito. Nada feito. A Itália cor de Rossi impõe a sua força vs RFA, 3:1.