Blokhin. “A Bola de Ouro não tem ouro, nem sequer para os dentes”
Oleg Blokhin. Ou melhor, o lendário Blokhin. O nome deste senhor está tão ligado à antiga União Soviética como Yashin. Em comum, a Bola de Ouro. O guarda-redes é o único na sua posição a levar o troféu do France Football, o avançado é o último da URSS. Em 1975, Blokhin é o mais votado dos jogadores na Europa, com 122 pontos, à frente de Beckenbauer (42) e Cruijff (27). O último, entre outros ilustres, é João Alves (Boavista), com um ponto.
A Bola de Ouro é apenas um evento da sua carreira. Estamos a falar de Blokhin, o melhor marcador de sempre da selecção soviética (42) e também o mais internacional (112). O melhor marcador do campeonato soviético (211) e o mais utilizado de sempre (432), sempre pelo Dínamo Kiev de 1968 a 1988. Nunca joga um Europeu mas marca à Nova Zelândia no Mundial-82 e ao Canadá no de 1986. Ganha também duas Taças das Taças, com dois golos nas finais de 1975 (Ferencvaros) e 1986 (Atlético Madrid). Só para acabar, só para acabar, é cinco vezes o melhor marcador do campeonato da URSS.
Sempre que o filmam, corre, protesta, dá pontapés no ar, faz cabeceamentos imaginários. Porque é que não se auto-incluiu na lista dos 23?
Ah-ha, era bom era mas o meu tempo já passou. Já não tenho pernas para isso. Nem paciência.
Então?
O Blokhin jogador faz parte do passado. É uma referência que vem nos livros com vitórias, golos, recordes e não quero apagar essa imagem. Daí que nem me atreva a jogar pelos veteranos do Dínamo Kiev.
…
Quando tinha 38 anos e jogava no Chipre, ofereceram-me um contrato por cinco épocas. Na altura, aquele dinheiro era bem-vindo e dava para alimentar a minha família e a minha veia futebolística mas agora nem pensar. Os tempos também mudaram. Duvido muito que algum jogador do Chipre receba aquele meu salário, mesmo os da 2.ª divisão.
Mas o seu passado de jogador tem apenas 15 anos.
Mas muita coisa mudou, muita coisa mesmo. Eu, por exemplo, engraxava as minhas chuteiras, lavava e estendia o meu equipamento. Naquele tempo, chegava a casa e nem forças tinha para chegar à cama. Sentava-me na cadeira e adormecia. Vestido e tudo. Quantas vezes isso aconteceu, quantas… Agora, pffff, agora todas as equipas criam as condições ideais para os jogadores.
Isso é mau?
Não necessariamente, claro, mas a geração de agora tem outro sentido da vida e não se envergonha de nada. Eles não percebem que têm de fazer história como exemplo para as pessoas e não a ganhar títulos. Só és realmente importante na vida se fizeres uma carreira exemplar e inesquecível. São duas metas, não uma. Sem passado, não há futuro. Depois de perder jogos importantes, vejo-os na parte de trás do avião a jogar às cartas e a rirem-se.
E isso no seu tempo era…?
Xiii, vamos falar do meu tempo? Isso já foi no século passado.
Insisto.
No meu tempo, por mais que proibissem isto e aquilo, mais desejávamos violar as regras.
Que regras?
Coisas simples, hã. Como beber cerveja ou vodka. Aquilo estava à mão de semear mas nós tínhamos aquele chip do não fazer.
Ainda por cima…
Espera, tenho outra história. Em 1973, o Dínamo Kiev jogou com o Real Madrid [quartos-de-final da Taça dos Campeões]. Fomos eliminados [0-0 em Odessa, 3-0 em Madrid] mas eles quiseram contratar-me. Ofereceram nove milhões de dólares. Nem sabia quanto era isso. Nem 4,5 milhões, quanto mais nove. Era dinheiro à bruta. Mas nem sequer pensei nisso, sabes? Porque os meus pais ficariam extremamente desiludidos se aceitasse aquele negócio. Agora o que dizias antes de te interromper.
Perguntava, ainda por cima o seu treinador era o Lobanovsky, considerado um homem rígido.
O Lobanovsky [suspiro], treinou-me quase a vida inteira e nunca o entendi sabes? Mas agora compreendo-o em alguns aspectos. O Blokhin treinador nada tem a ver com o Blokhin jogador. A pessoa cresce, amadurece e olha para o passado. O Lobanovsky sempre foi um grande treinador, um visionário, mas às vezes chocávamos em opiniões tácticas e técnicas. Agora lembro essas discussões e ele tinha razão em muitas delas.
Blokhin seleccionador, alguma vez tinha pensado nisso?
Seleccionador? Nem sequer treinador! Mas voltei à escola, estudei e formei-me como treinador. Bem, mais psicólogo. É impossível um treinador melhorar os índices técnicos e físicos de um jogador e de uma equipa. Já o factor psicológico… Se fores um bom psicólogo e tiveres a equipa contigo, há mais hipóteses de seres bem sucedido. Aqui estou.
E o que vai acontecer?
O que acontece sempre: ou cortam-me a cabeça ou renovam-me o contrato. É a vida de qualquer treinador… exceptuando a do Alex Ferguson.
Falando no diabo [vermelho, do Manchester United; no hard feelings, ok sir Alex?], já jogou contra ele, que tal?
Eu, quando?
No Mundial-82. Como adjunto de Jock Stein, da selecção escocesa.
Ah sim? Nem sabia.
Mas lembra-se desse Mundial?
Calhámos com Brasil, Escócia e Nova Zelândia, a quem eu marquei um golo no 3-0. Depois caímos na segunda fase de grupos, com a Polónia.
Li algures que o assessor de imprensa da selecção soviética desse Mundial em Espanha disse qualquer coisa como “eles podem sair do hotel mas não devem” sobre a liberdade dos jogadores.
Outros tempos, outros tempos, já falei deles, não?
Okay, e o Mundial-86? Outra aventura.
França, Hungria e Canadá. Marquei ao Canadá. Nos oitavos-de-final, aquele 4-3 com a Bélgica que ainda me está atravessado. Então o Belanov marca três golos e somos eliminados? E aquela arbitragem… [o árbitro sueco Fredriksson valida dois golos em fora-de-jogo aos belgas]
Pelo meio, falharam o Euro-84.
Falhámos? Vamos lá ver uma coisa, ganhámos 5-0 a Portugal em Moscovo num jogo em que joguei e não marquei mas não escrevas isso, okay? [risos]. Depois em Lisboa só precisávamos de empatar mas perdemos 1-0 com um penálti do outro mundo. Nem me lembro se há falta do Borovski. Se existe, é claramente fora da área. E o árbitro piiii penálti?!?!
No comments. Essa selecção era o Dínamo Kiev? [tentativa de mudar de assunto]
Da [sim em russo]. Tive a sorte e também o talento de estar em dois dos momentos mais importantes da história do Dínamo Kiev e do futebol russo. Ganhámos duas Taças das Taças.
Quando?
Em 1975, ao Ferencvaros [um golo de Blokhin]. Em 1986, ao Atlético Madrid [outro golo de Blokhin]. Nos dois jogos, 3-0. Era um futebol atlético e muito, muito técnico. Jogávamos de olhos fechados. Repara bem, nessas duas campanhas, só duas derrotas em quantos jogos? 18, 20? Em 1975, com o PSV em Eindhoven [Holanda], na segunda mão da meia-final. Em 1986, logo no primeiro jogo [com o Utrecht, na Holanda].
Pelo meio, o Blokhin ainda ganha a Bola de Ouro.
Nunca, mas nunca mesmo, esperei ganhar o que quer que fosse. Quer dizer, sou um optimista por natureza. Quero ser sempre o primeiro, honrar o meu nome e o da minha família, mas ganhar a Bola de Ouro? Fora dos meus planos. Soube então que a Bola de Ouro não tem ouro. Não tem ouro, nem para os dentes!
Mas ganhou. Como?
Não sei. Quer dizer, agora olho para trás, vejo alguns golos meus e fico espantado. Devia estar possuído ou então extremamente feliz por estar num campo de futebol entre milhares e milhares de adeptos a gritarem-me aos ouvidos. Parecia um aventureiro a galgar terreno por ali fora, a passar dois/três defesas antes de marcar. Excepção feita ao Messi, não há ninguém que faça isso agora.
in jornal i, Jun 2012