Cruijff
Johan Cruijff. Com espaço, dá 13 caracteres. Bolas, estamos a falar do mestre. Portanto, o ideal seria Johan Cruijff! Pronto, assim com o ponto de exclamação, faz 14. O número preferido do holandês como jogador. E o número ideal do treinador. Ora faça lá as contas aos títulos no Ajax (3) e Barcelona (11). Ah pois é
“Johan Cruijff, mis futbolistas y yo” (1993)
Posto isto, Johan Cruijff! é o 14 por excelência seja em que matéria for. Como agora, por exemplo. Faz hoje 14 dias do repentino desaparecimento de Johan Cruijff! Vai daí, falemos dos 14 jogadores mais admirados por ele na autobiografia “Johan Cruijff, mis futbolistas y yo”. É um livro do tamanho A6, escrito no verão de 1993, entre o tri e o tetra espanhol do Barcelona. Ao longo das 140 páginas, o holandês disserta sobre os heróis do momento sem perder de vista os génios do passado. Ei-los, os 14 magníficos.
1 MARADONA
“Há jogadores que marcam golos atrás de golos mas nunca ganham títulos. Nada de mal. Mas há diferenças entre o jogador despreocupado e o esforçado. Por isso, existem os treinadores. Para os levar ao limite e também para fazer entender o despreocupado de que os seus golos, embora sejam muitos, não fazem assim tanta diferença. É preciso mais, mais e mais. Nem todos entendem essa lógica. Vejam Maradona, um dos maiores. Sempre quis que o mundo se adaptasse de acordo com a sua vontade, nunca o contrário. Quando o ouço dizer coisas como ‘só treino um par de vezes por semana e jogo todos os domingos’, deixa-me de rastos. A sério. Como é que um jogador de topo pode dizer semelhante atrocidade? Quando és o número um, estás obrigado a ser fiel ao futebol e a cuidar da imagem pessoal, algo que Maradona se tem descaído uma e outra vez.”
2 PELÉ
“Ou seja, Maradona é o contrário de Pelé. Este, sim, assume o compromisso com o futebol. É o autêntico número um. O melhor de todos os tempos. Em 99% das vezes, teve uma conduta desportiva e social condizente com a sua categoria de número um. Não é o mesmo trabalhar para a Warner Communications do que para a Maradona Productions. O futebol tem uma hierarquia e há que respeitá-la a todos os títulos. Sempre. Eu, por exemplo: ganhei muitos títulos no Ajax e no Barcelona, como jogador. Marquei muitos golos. Mas, vamos lá falar a sério, nunca fui campeão do mundo. O Pelé foi três vezes. Não uma, não duas, mas sim três vezes. E sempre a marcar golos. Foi meu contemporâneo e não é isso que me impede de dizer isto: Pelé foi o melhor em tudo. Superava-se sempre, melhorava o jogo dos companheiros, metia golos com o pé direito, o esquerdo e de cabeça, fintava como poucos e, sobretudo, esteve na elite desde os 16 anos de idade até quase aos 40. Pode ser que encontremos alguém como ele, eu duvido. E muito.”
3 HUGO SÁNCHEZ
“Há avançados capazes de jogar tão-só naquele espaço reduzido que é a grande área, como Hugo Sánchez. Basta-lhe um toque e, já estás, é golo. Alguma vez viram Hugo a fintar alguém? Noooo, isso não existe. Ou melhor, é raro. Hugo é do toque e foge. E alguma vez o viram lesionado? Também não, pelo mesmo motivo. Quando o adversário quer atravessar-se no seu caminho, já Hugo deu a bola para alguém mais adiante. É daqueles avançados humildes, que recebem a bola e pensam automaticamente “toma lá a bola que eu disto não entendo nada”. Um pouco à imagem de Papin e Bebeto. Os três atingiram o apogeu entre os 27/29 anos, quando atingem a plenitude de confiança e jogam como autênticos profissionais: fazem o seu trabalho e não complicam a vida. Todo o contrário da maioria dos jogadores. E por maioria não me refiro a 52%. Não, nada disso. Quero dizer que 90% dos jogadores tentam sempre fazer o que não sabem”
4 BECKENBAUER
“Quem está na categoria desses 10% é o meu grande amigo Franz Beckenbauer. Trata-se de controlar a situação. Sempre. Qual é a minha qualidade de Franz? Só uma: tomar a melhor decisão para a equipa. Além de futebolista fantástico, tecnicamente falando, tinha uma cabeça privilegiada para encontrar soluções num curtíssimo período de tempo. Um tipo inteligente. Muitas vezes o via a atirar a bola para a bancada e perguntava-me: ‘que raro, porque é que chutou a bola de qualquer jeito se tem técnica de sobra?’ Acontece que à noite revia o filme do jogo e apercebia-me que era, de facto, a única solução. Ficava sempre perplexo com o acerto de Beckenbauer nessas jogadas de risco. Ao ataque então, era um tratado. Fazia tudo bem. À defesa, encurralava-te. Sempre. Por muita técnica que tivesses. Ele dava-te o lado e nós íamos por ali, a pensar numa via escancarada para a baliza. De repente, estavas encurralado porque ele fazia o trabalho como queria e nós a julgar que íamos fazer bonito. Que génio, o Franz.”
5 VAN BASTEN
“Beckenbauer é um fenómeno. Daqueles raros. É um jogador completo. Aproveito aqui para falar do meu jogador preferido, que ainda joga. É ele, Van Basten. Só lhe falta um pormenor para ser como Pelé: deveria ser mais pessoa, mais humano. Vou tentar que todos entendam onde quero chegar. Se falamos de números um, é preciso ter nota 10 em cinco categorias. Van Basten tem nota 10 em quatro e só lhe faltam umas décimas para poder ser perfeito. É na questão de caráter. Por exemplo, quando ele chegou ao Milan. Na apresentação, perguntaram-lhe por Rivera, o jogador mais emblemático do clube. Marco disse que não sabia quem era. Outro, no seu lugar, teria inventado, teria tentado ser mais simpático ou, pelo menos, mais diplomático. Estou de acordo: não se pode mentir. Perfeito, que não minta. Mas podia ser mais elegante, mais respeitoso. Não sei. Se fosse eu, se não conhecesse Rivera, teria dito ‘o que se pode dizer de Rivera? Já foi tudo dito sobre ele’. Era fácil e saía como um senhor. Mas não, disse o que sentia como sempre. E isso é mais um defeito do que uma virtude. Conheço-o desde pequeno, no Ajax, e já era assim: boa pessoa com os seus amigos e má com quem não se dava particularmente bem. Quando era adolescente, queixava-se dos companheiros que lhe passava mal a bola. Então dizia-lhe para dominar a bola ao seu jeito e entregar ao companheiro da melhor forma, assunto resolvido. Ele ficava a olhar para mim, desafiante. Depois, acrescentava: ‘Se quiseres ser o melhor, demonstra-o sempre. Não fiques à espera dos teus companheiros. Se eles fossem como tu, não precisavam de ti.’ Assunto resolvido, ele ficava convencido. Ao longo dos tempos no Ajax, ele foi sendo polido. Técnica e taticamente. No plano pessoal, aquele jeito muito seu jamais se endireitou.”
6 STOITCHKOV
“Era capaz de passar um fim-de-semana inteiro a falar dele. Queríamos um jogador ofensivo com capacidade explosiva, rompedora. Não queríamos um 9, tipo Lineker. A ideia era contratar um homem capaz de meter qualquer defesa em apuros. Stoitchkov correspondia ao retrato robot na perfeição. Chegou há três anos a Barcelona e ganhámos três campeonatos espanhóis. Este ano, Hristo passa mal. Há que encontrar uma solução para o problema e acho que a encontrei. Hristo sente-se sem confiança e está assim porque tem passado o ano a tentar fazer coisas que não sabe. Falta-lhe técnica para fazer isto ou aquilo. Explico-me: até há pouco tempo, todos pensavam que o Stoitchkov fintava bem. Enganavam-se redondamente. A chave estava na velocidade. A correr, passava por todos. Parado, não passa por ninguém. Falta-lhe poder de finta. Depois, falta-lhe confiança. Por isso, dá meia volta. E mais uma. E outra. Às tantas, já não tem a bola. Hristo deve ter noção deste aspeto: calça duas chuteiras mas só tem uma perna, a esquerda, e isso é limitativo.”
7 KOEMAN
“Calma, isto do Stoitchkov não é o fim do mundo. Somos amigos. E dos bons. Já tive desentendimentos com muita gente. Koeman e Rijkaard, por exemplo. A propósito, Pelé diz que Rijkaard é o melhor jogador do mundo. Discordo. Em absoluto. É fantástico em muitas categorias, falta-lhe só disciplina dentro do campo. Não faz o que lhe mandam e prejudica os colegas, tanto no clube como na seleção holandesa. A disciplina tática é um detalhe importante, é o detalhe. E Koeman tem-no na ponta das chuteiras. E na cabeça. Chegou aqui como campeão europeu, no PSV, e voltou a sê-lo, no Barcelona. Sabe do meu grau de exigência e aplica-o no campo todos os jogos. Esforça-se por melhorar sempre, assume responsabilidades e, acima de tudo, tem caráter. É frio, calculista. Consegue meter a bola onde quer, mesmo que esteja a ser pressionado por um adversário a 20 centímetros. É verdade que lhe custa arrancar, mas ninguém o vê nas covas. No Barcelona, há muitos jogadores importantes mas poucos, muito poucos, assim tão definitivos.”
8 GULLIT
“Sou daqueles que gosta dos jogadores esforçados. Já me expliquei sobre este assunto no início, naquele Pelé vs Maradona. Uma das referências válidas é Gullit, com quem joguei no Feyenoord. Fomos campeões holandeses, aliás. Conheci-o jovem, fisicamente imponente e tecnicamente esclarecido. Tentei melhorá-lo e ele quis aprender. Ainda que lhe custasse os primeiros tempos, era capaz de dar passadas largas, com a bola controlada, até ao companheiro mais longínquo. Era generoso e tinha força. Só teve um problema na carreira: é muito boa pessoa. Não. Prefiro dizer isto de outra maneira, porque nego-me a aceitar que o facto de ser boa pessoa é um problema. Digamos que, no futebol, ser boa gente é uma desvantagem. Ruud, que acumulou muitas lesões ao longo dos tempos, ficou de fora mais vezes do que devia por ser um ‘buen tío’. É a lei dos estrangeiros, o Milan tem seis e alguns têm de ficar de fora. Mais uma vez, falo de Van Basten. Sempre o admirei porque nunca foi encostado. Nunca. Era capaz de partir a porta em pedaços caso isso acontecesse. Gullit, não. Gullit aceitava ir para o banco ou até para a bancada sem questionar quem quer que fosse.”
9 CANTONA
“O futebol é um desporto coletivo, é o somatório de 11 individualidades. Algumas destacam-se mais que outras. E depois há um senhor que está merecidamente na boca de todo o mundo. Falo de Cantona. Se o analisas à superfície, não terá nada de especial em nenhuma categoria. Se aprofundas a tua pesquisa, verás que é bom em todas elas. Tem velocidade, capacidade de desmarcação, remate, elevação para jogo de cabeça e, sobretudo, sabe posicionar-se como ninguém. No campo. E não só. Este chico é um nómada do futebol, um convencido das suas ideias, já deu mais voltas que um ventilador. Em França, jogou em cinco, seis clubes e foi internacional. De repente, atravessa o Canal da Mancha e vai para Inglaterra. Em 18 meses, é campeão pelo Leeds United e Manchester United. É obra. É especial, sim. Vai para os treinos de Harley Davidson e não se dá com os treinadores, desafia-os constantemente. Diria que não corresponde ao tipo de futebolista ideal mas este é um caso muito singular porque em Inglaterra é extremamente complicado ser-se campeão uma vez. Agora imagine-se duas. Bobby Charlton, um extraordinário jogador-cavalheiro, jogou um monte de anos em Inglaterra e ganhou um campeonato. Cantona, em 18 meses, ganha dois. É obra, repito-me. Por isso, liguei-lhe a dar os parabéns. É evidente que ele tem magia.”
10 FUTRE
“Um caso absolutamente distinto é o de Paulo Futre, agora contratado pelo Marselha. Embora seja famoso, coleciona muitos poucos títulos. A etapa no Atlético Madrid foi mais negra que outra coisa qualquer. Este Futre, pelas suas características, é um jogador mais limitado ao contra-ataque. Neste sentido, é um jogador imprescindível. Mas não seria valioso numa equipa como Barcelona ou Real Madrid. Pura e simplesmente, não jogamos assim. Não quero negar-lhe virtudes mas é um jogador específico para um futebol específico. É limitado. Tanto assim é que o Atlético acertou no seu substituto, um polaco chamado Kosecki, mais resistente e veloz que Futre. Ele, sim, é capaz de fazer 20 sprints no mesmo jogo e não apenas um. Há quem precise de 15 minutos para fazer outros sprint, Kosecki não.”
11 GUARDIOLA
“Tenho enorme consideração por Valverde, como jogador e como pessoa, mas não deu certo em Barcelona. E porquê? Nunca jogou relaxado, nunca rendeu o que se esperava, nunca jogou com o fez no Athletic Bilbao. Disse e repito-me: para jogar aqui ao mais alto nível, é preciso acreditar muito. Um caso distinto ao de Valverde é o de Guardiola, um ‘chico jovencisimo’ que, quando se estreou, até parecia estar à espera daquilo, tal a maneira como se desenvolveu dentro de campo. Além das suas qualidades futebolísticas, Pep tem uma personalidade enorme. Quando o comecei a seguir, ainda nos juvenis, percebi logo do que se tratava, de um jogador completo, embora franzino. Por isso, começou a fazer ginásio e mais ginásio. Para ganhar corpo. E adaptar-se ao jogo defensivo, mais físico. À medida que foi ganhando corpo e aprendendo a defender, tornou-se o Guardiola que todos conhecemos. Sabe jogar tão bem a meio-campo que nem vai ao choque. Basta antecipar os lances e já está. Só havia um problema, crónico: a ausência de remates à baliza. Insisti sei lá quantas vezes, ‘tens de rematar à baliza, Pep’, e ele nada. Às vezes, punha-o de castigo na equipa B para aprender as lições. Num desses casos, aconselhei-o ‘em Sabadell, tens de ser o melhor em campo e marcar um golo fora da área’. Não me lembro do resultado, só sei que ele marcou um golo a 25 metros.”
12 ALBERT
“Sabem quem foi a minha primeira referência, aquele que mais me impressionou? De certeza que ouviram falar pouco dele, mas aqui vai: chama-se Albert, Florian Albert. É húngaro. Tinha uma presença majestosa, um toque soberbo e um sentido de profundidade fora do comum. Quando os adversários sabem da tua superioridade, o teu raio de ação diminui consideravelmente porque já não tens tanto espaço de manobra. Acontece que quando és realmente bom, consegues sempre dar a volta à falta, ou mesmo ausência, de espaço. Albert era completíssimo nesse aspecto. Talento mais confiança igual a golos. É uma fórmula difícil de simplificar, só ao alcance dos mais geniais. Sim, Albert foi a minha primeira referência.”
13 SÓCRATES
“Há jogadores mais carismáticos que outros. Aqui, tenho Amor e Bakero. Amor, se não me engano, estreou-se no dia em que substituiu Maradona e, desde então, nunca baixou a cabeça. Trabalha mais que os outros, de sol a sol, é incansável na procura de um futebol perfeito. Tem presença, sabe estar e domina todos os elementos do jogo. Como Bakero, um valor indiscutível para qualquer equipa. Por entrega, sacrifício, visão de jogo e capacidade de desmarcação. Quando alguém não sabe o que fazer à bola, lá está o Bakero a ajudar esse companheiro. Tem uma qualidade técnica bem boa, embora seja distinto de todos os outros. Para muita gente, um futebolista técnico é aquele que domina a bola, que finta todos e sabe chegar à baliza sem dificuldade. Sabem então qual a máxima dificuldade? De jogar a um toque. Lembram-se de Sócrates? Era um brasileiro espigado, quase sempre com a barba por fazer, que parecia que jogava parado mas era mais rápido que todos os outros. E porquê? Jogava sempre ao primeiro toque e fazia-o sistematicamente, de forma matemática.”
14 DJUKIC
“Era-me impossível escrever um livro sem falar umas linhas sobre o Deportivo de Bebeto, Mauro Silva, Fran e outros, muitos outros. Um deles é Djukic. Não sei se é sérvio, croata ou bósnio. Dá-me igual. Para mim, é jugoslavo e digo isto porque os jugoslavos são uma classe à parte nos desportos coletivos. Individualmente, são distintos. Em grupo, outra coisa. Têm uma mentalidade diferente, uma técnica fina, suave; veem as coisas fáceis e tornam-nas mais simples ainda. Têm tranquilidade para resolver dificuldades, capacidade de improvisação. Djukic tem tudo isto, o que se traduz num futebolista de eleição, até porque joga em Espanha, onde o jogo dá muitas voltas por minuto” [curiosamente, em Maio do ano seguinte, Djukic seria o responsável pelo tetra do Barcelona, ao falhar um penálti nos descontos do Deportivo-Valencia, para a última jornada da Liga espanhola].