Cruijff, o revolucionário

Here's Johnny Mais 03/09/2020
Tovar FC

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Cruijff, o revolucionário

“Se quiseres ser bom no baseball, tens de reagir numa fracção de segundos para correr de uma base para a outra. Rapidamente percebi que o mesmo se aplica no futebol: é preciso decidir rápido para controlar uma bola, driblar um adversário, ajudar um companheiro ou tapar um buraco. Se conciliares esse espírito de decisão a uma técnica apurada, cresces como jogador e absorves o conceito do jogo em si. Em suma, começas a ver ‘the all picture” antes dos outros.”

Johan Cruyff, My Turn (2016)

“No Verão, era jogador de baseball a tempo inteiro. E era bom. Até joguei como catcher para a selecção holandesa, aos 15 anos de idade. Também fui first hitter, mas era tão pequeno que eles não tinham hipótese de coleccionar três strikes. O baseball tem uma vantagem enorme sobre os outros desportos: como catcher, tu vês o campo todo, ao contrário do pitcher. Esse aspecto da visão transforma-te dono e senhor da jogada. Adaptei vários ensinamentos do baseball para o futebol, tanto na época de jogador como na de treinador, com algum sucesso”

“No sistema juvenil do Ajax, etre os 10 e os 17 anos, a descontracção é o lema. Tens de te divertir a jogar, é uma espécie de mantra. E eu diverti-me sempre, sem parar. Fosse à frente ou atrás. Sim, é certo, fui guarda-redes umas quantas vezes. E era bom. Tanto assim é que era guarda-redes da terceira equipa do Ajax no mesmo fim-de-semana em que me estreei pela equipa principal, aos 17 anos de idade, a 15 Novembro 1964”

“Em 1965, o Ajax ofereceu-me um contrato de trabalho e assinei-o. Fui o segundo jogador profissional na história do futebol holandês, a seguir a Piet Keizer, também do Ajax. Mal saí do escritório, disse à minha mãe que nunca mais ia ser empregada de limpeza do Ajax. Simplesmente não queria que ela limpasse o que eu tinha sujado. Verdade seja dita, ainda limpou o meu equipamento durante uns tempos até acumularmos dinheiro para comprar uma máquina de lavar a roupa”

“Nunca fui muito do fitness, sempre tive uma aversão aos treinos no meio do campo e às bolas medicinais. Sempre que o treinador Rinus Michels inventava correrias pelo campo, distanciava-se o mais rapidamente de todos e ficava a descansar atrás de uma árvore. Esperava pelos meus companheiros, via-os a passar para lá e só quando eles voltavam é que retomava o passo, como se nada fosse. Fui apanhado, claro. E o castigo foi exemplar: um treino às oito da manhã na minha folga, no mesmo sítio. Eu apareci à hora marcada, Rinus Michels também, dentro do seu carro, ainda vestido com o pijama. Ele baixou a janela e disse-me ‘está demasiado frio para mim, vou voltar para a cama’. Humilhação total, nunca mais aldrabei nos exercícios de cross”

“Mais tarde, já como treinador, apanhei um jogador assim. Era o Frank Rijkaard. Também não gostava do cross e fazia tudo para correr menos que os outros. Apreciava esse estilo, mas não o deixava de puxar as orelhas”

“O Rinus Michels costumava inspeccionar todos os jogadores em casa, à noite. Conduzia por Amesterdão fora e via se estávamos em casa ou não. Não telefonava nem tocava à porta, limitava-se a ver se o nosso carro estava à porta. Como sabia deste esquema, pedi o carro emprestado ao meu padrasto e fui namorar à casa da Danny [futura mulher]. Claro, deixei-me levar por umas horas e só voltei de madrugada. Ao Rinus Michels, sei lá porquê, cheirava-lhe a marosca e não acreditava que eu estivesse em casa, apesar de ver o meu carro à porta. Então, aí sim, ligou à minha mãe e ela, sem combinarmos absolutamente nada, alinhou no meu jogo e disse-lhe que tinha dormido em casa. Foi divertida, a conexão entre mãe e filho”

“A primeira expulsão na história da selecção holandesa foi em 1967, vs Checoslováquia, e aconteceu comigo. Estava a ser constantemente maltratado pelos adversários e o árbitro da RDA chamado Rudi Glöckner nada fazia. Quando um checoslovaco bateu-me pela enésima vez e deixou literalmente o meu nariz KO, protestei airosamente e fui expulso. Acto contínuo, fui suspenso pela UEFA de representar a Holanda por um ano. Era assim naquela altura, o árbitro era a autoridade soberana do jogo e ai de quem o provocasse. Ainda por cima, estamos a falar de um jovem holandês no auge da Beatlemania vs um árbitro da Alemanha Democrática”

“O meu padrasto Cor foi uma mais-valia constante para mim, a todos os títulos. E também o de conselheiro na hora de renegociar os contratos. O Ajax não o via com bons olhos, os directores só queriam falar com os jogadores e impor-lhes as condições. Era assim ou não era. Com o Cor numa sala, o caso mudava significativamente de figura e ele passou a esgrimir argumentos importantes para a valorização do jogadores. Entendam isto, estávamos no final dos anos 60 e os clubes não protegiam de todo o futuro dos jogadores. Pelo contrário, deixavam-nos à balda. A partir do momento em que Cor entrou em acção, o panorama. Ele mudou a minha vida dentro do Ajax e, depois, a de muitos outros jogadores. Em suma, mudou o futebol holandês. Assim se faz um ídolo, pela calada”

“Dizia-se que eu era o melhor jogador do Ajax e, de facto, o treinador Kovacs fazia tudo para que eu fosse o centro das atenções, embora toda a equipa fosse altamente talentosa. Fosse como fosse, o estrago estava feito. Quando Kovacs saiu e foi substituído por George Knobel, falou-se de uma votação para definição do capitão de equipa. Estávamos na pré-época 1973-74 e essa ideia provocada pelos meus companheiros, com a cponcordância do novo treinador, apanhou-me de surpresa. Ganhou o Piet Keizer, a votação. Foi uma forma de inveja que nunca tinha experimentado”

“Se não fosse esse incidente com a braçadeira de capitão, nem pensaria na proposta do Barcelona. Só que entendi que os meus dias no Ajax estavam a acabar. Em Agosto 1973, depois de fazer um jogo para o campeonato com o FC Amesterdão em que ganhámos por 6-1, saí para Espanha. Lá, em Barcelona, apanhei outra vez o Rinus Michels. Foi divertido, garanto-vos. E uma grande experiência, tanto profissional como pessoal. Mais tarde, soube que a primeira opção de Rinus tinha sido Gerd Müller, do Bayern. Só depois é que apareceu o meu nome. Nunca lhe perguntei o porquê, ele era um personagem”

“Nunca entendi o porquê do tema braçadeira. Fui eu que inventara um sistema de dar mais dinheiro aos jogadores, o dos prémios de jogo da UEFA nas competições europeias. Sugeri à direcção que nos dividissem o prémio connosco: 30% para eles, 70% para os jogadores. A ideia foi aceite tranquilamente, até porque os prémios não apareciam no orçamento anual do clube. Se ajudei os meus colegas, porquê a votação? Nunca entendi”

“Experimentei um futebol diferente em Espanha. A nível de dinheiro, por exemplo. No Ajax, ganhava um milhão de florins e descontava 72% para os impostos. No Barcelona, recebia o dobro e só pagava entre 30/35%. Além de receber mais, também juntava mais. A nível político, é outro exemplo. Como fui jogar para Espanha, debaixo do regime do General Franco, começaram a criticar-me por estar a ganhar dinheiro e reputação às custas de um ditador. As coisas que se disseram e escreveram na Holanda sobre mim são perfeitamente non-sense”

“Na primeira época em Espanha, o Barcelona foi campeão. Algo que já não acontecia há 14 anos. Foi um momento sublime, inesquecível. Nessa mesma época, um jogo há memorável, o 5-0 ao Real Madrid. A história desse jogo é engraçada, porque Theo de Groots, um amigo de longa de Rinus Michels desde os tempos do Ajax, era vizinho do defesa central Gregorio Benito, do Real Madrid. Acontece que Benito não sabia de todo da ligação entre De Groot-Michels. Na semana do clássico, Benito cruzou-se com De Groot nos corredores do prédio e falaram sobre o próximo jogo. No dia seguinte, De Groot transmitiu a Michels que o Real Madrid ia adoptar a marcação à zona em relação a mim. Então, Michels disse-me para jogar mais avançado e confundir os defesas do Real Madrid. Deu certo, mais que certo”

“A final do Mundial-74 foi o clássico caso do orgulho. Pensámos para nós que já estava ganho. Antes do jogo até. Ao primeiro minuto, sem que a Alemanha tocasse na bola, penálti sobre mim. Neeskens, golo, 1-0. É impossível pedir mais? A Alemanha reagiu e empatou. Depois deu a volta, ainda na primeira parte. Há jogos assim em que tudo corre mal. E o correr mal, neste caso, tem a ver com a entrada de Wim Jansen no penálti do 1-1 e nas pernas abertas de Ruud Krol no 2-1 de Müller. Em nenhuma circunstância, deves deixar as pernas abertas em acção defensiva. Se a bola passar por aquele buraco, o guarda-redes não tem a mínima hipótese”

“Nem faço a mais pequena ideia, mas sempre sonhei acabar a carreira de futebolista aos 31 anos. Depois do Mundial-74 e do título de campeão espanhol pelo Barcelona nesse mesmo ano, decidi logo aí não ir ao Mundial-78. Mesmo que estivesse em condições físicas de jogar. Só que, depois, mudei de ideias. A qualificação para o Mundial-78 deu-me gozo e quis ajudar o meu país na Argentina. Acontece então um episódio marcante na minha vida: a 17 Setembro, estava tranquilo da vida a ver um jogo de basquetebol pela televisão, quando tocaram à porta de nossa casa num condomínio em Barcelona e era o correio. Ou não. Mal abri a porta, apontaram-me uma pistola à cabeça. A minha mulher Danny apareceu e o homem apontou-lhe também a pistola. Enquanto me amarrava a um móvel, pousou a pistola por momento e Danny conseguiu fugir pela porta fora, aos berros. O sacana foi atrás dela e eu apanhei-lhe a pistola. Da gritaria resultou a saída dos outros residentes e o homem foi apanhado em flagrante. Os seis meses seguintes foram horríveis. Pairava a insegurança dentro de nós, mesmo que estivéssemos a ser constantemente protegidos pela polícia, tanto no bairro como nas idas aos treinos ou à escola para levar os miúdos, que também estavam em casa durante aquele assalto, dentro de um quarto, a brincar. Sem o perfil psicológico ideal para representar a selecção holandesa num evento de tanta importância, disse não ao Argentina-78”

“Uma vez, fui expulso em Málaga. O relatório do árbitro dizia que lhe tinha chamado ‘hijo de puta’. É falso, nunca disse asneiras desse calibre num campo de futebol ou fora dele. Não sou assim, simplesmente não sou. Agora, é claro que insultava. Chamava os árbitros de doidos ou malucos, quanto muito. Nada de asneiras”

”Muito se fala sobre o meu vai-não vai para os NY Cosmos, só que nunca quis jogar por eles. Pelo simples facto de o Cosmos jogava em relva artificial e isso, para mim, não dá. A relva artificial é boa para baseball e futebol americanos, desportos jogados à mão. O futebol é relvado natural”

“Os americanos sempre foram muito apaixonados por desporto em geral. Lembro-me perfeitamente de vê-los a absover estatística como ninguém. São mestres nesse campo. E pioneiros. O que Billy Beane fez pelos Oakland Athletics é louvável em todos os aspectos. Mas, cuidado, é precso saber ler a estatística. Se me disserem que Messi marca três golos em 10 remates à baliza, haverá sempre alguém ou alguéns que descartam isso como eficácia. Se o compararem com outros jogadores, talvez os 30% de eficácia sejam o melhor registo daquela história”

“Quando voltei ao Ajax, já na casa dos 30, o meu padrasto Cor apresentou-lhes um plano engraçado baseado na adesão do público aos jogos. Se 10 mil pessoas fossem ao estádio, eu receberia metade do dinheiro da bilheteira. Se fossem 20 mil, ganhava o correspondente aos outros 5 mil bilhetes vendidos, que entravam directamente na minha pensão. Quando saí para o Feyenoord, a táctica manteve-se””

“Como treinador do Ajax, passei por momentos inesquecíveis a tentar contratar jogadores. Um deles foi com Madjer, na época 1987-88. Ele já tinha marcado aquele golo de calcanhar ao Bayern e sondei-o. Fiquei feliz por saber que ele era grande fã meu e desejava ser treinado por mim. Tratei de tudo com o Madjer e o Ajax arranjou-se com o Porto. Tudo estava nos conformes, só faltavam uns dias para formalizar a transferência e o Porto só pedia que não dissessémos nada à imprensa. Se houvesse uma fuga de informação antes de tempo, o Madjer não viria para o Ajax. Achei normal, correcto. Acontece que houve uma fuga de informação, mesmo antes do nosso jogo para a Supertaça Europeia. O negócio foi abortado naquele instante, disse-me o presidente do Porto”

“Quando o Van Basten saiu para o Milan, quis encontrar um líder natural dentro do Ajax. E ele chamava-se Rijkaard. Só que o Frank é modesto por natureza e não quis por nada deste mundo assumir o papel. Falei com ele, tentei mudar-lhe o chip. Nada feito. E ele foi encontrar o Van Basten em Milão no ano seguinte”

“Quando cheguei ao Barcelona, havia um ambiente confuso entre três partes: a direcção, a imprensa catalã e os próprios adeptos. No dia da apresentação, o público apladiu largamente o presidente Núñez. E, depois, assobiou Alexanco quando foi anunciado como capitão. Na hora, pedi o microfone e dirigi-me aos adeptos: ‘se quiserem, abandono já o lugar de treinador; o Alexanco é uma decisão minha e vocês têm de apoiar, nunca assobiar’. Da mesma maneira, o tratamento à imprensa. Os treinos eram sempre à porta fechada. Comigo, foram sempre à porta aberta. Havia liberdade, havia informação a correr. Se lhes pedia para contar a verdade dos treinos, como se estivesse a dizer-lhes ‘eu vou ajudar-vos e vocês têm de ajudar-nos’. E não é que resultou em pleno? Os adeptos recomeçaram a ver os craques em acção e os jornalistas também. Tudo funciona melhor em harmonia” “A época 1991-92 foi divinal, porque juntámos o inédito título europeu, em Wembley, à conquista do tetracampeonato espanhol. O nosso jogo acabou e ficámos todos no centro do relvado a ouvir pela rádio os minutos restantes do Tenerife-Real Madrid. Quando acabou, foi uma festa imensa. A maior de todas. Infelizmente, o Ronald Koeman não participou nos festejos. Foi convocado pelo Rinus Michels para um jogo particular da selecção holandesa. De todos os treinadores, nunca esparava isto do Rinus. Não é por mim, é pelo Ronald. Um jogador faz o campeonato inteiro e não tem direito a partilhar o prémio com os restantes companheiros? Foi tudo muito estúpido”

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