Zlatan, o do truque Ibracadabra
“Sou maluco por bicicletas. A minha primeira foi-me dada pelo meu irmão mais velho, era uma BMX. Chamei-a Fido Dido. Achava-me o gajo mais cool de sempre a andar nela. Um dia, perto da piscina de Rosengärd, roubaram-ma. Até estou a ver o meu pai a chegar à piscina de camisa aberta, com as mangas arregaçadas até ao cotovelo. Mesmo à campeão, estilo ninguém se mete com a minha família, ninguém rouba a bicicleta do meu filho. Só que a Fido Dido nunca mais apareceu, fiquei absolutamente destroçado”
I’am Zlatan (2011)
“Comecei então a roubar bicicletas um pouco por todo o lado. Pequenos roubos, no início. Depois, subi a parada e já era um profissional. Às vezes, vestia-me todo de preto, à Rambo, e saía à rua com o objectivo de roubar o mais possível. Era preciso ter destreza para destrancar o cadeado e sair de fininho, sem ninguém reparar. Sou muito raramente é que fui apanhado”
“Era completamente hiperactivo na escola. Não parava quieto um segundo. Só que era pequeno, tinha um nariz grande e não sabia dizer os esses. Uma terapeuta da fala é que me ensinou a corrigir essa falha.”
“O ambiente em casa era duro, nem imaginam. Vivíamos num apartamento e não havia cá abraços nem beijos, muito menos perguntas como ‘correu-te bem o dia, Zlatan?’ Nada disso. Estava rodeado de adultos que não nos ajudavam a fazer os trabalhos de casa nem perguntavam por nós. Se tivéssemos problemas, que os resolvêssemos. Um dia, estava a brincar no telhado do jardim-escola e tropecei. O resultado foi um olho negro. Quando cheguei a casa, nada de ‘coitado do Zlatan’. Foi mais ‘bloody idiot, onde é que estavas a fazer no telhado com os outros miúdos?’”
“À mesa, também não havia cá muita simpatia nem delicadeza. Não era como ‘querida, passas-me a manteiga, se faz favor?’, era mais ‘passa-me o leite, arsehole’”
“Gostei do Barcelona. Os primeiros dias, digo. A apresentação foi fantástica, num estádio cheio, com 70 mil pessoas. Vivíamos numa casa sensacional em Esplugues de Llobregat e estava tudo a funcionar às mil maravilhas. A primeira conversa com o Guardiola foi assim:
– Aqui, mantemos os pés no chão.
– Claro, com certeza.
– Por isso, não aparecemos nos treinos ao volante de Ferraris ou Porsches.
O que é que ele queria dizer com aquilo? Nunca entendi”
“Quando cheguei ao Barcelona, apercebi-me de um pormenor desconcertante: ninguém se chamava uma estrela. Messi, Iniesta e Xavi portavam-se como se fossemos rapazes da escola. Era ridículo. Se o treinador lhe dissesse ‘saltem’, eles saltavam sem questionar. Eu vinha de Itália e os jogadores de lá ficavam perturbados com determinados pedidos dos treinadores, como o saltar. Saltar porquê?, questionavam eles. No Barça, não, nada disso. Todos eles bem-comportados. Não me adaptei, nem por sombras. Pior, fiquei como eles. Até o meu empresário Mino Raiola sentiu a diferença e perguntou-me o que se passava comigo. Não sabia dizer, eles pegaram-me aquela doença. Só em Dezembro, durante as férias do Natal, é que voltei a ser o Zlatan de sempre. Fui para casa, na Suécia, e a adrenalina voltou. Peguei no meu Porsche Turbo e andei a 325 km. Deixei a policia a comer o meu pó. Depois fui para a neve e senti-me vivo, de novo.”
“O Messi é diferente de todos, um craque à parte. Não o conheço assim tão bem, porque ele chegou a Barcelona aos 13 anos e já faz parte daquela cultura do menino bem-comportado. Eu não sou nada assim e averdade é que estava a marcar mais golos que ele. Até que chegou o dia em que o Messi disse ao Guardiola ‘não quero jogar mais à direita, quero ir para o meio’. Eu é que era o 9. Mas o Guardiola não quer saber disso para nada e mudou de 4-3-3 para 4-5-1. Com essa mudança, fiquei amarrado e eu preciso de serr livre como um pássaro para brilhar. Quando questionei o director-desportivo Txiki Beguiristain, ele disse-me para resolver esse assunto com o próprio Guardiola”
“Fui falar com o Guardiola, nas calmas. Disse-lhe que não queria discvvutir nem iniciar uma guerra, só lhe queria dizer que estava a cometer um erro ao prender-me à posição 9. Afinal de contasd, pesava 98 quilos e não podia andar a correr de cima e para baixo. Que era como se ele tivesse comprado um Ferrari e estivesse a guiar um Fiat. Ele assentiu. Assentia sempre para evitar o confronto. E disse-me ‘okay, talvez tenha cometido um erro. Vou resolvê-lo.’ Fiquei feliz da vida e a verdade é que recomecei a marcar golos. Não tão bonitos como aqueles marcados em Itália. Até que chegou o jogo em Londres, com o Arsenal, para a Liga dos Campeões. Os primeiros 20 minutos foram absolutamente brilhantes, marquei o 1-0 e o 2-0. Depois fui substituído. E o Arsenal empatou 2-2. Nessa semana, lesionei-me e fiquei de fora por três semanas. Nesse período, nunca o Guardiola me falou. Nem uma palavra de preocupação ou conforto. Zero. Frio como gelo”
“Fiquei preocupado com a situação, o Guardiola evitava-me constantemente, até o contacto visual. Um dia, perguntei ao Thierry Henry, outro 9 no banco, se eu tinha feito algo de mal. Ele respondeu-me ‘não sei’ e depois começou a meter-se comigo, tipo ‘hey Zlatan, fizeste algum contacto visual no dia de hoje?’”
“A situação rebentou na semana do Inter-Barcelona. Algum esperto do Barça planeou uma viagem de autocarro, por culpa do vulcão na Islândia. Demorámos 16 horas a chegar a Milão, um massacre. Quando lá chegámos, o Guardiola começou por dizer ‘não vamos jogar contra o Mourinho, é contra o Inter’. Parêntesis, eu gosto do Mourinho. É um líder nato, enviava-me mensagens constantamente a perguntar se estava bem. Ainda me lembro da primeira vez que ele falou com a minha mulher, ‘Helena, só tens uma missão: alimenta o Zlatan, deixa-o dormir, nunca o aborreças’. Continuo com a conversa pré-Inter. É o dia do treino e toda a gente diz que vou jogar a titular. A confirmação é-me dada depois pelo próprio Guardiola. De uma maneira estranha:
– Estás preparado para jogar desde o primeiro minuto?
– Definitivamente.
– Mas estás preparado?
– Absolutamente, já estou bem fisicamente.
– Mas estás mesmo?
Ele parecia um papagaio e comecvei a sentir más vibrações. No dia seguinte, banco. Só entrei aos 60 minutos e perdemos 3-1. Em Barcelona, só conseguimos o 1-0. Estávamos fora da Liga dos Campeões”
“Estava pior que estragado e ainda consegui piorar na semana seguinte, quando só joguei cinco minutos com o Villarreal. Cinco minutos? Definitivamente, já não fazia parte daquela equipa e entrei furioso no balneário. Dei um pontapé num caixote do lixo de metal e aquilo voou uns três metros. Depois encarei o Guardiola e disse-lhe que não tinha tomates, que se estava a cagar todo perante o Mourinho e que podia ir para o inferno. O que é ele fez? Podia ter tentado argumentar, acalmar-me ou sei lá. Mas não, corrigiu a posição do caixote do lixo e saiu de cena. É um cobarde”
“Passei a minha infância a conviver com as cervejas do meu pai e os cigarros da minha mãe. Sou totalmente contra esse tipo de vícios e só apanhei a primeira bebedeira valente aos 17/18 anos. Depois disso, só me embebedei uma outra vez, a festejar o meu primeiro título de campeão pela Juventus, e a culpa foi do Trezeguet, essa cobra, que me encheu de shots até dizer chega e adormeci na banheira de casa”
“O meu primeiro clube a sério foi o Malmö FF. Quando lá cheguei, eram só miúdos posh suburbanos. Eu parecia de Marte. Até porque fintava quem quisesse e rugia dentro de campo. Parecia um leão enjaulado há demasiado tempo. Todos os outros eram bem educados e sensíveis. Um dia, vi um amarelo por meter na ordem um companheiro de equipa. O árbitro justificou-se com um ‘ não podes fazer isso, nem a um colega de equipa’ e eu mandei-o também àquele sítio. Fui expulso. Aquilo começou a aquecer, porque os pais dos suecos originais ficavam muito ofendidos com a minha atitude guerreira e faziam queixa aos dirigentes do Malmö FF”
“Fora isso, aquilo do Malmö até era fixe. Um dia, fui apanha-bolas de um jogo com o IFK Gotemburgo e todos os miúdos estavam loucos atrás de um gajo chamado Thomas Ravelli, que tinha feito umas defesas no Mundial-94. Para falar verdade, nunca tinha ouvido falar dele. Ouvira, isso sim, é dos brasileiros como Romário e Bebeto. A única coisa que me interessava do Ravelli era o seu par de calções. Onde é que ele os terá comprado?”
“Falaram-se do interesse do Ajax. Fui à Lua, claro. Informaram-me queo clube ia espiar-me durante um particular com o Moss, da Noruega. Estavam lá o Co Adriaanse mais o Leo Beenhakker. Sabia lá eu quem era o Beenhakker, mas era um big shot só pela pinta. As pessoas chamavam-no o Doc Brown, do Regresso ao Futuro. Se o fosse, era certamente a versão mais doida varrida. O olhar dele era de um duro, irradiava poder e classe. O jogo foi em La Manga e eu, a princípio, só vi o Co Adriaanse. O Beenhakker tinha-se esgueirado para um dos topos naquela de passar despercebido. A verdade é que não o vi, mas marquei um dos melhores golos de sempre. O relógio, lembro-me perfeitamente, marcava 15.37 e desenhei uma jogada na minha cabeça. Fiz um pequeno chapéu sobre um adversário, arranquei decidido, passei por outro com um toque de calcanhar e arranquei um pontapé com o pé esquerdo em que a bola parou no ângulo. Golo. Nos festejos, houve quem pensasse que eu tivesse dito Zlatan. Nada disso, nunca iria festejar com o meu nome. Dizia ‘show time, show time’”
“O Ajax queria adiar ao máximo a transferência, enquanto Beenhakker insistia num encontro comigo, já em La Manga. Às tantas, lá conseguiu. No hotel da equipa. E disse-me só isto: ‘se me lixares, eu lixo-te duas vezes’. Fiquei siderado. E maravilhado. Ele falou a minha língua”
“O treinador do Ajax era o Co Adriaanse, a bloddy Gestapo officer. Contavam-me dele as piores histórias, todas relacionadas com indisciplina. Uma delas com um guarda-redes estrangeiro que não sabia falar holandês. Como deixou tocar o telemóvel durante a palestra, teve de passar o dia seguinte a atender telefones na sede do Ajax. A minha primeira conversa com o Co Adriaanse foi assim e nunca a esquecerei:
‘- és alguma coisa de jeito?
– ainda nem toquei na bola.
– sim, mas os adeptos assobiam-te e essas coisas?
– oh yeah, muito.
– boa boa, estás preparado então””
“O Co Adriaanse era tramado. Nos treinos, dava-nos notas de 1 a 10. Uma vez, marquei cinco golos e ele deu-me um 5. Questionei-o e ele ‘fizeste dois passes maus’.”
“O meu maior problema no Ajax foi o primeiro dia. Julgava que ia ser pago no primeiro dia, mas não, só no último. Então passei o tempo a bater a cabeça contra as paredes, proque não tinha dinheiro. Nenhum, mesmo. E queria almoçar, lanchar e jantar. Pior, não tinha amigos a quem telefonar. Até que me lembrei de um brasileiro que conheci noa eroporto nessa manhã. Era também um jogador, chamava-se Maxwell. Liguei-lhe e fui directo ‘estou aqui numa crise, nem sequer tenho corn flakes aqui em casa, posso ficar aí em tua casa? Ele aceitou e acertámos uma amizade que ainda dura. O único defeito do Maxwell é que calmo demais. É um rapaz sensível terra a terra, muito da família”
“A época costuma ser longa e há momentos bons, outros maus. No Ajax, conheci um período horrível em que os próprios adeptos assobiavam-me. Comecei a ter saudades de casa e telefonei ao Malmö FF para saber se eles me queriam de volta. Não queriam, claro. Disseram-me para me aguentar, que o futebol é assim mesmo. Muito bem, não desisti, até porque o treinador Ronald Koeman deu-me força e fiquei no Ajax. Chegou o dia da final da Taça da Holanda, com o rival Utrecht, a 12 Maio. Estávamos a perder por 2-1 quando o Ronald Koeman me fez entrar aos 78 minutos. Era agora, o tudo ou nada. No primeiro remate, atirei à trave. Nos descontos, uma jogada de ataque foi concluída com êxito pelo brasileiro Wamberto. Foi a loucura, porque os adeptos do Utrecht já cantavam vitória e, de repente, só se ouviam os do Ajax. No prolongamento, aquilo funcionava com golo de ouro, como no hóquei em gelo. Marcámos o golo cedo, por mim. Um remate com o pé esquerdo, nada de especial, longe disso, mas colocadíssimo. Tirei a camisola e corri como um louco. Nos festejos, o Ronald Koeman abraçou-me e não parava de dizer ‘obrigado’”
“Passei a vida a ser comparado com Van Basten. Eu sou o Zlatan, mas tudo bem, o Van Basten é uma referência, assim como o Ronaldo fenómeno. Às tantas, conheço o Van Basten. Ele chega ao Ajax para treinar as camadas jovens e começamos a falar numa base regular. Era porreiro e picava-me constantemente antes do jogos:
– Quantos golos marcas hoje? Diria um.
– Um, só? Dois, no mínimo.
– Nem pensarm, vai uma aposta?
E apostávamos na brincadeira. Às vezes, ganhava ele. Outras, eu. O que interessa aqui referir é o seu à vontade para lidar comigo. Não falava de forma diferente nem jogava à defesa. Aliás, o Van Basten fazia o que queria no Ajax e não ligava a mínima para os chefes. Um dia, perguntei-lhe o que fazer quando me chamavam a atenção. A resposta dele foi ‘não lhe ligues’. Como assim? ‘Não gastes energia a defender-te, guarda-a para o jogo, para os golos. Foi uma lição de vida”
“O Beenhakker saiu e entrou para o seu lugar um tipo chamado Van Gaal, a pompous arse. Era um mini Co Adriaanse e também queria ser um ditador. A minha primeira vez com ele foi em Portugal, a meio da época. Organizaram uma reunião individual com os jogadores. Quando entrei na sala, estava o Ronald Koeman, de quem gostava, e o Van Gaal, a quem torcia o nariz. Sentei-me e disse-lhe olá, o Koeman sorriu, o Van Gaal nada. Eles no Ajax têm a mania do ranking de 1 a 10 e deram-me um 8. Até foi o Koeman quem o disse. Concordei e estava preparado para sair, quando o Van Gaal me perguntou se sabia defender. Disse-lhe que sim e ele começou a falar das obrigações defensivas do número 9. No Ajax, falava-se muito dos números. O 9 é o jogador da área, o 10 vai pela esquerda, o 6 isto, o 8 aquilo. O diálogo foi este
– Todos nós sabemos a lógica dos números, mas eu treino com o Van Basten e ele pensa de forma diferente.
– Excuse me?
– Van Basten diz que o número 9 tem de guardar energia para atacar e marcar golos e, para falar verdade, irei escutar o Van Basten, que é uma lenda, ou o Van Gaal?
O Van Gaal ficou furioso e eu saí de cena”
“Havia conversações com a Roma do Capello. Fiquei interessado, óbvio. Era o salto para Itália. Perguntei ao Van Basten e ele arrefeceu o interesse. ‘Deixa-te ficar no Ajax mais um ano ou dois. Aqui, tens cinco ou seis oportunidades de golo por jogo. Lá, em Itália, é mais duro e só tens uma ou duas. Aperfeiçoa os teus conhecimentos de jogador de área. Entendi-o e aperfeiçoei-me. Quando chegou a hora, tinha de ter um empresário à altura. O meu, que se chamava Carlsson, era um caso perdido. A última vez que lhe telefonei a insistir em trabalhar nas propostas, ele arranjou-me o Southampton. Baahhhhhhhh. Telefonei então a um amigo e pedi-lhe o melhor dos melhores. Ele deu-me duas hipóteses: ou a empresa que trabalhava ou Beckham ou um tipo chamado Mino Raiola. O meu amigo chamava mafioso a Raiola e eu adoro mafiosos. Tinha era de ser por um intermediário, era assim que o Mino trabalhava. Então, falei com o Maxwell, que trabalhava com o Mino. A primeira mensagem do Mino para o Maxwell sobre mim foi esta: ‘Tell this Zlatan to go and fuck himself.’”
“A primeira convcersa com o Mino também não foi muito amigável. Ele apresentou-se com uma folha A4 cheia de números: Vieira, 27 jogos, 24 golos; Filippo Inzaghi, 25 jogos, 20 golos; David Trezeguet, 24 jogos, 20 golos; e, finalmente, Ibrahimovic, 25 jogos, 5 golos
– achas que te vendo para um clube com estes números?
– se marcasse 20 golos como os outros, não precisava de ti; até a minha mãe me vendia
– achas-te muito bom, é isso?
– estás a falar do quê?
– achas que ia ficar impressionado com o teu relógio, o teu Porsche, a tua atitude. Mas não estou nada impressionado. Se queres ser um dos melhores do mundo, tens de marcar mais golos, muito mais.
– vamos a isso, quero ser o melhor. O melhor.
– então vais vender todos os teus carros, todos os teus relógios e vais treinar três vezes mais, porque as tuas estatísticas são uma merda.
Pensei naquilo horas a fio. Vender o Porsche? Como assim? Mas vendi. Passei a andar com um Fiat Stilo. Vender os meus relógios? Até aquele de ouro? Vendi. Passei a andar com um foleiro da Nike. E comecei a andar vestido com um fato-treino.”
“A época seguinte começou em Agosto e queria sair do Ajax, porque o ambiente já estava insuportável, até porque entrei em rota de colisão com o capitão Van der Vaart, um miúdo mimado e parvo, que se dizia cigano para evitar comparações com os outros holandeses do plantel, todos eles meninos do papá. Ele era bom, claro. E até tinha sido eleito o melhor sub21 da Europa ou lá o que era, mas era prepotente atè à sétima casa. Estava farto daquilo e nem a ajuda de Ronald Koeman já me satisfazia. Tinha de sair. Há um jogo em que sou substituído a meio da segunda parte. Furioso, saio a gesticular e vou directo para casa. O Mino liga-me.
– viste-me aquilo? Tiraram-se a meio da segunda parte.
– e devia ter-te substituído mais cedo, não jogaste nada.
– O quê?
– é isso mesmo, não jogaste nada.
– vai à merda.
– vai-te foder.
E desliguei o telefponei. Tomei banho e fui para casa. À porta, o bloody idiot do Mino estava lá, à minha espera.
– Vai à merda.
– vai-te foder. Eu quero sair daqui.
– neste caso, vamos para Turim.
– o quê?
– Juventus.
– estás em contacto com a Juventus por mim?
– sim.”
“A primeira reunião na Juventus foi com Moggi, no restaurante Urbani, em Turim. O Moggi sabia como lidar no meio do futebol como mais ninguém. Era ele o cérebro da Juventus, só que o Mino partia-lhe a cabeça over and over. Disse ao Mino, à minha frente, que eu e o Trezeguet não funcionávamos. Bom, o Mino marcou um jantar no dia seguinte com o Moggi e, sem dizer nada a ninguém, também convidou o Capello. À mesa, nós os quatro falámos sobre tudo. A primeira pergunta foi do Mino para o Capello: ‘o Moggi diz que o Trezeguet e o Ibrahimovic não combinam.” Ali mesmo, à frente do Moggi. Que ficou todo atrapalhado, claro. Capello reagiu de imediato. ‘Falso, eu é que sei o que fazer. Traz o Ibrahimovic e fazemos dele avançado da Juventus, ao lado do Trezeguet. Negócio fechado, fui apresentado com o Cannvaro, que me ajudou bastante na primeira fase em Turim, onde fiquei com o apartamento do Filippo Inzaghi”
“No primeiro treino a sério na Juventus, todos foram tomar banho menos eu. O Capello chamou um guarda-redes dos juniores e o adjunto Galbiati começou a bombardear-me bolas de todas as maneiras, de todos os ângulos e de todos os feitios. Ao todo, fiz uma série de 100 remates. Na boa. Às tantas, o Capello só me dizia ‘vou tirar-te o Ajax do corpo, não preciso da escola holandesa. Tens de treinar no duro a baliza, tens de ser letal, tens de marcar golos. Não quero saber de fintas nem de dribles, quero golos, golos e só golos. Um, dois toques no máximo. Sempre de olho na baliza.”
“Havia um jogador da Juventus com problemas pessoais, era o Zebina, campeão com Capello na Roma. Ele estava agressivo nos treinos e, um dia, deu-me uma cabeçada. Evitei o choque no último instante e dei-lhe das boas. Ele caiu redondo e o primeiro a aparecer foi Cannavaro. ‘Ibra, o que fizeste?’ Olhei para ele e piscou-me o olho. O Zebina não tinha muitos amigos na Juve. Só Thuram, talvez, que me apelidou de ‘novo e estúpido’. Capello, que assistiu a toda a cena sem mexer um único músculo, reagiu então: ‘Thuuuuraaaam, cala a boca e sai já daí. Silêncio e, depois, o Capello disse ‘isto foi bom para a equipa’.”
“O Thuram entrou outra vez no olho do furacão de Capello na ressaca de uma derrota por 2-0 em Liverpool, para a Liga dos Campeões. As marcações estavam delineadas antes do jogo e o Thuram, à última hora, foi marcar outro jogador. Na jogada, golo do Liverpool. No balneário, todos em círculo e Capello para trás e para trás.
– Quem te mandou marcar outro jogador?
– Ninguém, pensei que fosse a melhor opção.
Capello inspirou e expirou um par de vezes.
– Quem te mandou marcar outro jogador?
– Ninguém, pensei que fosse a melhor opção.
À terceira, Capello passou-se e disse-lhe das boas: ‘Aqui quem manda sou eu, eu é que faço as regras e eu é que as desfaço. Aprende.’ E saiu furioso. Quando tiro os olhos do chão, vejo todos os craques, entre Buffon, Nedved e Del Piero, ainda cabisbaixos.”
“Capello, repito, é daqueles homens que te deixa desarmado. Tu não falas até ele acabar de se expressar. É assim, fácil. Uma vez, apanhou-me no balneário e chamou-me ao gabinete dele. Pormenor, ele estava de tronco nu, enrolado numa toalha e de chinelos. O que é que ele quereria? Tirou uma cassete, introduziu-a no VHS e, antes de fazer play, disse-me: ‘este é o Van Basten, vais ver todos os golos dele e absorvê-lo’. Fez play, saiu de cena e eu fiquei ali uma boa meia-hora a ver golos atrás de golos, sem parar. De todo o lado”
“A Juventus desceu de divisão com o Moggi gate e começou uma debandada. Alguns, atenção, ficaram para jogar a 2.ª divisão. Como Buffon, Del Piero e Nedved. Outros síram logo: Zambrotta para o Barcelona, por exemplo. Eu queria sair. Ainda não sabia para onde. Enquanto o Mino não arranjava um clube em concreto, andava a treinar na Juventus. Sempre com a ideia fixa de sair. Ao contrário do novo treinador, o francês Didier Deschamps.
– Ouve, espero grandes coisas de ti, aceitei este trabalho por tua casa.
– Não me venhas com essas conversa, aceitaste pela Juventus e não por mim.
– Estou a falar verdade: se desistires, eu desisto.
. Muito bem: fazes as malas e eu chego um táxi.
Ele riu-se como se eu tivesse a brincar e saiu de cena”
“No dia do primeiro jogo da pré-época, o autocarro da Juventus estava parado à frente do hotel, ainda à minha espera. Eu não ia jogar. De maneira nenhuma. Queria sair dali. Mesmo. O Deschamps tinha outras ideias e apareceu-me no quarto. Interrompeu-me o jogo de PlayStation.
– Ainda estás aqui sentado? Vamos lá, temos jogo hoje.
Nem sequer olhei para ele, continuei a jogar.
– Ouviste o que eu disse?
– Ouviste o que eu disse? Já te disse dez veses que treino com vocês mas não jogo.
– Ai vais jogar vais. Tu ainda pertences a esta equipa. Vá, vamos lá.
Eu não me mexi, enquanto ele se aproximou de mim. Continuei a jogar.
– Continuas a jogar, é isso? Vou multar-te.
– Okay.
– O que queres dizer com okay?
– Multa-me à vontade, daqui não saio.”
“O primeiro clube interessado a aparecer foi o Milan, a reunião foi com o Braida, mas eles estavam muito convencidos de que eu ainda não era uma estrela e só falavam de ajudar o Kaká. O Kaká isto, o Kaká aquilo. Aquilo fartou-me e pensei em arranjar outro. O Mino nem sonhava, mas falei-lhe do Inter, que, afinal de contas, era o antigo clube do meu ídolo, Ronaldo fenómeno. Mino aceitou o desafio e telefonou, de repente, ao Moratti. ‘Vamos ter uma reunião daqui a nada com o Berlusconi, no restaurante Giannino. Moratti como que saltou e enviou um emissário chamado Mario Branca, que fumava como uma chaminé. De contrato na mão, assinámos tudo e lá estava eu no Inter”
“O Moratti estava feloz da vida. É um homem afável, que gosta muito de futebol. Só que pagava muitos prémios de jogos. A torto e a direito. Uma vez, disse-lhe que não devia ser assim. Se queria que conquistássemos títulos, pagaria muito bem pelo título e não pelo jogo. Ele ouviu-me e começou a fazer as coisas assim.”
“O Inter contratou Mourinho e ele enviou-me logo uma mensagem pelo telemóvel: ‘vai ser bom trabalharmos juntos, estou ansioso por conhecer-te’. Nada de especial, mas escrito em italiano. Não percebi nada daquilo. Ele nunca tinha treinado em Itália e já sabia falar italiano melhor que eu? Dias depois, joguei com a Espanha e ele escreveu-me novamente ‘bem jogado’. Um treinador a escrever-me? Isso era inédito na minha carreira. Gostei dele na hora. Ele queria minha lealdade e sabia como conquistá-la. Isso e outros pormenores sensacionais. Ele construía amizades dentro do balneário, através de mensagens e emails. Às vezes, mostrava-nos vídeos em jogadas más da nossa parte e partia-se a rir, enquanto dizia ‘isto só pode ser o teu irmão ou isso, não?’”
“Um dia, em Bolonha, marquei um golo belíssimo. Jogada do Adriano pela esquerda e eu encostei de calcanhar. Foi um gesto de karaté, muito vistoso. Um golo único, até o Moratti aplaudiu na bancada VIP. Na linha lateral, Mourinho impávido e sereno, com as mãos nas ancas, com uma poker face. Fiquei admirado e fui falar com um dos adjuntos de Mourinho. Chamava-se Rui Faria e também era português. Disse-lhe tudo isto e ele respondeu-me ‘tem calma, ele é mesmo assim; ele não reage como o resto das pessoas”
“Chegou o dia do jogo do título, em Siena. Ganhámos 4-3 e eu marquei o golo do título. Foi uma festa desmedida, despi a camisola e corri como um louco até ser apanhado por toda a gente. Saltaram-me para cima e diziam-me ‘vais ser o capocannoniere’, que é o melhor marcador em Itália. De repente, vindo do nada, vejo Mourinho a atirar-se a mim e depois completamente aos saltos como se fosse uma criança. Afinal de contas, ele gosta dos meus golos”
“O Barcelona apareceu-me de repente e aproveitei sem pestanejar. Ia abandonar o Inter, ia abandonar Mourinho. Foi uma pena. Encontrei-me com ele no hall do hotel e trocámos umas palavras
– Não podes ir.
– Desculpa, mas é uma oportunidade para aproveitar
– Se fores, eu também vou.
– Obrigado por tudo, ensinaste-me muito.
Distanciei-me do Mourinho e ele chamou-me outra vez:
– Hey Ibra.
– Yeah?
– Vais ganhar a próxima Liga dos Campeões?
– Yeah, talvez.
– Somos nós que a vamos ganhar, somos nós. Lembra-te disso.
E foram mesmo, o Inter foi campeão europeu em Madrid. E há aquele abraço entre Mourinho e Materazzi à saída do Bernabéu. É mesmo assim, o Mourinho”
“A segunda época começou no Barcelona e o Guardiola voltou com aquelas coisas dele. Perguntou-me como é que eu estava. Disse-lhe a verdade.
– Estou pronto para demonstrar o meu valor e entrar no 11.
– Estás mesmo dispostos a isso?
– Estou, pois.
– Mesmo, mesmo disposto a isso?
– Vou trabalhar para isso, claro que sim.
– Mesmo?
– É o meu objectivo.
– A sério que é o teu objectivo?
Aquele interrogatório já estava sem ponta por onde se pegue e acabei por chegar à conclusão de que era melhor sair dali. Também era esse o desejo de Guardiola e do próprio Barcelona, conforme o presidente Josep Bartomeu fez questão de dizer. Dizia-me que tinha propostas de Inglaterra e Itália. Eu e o Mino reunimo-nos com Bartomeu e contámos o nosso plano.
– Tenho uma ideia.
– Qual?
– Ir para o Real Madrid.
– Não, isso não pode ser.
– Ai não? Então temos um problema sério: o treinador não me quer e não tem coragem para dizer-mo na cara. E eu, que até queria ficar mais um ano, quero sair e o Real Madrid está aí à porta.
– Mas não, o Real Madrid não pode ser.
Claro, era bluff. Na verdade, o Mino tinha propostas de Manchester City e Milan.
– Claro que pode, o Real Madrid tem o Mourinho e já o conheço do Inter. Quero ir para lá.
– Isso não pode ser.
– Acho que tem de ser.
– Não há alternativas?
– Só se for o Milan. Mino, Milan é?
Mino diz que sim, com a cabeça.
– Por quanto?
– Vinte milhões de euros.
– Vinte milhões?
– Vinte milhões.
Bartomeu olhou para Rosell e aceitaram quase na hora. Pela primeira vez, um jogador descia 70 milhões de euros de um ano para o outro. Ficava a perder o Barcelona, por culpa de quem?”
“Do filósofo, do filósofo Guardiola. Quando o negócio com o Milan se fez, saí das oficinas do Barcelona e desci as escadas até à rua, onde estava um carro à minha espera para o aeroporto. Os jornalistas amontoavam-se lá em baixo e eu queria encontrar um termo para caracterizar o Guardiola. De repente, saiu-me o filósofo. Perguntaram-me o que tinha falhado e eu respondi: ‘Perguntem ao filósofo qual foi o problema”
“No Milan, encontrei um central norte-americano chamado Oguchi Onyewu
– Olha lá, não sou como os outros centrais.
– Ainda bem para eles.
– Comigo, vais entrar na linha.
– Estás a falar do quê?
– Conheço-te, sei bem que só sabes insultar os defesas nos jogos. Comigo isso não funciona. Deixei-o falar. Até que começou o treino com bola. No primeiro lance, falta dele sobre mim. Como ninguém assinalou, refilei ‘é falta’ e ele, ao afastar-se, meteu um dedo na boca como que a mandar-me calar. Respondi-lhe ao longe e ele voltou a mandar calar-me. Passei-me e atirei-me a ele, a pés juntos. Falhei o primeiro movimento, acertei o segundo e dei-lhe uma cabeçada. Embrulhámo-nos e tiveram de nos separar. Quando tudo estava mais calma, ele estava a rezar com lágrimas nos olhos”