Peyroteo, o goleador inimitável
“Como funcionária do Estado – professora em Moçâmedes –, a minha mãe tinha direito a gozar licença graciosa na metrópole. E porque o seu estado não permitia que viajasse sozinha, convidava-me a vir com ela. A bordo do Niassa, o barbeiro do navio era benfiquista ferrenho e fez tudo quanto podia para me fazer vestir uma camisola encarnada; em contrapartida, o amigo Fonseca, que era trompetista da orquestra, era leão dos quatro costados. Ali, em pleno Atlântico, travou-se a primeira luta entre Benfica e Sporting à minha pessoa. E eu só os ouvia e sorria.”
“Após uma breve troca de palavras, fui convidado a visitar a sede do clube, na Praça dos Restauradores, o que aceitei verdadeiramente emocionado. Como bom desportista, sempre evitei permanecer em salões onde há perfumes ricos, raparigas interessantes, fumos de tabaco e sons. Saí.”
“O meu primeiro treino é só com o mestre Szabo. Passes de cabeça, com o interior do pé esquerdo e depois com o do direito. Chutei em todos os estilos. Depois, Szabo propôs-me um concurso de remates à baliza. De repente, interrompeu o treino. ‘Sinhor Fernando, assim ser canja! Querer furar barriga de guarda-redes? Atirar para junto dos postes, ir ver que dificuldade ter guarda-redes. Experimentar se fazia favor. Em cada dez remates, seis iam para fora. O que fazia então o treinador? Obrigava-me a ir buscar a bola, a correr. Duas horas depois, largou-me e disse: ‘Sinhor Fernando ter jeito, mas precisar trabalhar muito. Bom pontapé, bom corrida. Precisar muito treining de técnica de futebol.”
Memórias de Peyroteo (1957)
“O treinador disse-me: Fernando amanhã ir fazer seu primeiro treining de conjunto. Não perturbar com malandragem de companheiros. Bons rapazes mas gostarem de brincadeiras. Sinhor ser novato e ter de suportar gozadelas. Não engolir a isca, não ligar. Ter-se força suficiente para impor-se.”
“Embora não tivesse feito um grande jogo [na estreia pelo Sporting, vs Benfica, com dois golos na vitória por 5-3], nem outra coisa seria de esperar em campo relvado, que pisava pela primeira vez, botas com pitons, que nunca usara, e companheiros que quase não conhecia, também é verdade que não fiz aquilo a que se chama de figura de urso.”
“Nos primeiros tempos, vivi em Sintra e o comboio saía dessa encantadora vila às seis e três da manhã para chegar ao Rossio às 0645, aproximadamente. Nos Restauradores, tomava o carro eléctrico e chega ao Estádio Alvalade por volta das 0720, com tempo suficiente para me equipa e treinar a partir das 0745. Um dia, o despertador ‘esqueceu-se’ de tocar às 0515 e não só perdi o comboio habitual como cheguei tarde ao treino. Fui multado, com o mestre Szabo a justificar-se: ‘Sinhor Fernando ter que dar exemplo, todos eguales. Se desculpar, outros dizerem para mim que você ser menino bonito. Todos eguales.’ A multa é de 70 escudos, os tais 10% do ordenado. À saída do treino, o mestre insiste em levar-me à baixa e, na Praça dos Restauradores, diz-me ‘Fernando, eu não dar 10%, mas vamos comprar despertador novinho em folha para tocar sempre. Custar cinquenta escudos, poupar vinte escudos.”
“Certa manhã, recebi um postal do Sporting a convocar-me para o treino da selecção e julguei tratar-se de uma brincadeira. Sem perda de tempo, fui à sede e obtive a confirmação que se tratava, na verdade, de uma ordem do seleccionador Cândido de Oliveira”.”
“Logo que o comboio se pôs em andamento, de Lisboa para Paris, eu e o Espírito Santos fomos pedir ao Capitão Maia Loureiro, comandante da caravana, que nos deixasse dormir no mesmo compartimento. Fomos atendidos. Ao ver duas camas, uma por cima da outra, o Guilherme determinou: ‘tu ficas cá em baixo, não vá partir-se este zangarelho que segura a cama e eu ficar esborrachado com esses 80 quilos bem pesados’”
“Se alguém me dissesse que ia vestir a camisola da selecção portuguesa para um encontro internacional com a Espanha quando eu ainda era um rapazola de 13 ou 14 anos e jogava futebol na equipa dos miúdos da minha terra angolana, duvidaria do estado mental desse bruxo!” “Fui soldado nas fileiras do desporto nacional. De hoje em diante, reconheço que sou um soldado velho. Quando entro em campo, vou cheio de vontade de jogar, mas depois de meia dúzia de pontapés na bola apodera-se de mim um enfastiamento inexplicável.”