Abel Xavier. “Dimas é o meu irmão de sangue: ele comprou um Suzuki preto e eu um Suzuki branco”
Quarta-feira, 3 Outubro 1990. Segundo jogo europeu do Estreia, 1-1 em Neuchâtel. Do lado do Estrela, três jovens com presença garantida no Euro-2000 entre Dimas, Abel Xavier e Paulo Bento. Do lado do Neuchâtel, três futuras figuras do Mundial-94 pela selecção suíça entre Pascolo, Egli e Sutter.
Dos 22 elementos em campo, o mais novo de todos chama-se Abel Xavier. Que é feito internacional por Carlos Queiroz em 1993 vs quem? Suíça de Pascolo, Rothenbuhler, Sutter e Bonvin, todos eles da geração Neuchâtel 1990. Ele há coincidências. Metemo-nos com ele, o Abel.
Lembras-te deste jogo?
Claro que sim, grande momento na carreira de todos nós. A estreia do Estrela na UEFA. Sou o mais novo dessa equipa, lançado pela dupla Manuel Fernandes-José Mourinho. A nossa estrutura era bem competitiva, baseada na formação, através do recrutamento de jogadores dispensados por Benfica e Sporting, essencialmente esses dois clubes.
O Abel é um desses exemplos?
Nem mais, fiz a formação no Sporting.
Entraste em Alvalade com que idade?
Aos oito, o meu treinador era o César Nascimento e fui capitão de equipa. Aos oito anos. Foi divertido, digo-te. Depois subi de escalão e apanhei o João Barnabé. Nos juvenis, sou treinado pelos irmãos Pereira, o Carlos e o Aurélio. Temos de elogiar a fidelização dos irmãos Pereira, são responsáveis por 80% da produção nacional top, através da qualidade do passe, a capacidade de entendimento e os valores do jogo. Tudo se deve a eles.
E depois dos irmãos Pereira?
Sou dispensado aos 16 pelo Colin Thompson, o novo director da formação, de nacionalidade inglesa, como o treinador dos seniores, Keith Burkinshaw.
Uischhhh.
Dei um passo para trás. E, logo a seguir, dois para a frente. Cheguei ao Estrela. Comigo, também veio o Capucho, um lateral-esquerdo do Sporting.
E que tal?
Jogar na periferia é outra coisa, sobretudo na Amadora, onde a comunidade negra e africana é muito forte e há um sentimento de revolta bem presente. Senti-me sempre bem. O clube também era digno. O bingo dava estabilidade e a Reboleira tornou-se um dos campos mais difíceis na 1.ª divisão. Nesse dia do jogo com o Neuchâtel, joguei a meio-campo.
A tua camisola era o número 9?
Ahahahahah, mas não joguei a 9. Deve ter feito dupla com o Paulo Bento no meio-campo.
Convém dizer que o Estrela está na Taça das Taças por ter ganho a Taça de Portugal.
Vi o jogo. Aliás, os dois jogos: a final e a finalíssima.
A sério?
Claaaaaaaro. Que festa, que momento inesquecível. Estrela e Farense, duas equipas que nunca tinham chegado a uma final. É para recordar. Ainda por cima em dose dupla.
Comecemos o nosso jogo. Vital, número 1.
Um dos líderes do balneário, pela experiência de 1.ª divisão e pelo passado no Sporting.
Rui Neves, 2.
Grande lateral. À imagem, aliás, do irmão Jorge. Sabes uma coisa?
Nem ideia.
Eu, Rui Neves, Dimas, Ricardo, Paulo Bento e Baroti almoçávamos quase todos os dias. Havia um sentimento de partilha dentro e fora do campo.
Duílio, 3.
Grande capitão, cheio de boa energia e a transbordar de experiência. Com escola feita no Brasil, chegou cá para jogar no Sporting e depois ainda foi para o Estrela, onde levantou a Taça de Portugal. Inesquecível trajectória.
Valério, 4.
Ex-Boavista, outro elemento muito experiente e agressivo no ataque à bola. Fazia uma boa dupla com o Duílio.
Dimas, 5.
Meu irmão de sangue em quase tudo.
Então?
Desportivamente, chegámos à Amadora na mesma época e fomos para o Benfica na mesma altura. Pessoalmente, partilhávamos a mesma casa durante a passagem no Estrela. Quando nos decidimos pela compra de um apartamento, ele ficou no 1.º andar e eu optei pelo rés-do-chão do mesmo prédio. Ahahahah. Há mais.
Mais ainda?
Comprámos o mesmo carro. Ele, um Suzuki preto. Eu, um Suzuki branco. Estamos ligados há muitos muitos anos, já há toda uma história familiar bem larga. Curiosamente, a formação do Dimas é como avançado. Ele só é ajustado a lateral-esquerdo na Académica.
Miranda, 6.
Um médio ofensivo que costumava jogar atrás do avançado, tecnicamente muito evoluído e, lá está, muito experiente pelos anos de Varzim na 1.ª divisão. Ainda fez uma época no Benfica antes do Chaves. E, depois, Estrela. A jogada do golo dessa noite começa no Miranda, eu continuo e quem finaliza é o Ricky [true story]
Abel Campos, 7.
Outro ex-Benfica, um ala extremamente técnico e muito rápido, além de fortíssimo nos duelos individuais
Baroti, 8.
Um dos maiores talentos cabo-verdianos. Jogava na ala esquerda, muito rápido, com um grau elevado do ponto de vista técnico. Fez grandes jogos connosco.
Abel Xavier, 9.
Fui campeão nos infantis e iniciados pelo Sporting, fui vice nos juvenis e eis-me aqui no Estrela a jogar com o número 9. A vida dá voltas e mais voltas, ahahahah.
Ainda hoje não me sai da cabeça a defesa do Barthez no Euro-2000. Se fosse golo…
Era o 2-1 e estávamos na final.
Deve ter sido a defesa da vida do Barthez,
Se não foi, devia ter sido. Ahahahahah.
É o último lance do jogo. Depois, prolongamento. E o penálti.
Fomos apanhados descompensados nesse lance e vejo-me numa situação estranha, porque estava a fazer a cobertura do lateral-esquerdo. Faz parte do jogo de equipa, é assim mesmo. Se a bola passasse por mim, era golo da França.
Tremendo.
Essa geração merecia e devia ter sido campeã europeia em 2000.
Outro elemento dessa meia-final do Euro: Paulo Bento, número 10 na Reboleira.
Acompanhei o Paulo por Estrela, Benfica e Oviedo, guardo um grande carinho por ele. Vinha do Futebol Benfica, o Fofó, e facilmente o João Alves percebeu que havia ali talento. O Paulo, como pensador geométrico do jogo, era top. À imagem do Paulo Sousa. São jogadores que interpretam o jogo antes mesmo da bola lhes chegar aos pés.
Marito, 11.
Ex-FC Porto, baixo e rápido. Jogava em toda a linha da frente e era ideal para complementar com alguem mais físico, como o Ricky, que entrou na segunda parte.
Treinador, Manuel Fernandes.
O Estrela reuniu bons treinadores nos anos 80 e 90. Falo de Manuel Fernandes, João Alves e Jesualdo Ferreira. Excelentes treinadores, de peso. Daí o ciclo bem sucedido do Estrela.
Neste caso, o adjunto também teria o seu peso.
José Mourinho, claro. Já dava indicações e era um apaixonado pelo jogo. Falava-nos muito do ponto de vista individual e tinha a capacidade de compreender o jogo ao segundo.
O que era o Neuchâtel para vocês? Quero dizer, ainda não havia telemóveis nem internet.
Nessa altura era mais o jogo pelo jogo. Poderíamos ver alguns jogos do adversário, fosse qual fosse, mas as indicações eram pontuais. Queríamos e devíamos era jogar o nosso jogo e, claro, tentar passar a eliminatória, embora não fossemos favoritas.
E o Estrela passou.
Festa imensa. Nos penáltis, 4-3 se não me engano.
Exactamente. Marcaste algum?
Fui substituído a meio da segunda parte, mas era demasiado novo. Por muito que quisesse bater um penálti na decisão, haveria alguém que me dizia ‘miúdo isto não é para ti’.
Houve algum prémio de jogo especial pelo apuramento?
Não me lembro. Havia, isso sim, prémios de estímulo: os mais experientes, como Duílio e Valério, queriam viver novamente as competições europeias e os mais jovens queriam finalmente chegar a esse patamar.