Belenenses, o dia mais feliz
Campeão, o Belenenses é campeão nacional. A frase ecoa por todos os cantos do país e ultrapassa até fronteiras. A prová-lo de forma inequívoca, o convite do Real Madrid para a festa de inauguração do seu estádio, então Chamartín, depois Santiago Bernabéu, em Dezembro 1947. Antes, ligeiramente antes, o Belenenses comete a proeza de furar o bloqueio dos três grandes num ano irrepetível. Ao título de campeão nacional, junta-se-lhe o de regional de Lisboa. Nesse percurso, com um total de 32 jogos, tão-só três derrotas e o estatuto de defesa menos batida em ambos os campeonatos. É obra. É o Belenenses 1945-46. Campeão nacional, insistimos. Faz hoje anos, dia 26 Maio.
Terceiro classificado do campeonato nacional da época anterior, em igualdade pontual com o segundo (Sporting), o Belenenses mexe na equipa técnica durante o Verão de 1945. O austro-húngaro Sándro Peics, aportuguesado Alexandre Peics, sai das Salésias após duas boas épocas. Quem entra para o seu lugar é Augusto Silva, figura incontestável do mundo belenense: dez anos de casa e jogador mais internacional de sempre, com um total de 21 jogos na selecção, três deles em plenos Jogos Olímpicos Amesterdão-1928. A seu cargo, uma equipa de eleição com experiência e sentido de união. Do onze base, seis (Feliciano, Serafim, Amaro, Gomes, Quaresma e José Pedro) levantam a Taça de Portugal-1942, naquele 2-0 ao Vitória SC, no Lumiar. A estes seis, Augusto Silva junta-lhes Capela, Vasco, Armando, Andrade e Rafael, sem esquecer alguns suplentes de luxo como Mário Coelho e os irmãos Sério. Fora de brincadeiras, este Belenenses vai dar brado.
E tudo começa no tal Regional de Lisboa, em que o Belenenses ganha o título a duas jornadas do fim. Veja-se o luxo, a capacidade de jogar em antecipação. O percurso inicia-se em casa, nas Salésias, com um claro 4-0 ao Estoril. Nas duas jornadas seguintes, dois empates: Sporting 2-2, CUF 1-1. Depois, uma série de cinco vitórias seguidas, uma delas ao Benfica (2-0 de Elói e Teixeira da Silva) e outra ao Sporting (4-2, por Mário Coelho-2, Armando e Elói). Na antepenúltima ronda, o redondo 6-0 à CUF (todos os seis golos na segunda parte) garante-lhe matematicamente o título. Para cumprir calendário, o Belenenses perde 1-0 com o Benfica e fecha em beleza, com 3-1 ao Atlético, nas Salésias. O objectivo passa agora a ser outro, mais global que nunca. O objectivo é a 1ª divisão, então alargada para 12 equipas com a inédita participação dos campeões regionais de Portalegre e Aveiro.
Passam-se cinco meses e dá-se o golpe de asa. Campeão. O Belenenses é campeão. Nunca é demais repetir. Aliás, Belenenses em Portugal e Sevilha em Espanha. O primeiro ano do pós-guerra revela dois campeões inéditos na Península Ibérica – curiosamente, nenhum dos dois voltam a repetir a façanha. A ponta final do campeonato nacional 1944-45 já mostrara um Belenenses saudável, de que são exemplo as duas goleadas históricas em jornadas consecutivas: 15-2 à Académica, 14-1 ao Salgueiros. Segue-se a conquista do tal regional de Lisboa, sem conceder qualquer margem de manobra aos rivais Benfica e Sporting, além de conciliar o melhor ataque (29 golos) e a defesa menos batida (9).
O pontapé de saída do campeonato até nem é vitorioso (1-1 com o Sporting, no Campo Grande) e a primeira volta tem algumas armadilhas, a avaliar pelo empate com o Atlético nas Salésias (2-2) mais as derrotas fora com Benfica e Olhanense. O que acontece a partir de Olhão é um hino à regularidade. A partir daí, 12 vitórias seguidas. Sim, doze para chegar ao ambicionado título de campeão. À nona, o Belenenses resgata a liderança ao Benfica com um golo de Andrade, a figura mais maiúscula da campanha pela idade (18 anos) aliada à capacidade goleadora (19 golos em 14 jogos). De júnior a herói, é um salto tremendo em menos de 90 minutos. Na estreia, o avançado-centro é lançado às feras e marca três ao FC Porto de Barrigana – acumularia ainda mais dois hat-tricks. Um fenómeno sem igual.
Com o primeiro lugar assegurado a três jornadas do fim, o Belenenses ganha 1-0 ao FC Porto no Lima, goleia a Olhanense nas Salésias (6-0) e acaba em beleza, no Alentejo. Nem Hitchcock se lembraria de um final assim. O Belenenses pernoita em Estremoz e chega a Elvas na manhã do dia seguinte. Estamos a 26 Maio. Só a vitória interessa. No outro lado está o Sport Lisboa e Elvas, filial do Benfica. O avançado Patalino, o mais mediático alentejano de sempre do futebol português, marca na primeira bola de jogo. O Belenenses desorienta-se e só encontra o rumo da baliza, da vitória e do título já muito perto do fim, com golos de Andrade e Rafael num abrir e piscar de olhos. Eis os famoso 15 minutos à Belenenses.
O entusiasmo é imenso. Os adeptos belenenses que acompanham a equipa, seja de comboio (dois comboios fretados exclusivamente para o efeito), seja em viatura própria, fazem a festa logo ali, em Elvas, que nunca assistira a tamanho desvario. No dia seguinte, os campeões almoçam em Évora, a convite do presidente da câmara local, e, depois de uma viagem até ao Barreiro, chegam de barco, ao Cais do Sodré. Daí para a sede do clube, em Belém, é a confusão, com o autocarro do clube a parar frequentemente para receber o carinho das gentes. Festeja-se também o título de campeão do primeiro treinador português: Augusto Silva rompe com a tradição dos húngaros Szabo (tri), Herczka (tri), Biri (tri) e Siska (bi).
É campeão, o Belenenses é campeão.
Os heróis, um a um
Manuel CAPELA (19 jogos, 20 golos sofridos)
A saída de Salvador Jorge, guarda-redes do Belenenses vencedor da Taça de Portugal em 1942, abre-lhe o caminho para a baliza. O que se segue é uma história de amor curto e intenso. Seis épocas apenas transformam Capela num guarda-redes de eleição, graças aos reflexos e elasticidade. Num Portugal-Espanha (4-1) em 1947, os jornalistas espanhóis elogiam-no sem parar. “Este es Capela? Es un fenomeno. Más alto y más maravilloso que la Giralda”, numa alusão à Catedral de Sevilha com 104 metros de altura. Com os centrais Vasco e Feliciano formam as Torres de Belém, figura de estilo para o sector mais disciplinado do futebol belenense e português. Quando se lesiona a meio do campeonato, é substituído por Sério. Na tarde do regresso aos relvados, em Coimbra, é alvo de uma onda de ruidosos e insistentes aplausos por parte dos adeptos coimbrões. Vai daí, chega à Académica em 1948, a pretexto de continuar os estudos de Letras. Como o Beleneses suspeita de uma ponte para o FC Porto, a Direcção Geral do Desporto só autoriza a transferência com uma nuance: se sair, terá obrigatoriamente de voltar às Salésias. Tal não sucede. Capela é da Académica até ao final da carreira, em 1956.
VASCO Oliveira (22 jogos, 0 golos)
Campeão regional nas reservas, em 1944, o central sobe à primeira equipa na época seguinte e impõe-se com categoria, na sucessão a Simões. Entende-se às mil maravilhas com Feliciano e é um dos três totalistas. Tanto Andrade como Quaresma, elegem-no o homem do jogo na decisão do título, em Elvas. “O Vasco mostrou grande vontade de vencer e ganhou praticamente o jogo. Fez duas corrida diabólicas pelo lado direito de que resultaram os golos da reviravolta.” Como “no melhor pano, cai a nódoa”, Vasco não era uma figura consensual. O próprio confirma-o. “O público foi, em muitas ocasiões, injusto para comigo. Em quase todos os jogos, era assobiado e, na maioria das vezes, sem razão. Isto custava-me muito e, creia, era para mim motivo de grande tristeza. Sempre tive a fama de jogador violento, de temperamento exaltado e de outras coisas mais, mas, pode acreditar, nunca joguei com o intento de magoar os adversários. É certo que o entusiasmo com que sempre joguei poderia dar essa impressão, mas que eu tivesse o intento propositado de magoar, de ser violento, não é verdade.” Conhecido como o Barrote, é duas vezes internacional, vs. Inglaterra em 1947 e Espanha em 1948.
António FELICIANO (22 jogos, 2 golos)
Natural da Covilhã e órfão de pai, Feliciano cresce na Casa Pia, onde se forma como homem e jogador. Assina pelo Belenenses aos 18 anos de idade, em 1940. O acordo é fechado no Chiado, à mesa da Brasileira. Para Feliciano, um salário de 300 escudos e um emprego no Grémio dos Armazenistas de Mercearia. Especialista em livres directos (é assim que marca os dois golos neste campeonato), a conquista do título é divina. Ele explica, ao jornal A Bola: “O 2-1 em Elvas é uma recompensa de Deus por uma partida do destino: não muito tempo antes, falhei o jogo com a Espanha por ter engordado dois quilos durante o estágio. A mágoa andou comigo durante semanas e semanas. Aquela tarde mágica de Elvas tudo apagou.” Já como campeão, o central é abordado pelo Celta Vigo. A oferta é tentadora, à volta das três mil pesetas. Acácio Rosa, presidente do Belenenses, apela ao coração. “Põe-te no meu lugar, António. Estás a pedir-me para deixar ir um ídolo dos nossos adeptos!” Sensibilizado, Feliciano continua no Belenenses até ao fim da carreira, em 1954.
Francisco GOMES (20 jogos, 0 golos)
O plantel do Belenenses é uma Torre de Babel, versão portuguesa. Há jogadores de todo o país. De Covilhã (Feliciano) até Olhão, com uma feliz passagem pelas ilhas (Funchal, de onde é natural o goleador Andrade). E quem é o olhanense de gema? Francisco Gomes, de seu nome. Um médio que mais se parece com um armário tal a largura dos ombros. Fisicamente dotado, joga e faz jogar com uma ilimitada vontade de ganhar. Aos 16 anos, já é titular do clube da terra mas só se estreia na 1ª divisão pelo Belenenses, em 1938-39, e marca dois golos ao Casa Pia (7-1), no seu primeiro jogo nas Salésias. Até 1947, é um dos baluartes do Belenenses. É, aliás, o terceiro mais veterano na campanha do título de campeão, atrás de Amaro e Rafael, com 30 anos. Na gloriosa época, só falha dois jogos, curiosamente um deles é em Olhão, o da última derrota do Belenenses (2-0). Não marca qualquer golo, embora alguns jornais o dêem como autor do 2-1 ao FC Porto. O relatório do árbitro, e o próprio jogador, atribuem-no a Andrade.
Mariano AMARO (22 jogos, 0 golos)
Rapaz castiço de Alfama, o médio-direito estreia-se no Beleneses em 1935 e ganha imediatamente a alcunha de Einstein da bola, através do jornalista Vítor Silva. “Amaro transmitiu-nos sempre a sensação de que nascera com aquilo dentro de si: um sentido de futebol fácil, fluído, natural, não só quanto a execução, mas, principalmente, quanto a uma extraordinária percepção dimensional do jogo, dentro das quatro linhas do rectângulo. Quase nos apetecia dizer, se não fôssemos ferir certos ouvidos mais sensíveis, que Mariano Amaro foi um pequeno Einstein da bola que, sem o menor esforço ou consumidora determinação, descobriu a quarta dimensão do jogo, dando-lhe uma amplitude que talvez nenhum outro jogador português soube primeiro imaginar e, depois, explorar como seria aconselhável.” Na campanha do título, é o capitão de equipa em todos os 22 jogos. Quando abandona o futebol, aos 34 anos, em 1948, a notícia é divulgada amplamente. Com filosofia à mistura. “No momento em que o ídolo se encaminhava para a cabina, para não mais voltar, os olhos do público fixam-se no jogador como a querer gravar aquele momento e a fixar toda a carreira numa só imagem.”
SERAFIM das Neves (22 jogos, 0 golos)
Figura incontornável do mundo belenense, é daqueles jogadores à antiga, de um clube só. Nascido em 1920, na capital, entra nas Salésias com tenra idade e só de lá sai em 1955, precisamente no ano em que o Belenenses perde o título de campeão nacional a três minutos do fim (Sporting 2-2), a favor do Benfica. Quer isso dizer que vence a Taça de Portugal em 1942 e sagra-se campeão nacional em 1946. Se isso acrescentarmos, o facto de ter jogado com figuras irrepetíveis da fibra de Matateu, Vicente e Di Pace, é obra. Calma, há mais, muito mais. Em representação da selecção portuguesa, acumula 18 jogos, de 1945 a 1953, e é capitão de equipa num 3-0 à França, em 1952. Por falar nisso, o homem é capitão do Belenenses com a saída de Amaro. Ou seja, a partir de 1948. Ao todo, falamos de sete épocas a exercer a função mais honrosa de um titular. Quando se despede do mundo da bola, em Setembro 1955, Matateu marca três golos ao Torreense (6-4) e leva-o em ombros, em jeito de homenagem. A mais justa possível, diga-se.
ARMANDO Correia (21 jogos, 14 golos)
Setubalense de nascimento, o extremo-direito é um aluno atento e aplicado. Vai daí, arrepia caminho para Coimbra, onde se faz jogador da bola na Académica, com propriedade. Em três anos, deixa a sua marca com indiscutível grandiosidade. Basta ver este dado significativo: 30 golos (seis deles no 10-1 ao Barreirense) em 22 jornadas na época 1941-42. Só não é o melhor marcador do campeonato por culpa do portista Correia Dias (36). A transferência para o Belenenses faz-se três épocas depois, já finalizado o curso, e em boa hora o faz. Com um exímio tempo de passe e um sensacional faro pela baliza, Armando colecciona cinco bis. Isso mesmo, cinco (Académica, Vitória SC, Atlético, Elvas e Olhanense). Um fenómeno. Ou melhor, meteorito. Porque tanto chega como parte. E sem deixar rasto. Em 1948, aos 25 anos de idade, arruma as chuteiras e dedica-se a outros afazeres, mais importantes para a sociedade no dia a dia. Seja como for, o seu registo é impressionante e é o grande artista do Belenenses até à entrada de Andrade no onze.
Artur QUARESMA (22 jogos, 14 golos)
Mestre da boa disposição e exímio contador de histórias, é o autor da famosa frase “um bom jogador tem um andar normal, equilibrado e fluído, sem ser à toureiro [pés para dentro] nem à padeiro [pés virados para fora, às dez para as duas].” A jogar à bola, é um tratado sem igual. À imagem, aliás, do seu sobrinho neto, Ricardo “trivelas” Quaresma. É seu o primeiro golo no campeonato, vs Sporting, no Lumiar. E também é seu o golo solitário no Lima, vs FC Porto, na ressaca da vitória sobre o Benfica que permite ao Belenenses a subida ao primeiro lugar, a três jornadas do fim. Já agora, é igualmente de Quaresma o primeiro golo na final da Taça dee Portugal, com o Vitória SC (2-0). Natural do Barreiro, em tempos a melhor escola do futebol português, vai de barco para os treinos nas Salésias, na companhia do guarda-redes sportinguista Azevedo, a quem marca dois golos na sua despedida, em Outubro 1948. Para o avançado Andrade, é o mais simpático de todos. “A partir do momento em que me viu a entrar na equipa, nunca mais me largou e estava sempre a dar indicações: este joga assim, aquele joga assado. Um senhor como nunca vi.”
Manuel ANDRADE (14 jogos, 19 golos)
Menino dos seus 18 anos, o avançado madeirense anda pelos juniores quando é surpreendido pela convocatória do treinador Augusto Silva para o jogo com o FC Porto, relativo à 9.ª jornada. Ao período de adaptação à marcação de Gulhar, com muitos beliscões pelo meio, seguem-se três golos ao lendário Barrigana (3-2). Assinaria mais dois hat-tricks, ao Boavista e Oliveirense, num registo improvável para quem nunca jogara na 1ª divisão. Na segunda volta, a sua regularidade impressiona qualquer um: marca em todos os jogos à excepção de um, no Lima, com o FC Porto (1-0 de Quaresma). Acaba como melhor marcador do clube, graças aos tais 19 golos, um deles ao Benfica (1-0), a permitir a subida definitiva ao primeiro lugar, e o último deles em Elvas (o momentâneo 1-1). Jogaria mais uma época no Belenenses antes da saída para o Sporting dos Cinco Violinos, a convite de Peyroteo. Precisamente tapado pelo fura-redes leonino, só faz um jogo, e de carácter particular. Arrepia então caminho para o Estoril, onde joga até 1952.
JOSÉ PEDRO (13 jogos, 6 golos)
Suplente de Dezembro até Fevereiro, o extremo-esquerdo entra para o lugar do lesionado Rafael no jogo em Olhão, onde o Belenenses perde 2-0, na 10.ª jornada. A estreia não é famosa, convenhamos. Augusto Silva contraria essa tese e mantém-no no onze até ao final do campeonato. Ao todo, 13 jogos – é o jogador com menos minutos de campo no onze ideal. Em contraponto, a eficácia de um campeão como pouco. Seis golos é muito, três dos quais funciona como abre-latas, o 1-0 (Vitória SC, Atlético e Olhanense). Para os companheiros de equipa, a ideia é unânime: “é um artista de grande visão, driblador extraordinário que tratava a bola por tu e para quem o futebol não tinha segredos”. O presidente Acácio Rosa vai mais além. “É um jogador inconfundível. O mais argentino de todos, uma cópia de Scopelli.” Jogador do Cascais até 1941, assina pelo Belenenses e entra na primeira equipa aos 22 anos. È campeão em 1946 e retira-se dos relvados em 1947. Assiste à mudança das Salésias para o Restelo e só sai do clube em 1972, como vice-presidente.
RAFAEL Correia (19 jogos, 12 golos)
O único do plantel com ligações estreias ao primeiro campeonato nacional de sempre, em 1934-35, com um golo (ao Benfica) em dois jogos. Jogador de uma camisola só, faz 16 épocas seguidas no Belenenses e junta o título de campeão nacional 1945-46 à Taça de Portugal 1941-42. Pau para toda a obra, joga em qualquer das cinco posições no ataque. Tanto lhe faz, o seu foco da baliza não se desvia um milímetro. Daí que coleccione um hat-trick no 10-0 à Oliveirense, um bis no 6-1 ao Boavista e, cereja no topo do bolo, o 2-1 em Elvas. É seu, o golo do título. No meio dos festejos, as lágrimas do veterano de 31 anos, natural da Trafaria, caem-lhe do rosto como nunca julgara possível. Um ano depois, abandona o futebol. A festa de despedida só acontece em Maio 1948, com estas palavras: “Eu no Belenenses joguei sempre por gosto. Noutro clube, estou certo que me aborrecia de um futebol jogado por obrigação – e então teria de abandonar a actividade porque não era do meu feitio saltitar de clube para clube.”
Os heróis suplentes
Elói (10 jogos, 1 golo) Mário Coelho (9/4) José Sério (3/4) Francisco Martins (2/0) Mário Sério (2/0) Martinho (1/1)
O treinador
AUGUSTO SILVA
“Todos gostavam dele, porque é boa gente, entendia os jogadores e não mostrava os dentes a ninguém”. A citação é de Manuel Andrade, o goleador de serviço do Belenenses. E é uma opinião unânime. Ninguém diz ou pensa mal do primeiro treinador português a sagrar-se campeão nacional, depois de onze títulos seguidos sob o comando de húngaros. Aos 44 anos de idade, Augusto Silva é uma figura afável, atenta a todos os pormenores. Os não utilizados sentem-se titulares, por exemplo. Os titulares acham-se os maiores. Se a campanha 45-46 é o suficiente para atestar a sua capacidade como treinador, o que dizer da sua pessoa como jogador? Um oceano de pormenores e curiosidades infindáveis. Desde 1925 até 1934, acumula 21 internacionalizações (oito vezes capitão), um recorde que só é batido em 1950. Pelo meio, recebe a alcunha de Leão de Amesterdão pela aventura olímpica nos JO-1928. Augusto Silva, claro, é titular e até marca o golo decisivo à Jugoslávia, aos 90 minutos, nos oitavos-de-final. No Belenenses, vence três vezes o Campeonato de Portugal, antecessor da Taça de Portugal. Quando nos deixa, em Janeiro de 1962, o jornalista Vítor Santos d’A Bola escreve esta pérola.
“Augusto Silva, o velho e glorioso ‘leão de Amsterdão, era um símbolo do Belenenses, um dos homens que contribuiu com forte quinhão para que o clube atingisse a posição que hoje ocupa no desporto português.
Jogador de excepcionais qualidades, tanto técnicas como de desportista, ele sabia, ainda, ser um lutador, sempre se entregando à luta com ardor e entusiasmo que definem e caracterizam os atletas de eleição, que sabem defender até ao extremo das suas forças a camisola que cingem no trono forte.
Quantas vitórias lhe devem o Belenenses e a Selecção Nacional! Quantas vezes ele galvanizou a equipa e, num ápice, a golpes de energia, transformava a derrota em vitória!
A minha geração é outra e o Augusto Silva, o ‘leão de Amsterdão’, apareceu a meus olhos não como um jogador – e, muito menos, como um jogador que tivesse de, profissionalmente, criticar – mas como um símbolo.
E um símbolo, não só do Belenenses – desse portuguesíssimo clube da Cruz de Cristo! – mas do futebol lusitano. (…) vi-o simbolizar o Belenenses, na sua camisola azul sangrada com a Cruz de Cristo. E vi-o simbolizar Portugal, nas qualidade rácicas que, ainda hoje, estão a dar ao futebol lusitano a indicação para o caminho de um estilo próprio e diferenciado.
O último quarto de hora, que foi orgulho inconfundível dessa gente de Belém, apareceu sempre a meus olhos com o Augusto Silva a parar os ponteiros do relógio, transformando a derrota em empate ou vitória, com os seus alardes de valor, de técnica, de temperamento, de ralé, de ‘raça’ belenenses, que o tempo não apagou mas – porque não dizê-lo? – ensombrou um pouco, quando o futebol deu o salto de um diletantismo regional ou bairrista para um profissionalismo que, mal compreendido, fez enferrujar as mais gloriosas tradições”.
E já agora, a propósito do famoso (noutros tempos) “quarto de hora à Belenenses”, de que Augusto Silva foi o expoente maior, a sua alma iniciadora, inserimos aqui um pequeno mas significativo texto que, sob a epígrafe AMOR À CAMISOLA, Acácio Rosa fez sair num dos seus livros:
“Todos os belenenses da ‘velha guarda’ sabem o que foi o ‘quarto de hora’. A equipa podia estar a perder por três ou quatro tentos que o adversário, por muito que fosse, não se considerava seguro enquanto não soava o apito final. E quantas derrotas tidas quase como certas se transformaram em magníficas vitórias, no curto espaço de minutos! Uma das vitórias, lembram-nos bem, foi [contra] o Benfica; jogava-se para o torneio lisboeta, nas Amoreiras, e, ao quarto de hora [isto é, a um quarto de hora do fim], os rapazes de Belém perdiam por 4-1, afigurando-se que o assunto estava arrumado. Mas a reviravolta operou-se num ápice e no final havia 5-4 a favor do Belenenses.
O entusiasmo de toda a gente de Belém que presenciava o jogo, bem como o assombro e o espanto dos benfiquistas não se descrevem.
Daí por diante, o ‘quarto de hora belenenses’ passou a ser temido e é pena – sem desprimor para os jogadores actuais – que já não o seja”.