César. “Zico, Sócrates, Leandro, todo o mundo da selecção ficou na teta do César em 1982”
É um ano palpitante, o de 1980. Nas Antas, queremos dizer. Lançadas as sementes do bi, é altura de colher o inédito tri. O início é o mais prometedor possível, com 19 pontos em 22 possíveis (só três empates) e um feito europeu na primeira eliminatória da Taça dos Campeões, frente ao Milan (0:0 nas Antas, 1:0 no Giuseppe Meazza, golo de Duda). O regresso de António Oliveira do Bétis, para onde se transferira cinco meses antes pela verba recorde de 36 mil contos, aumenta significativamente as esperanças. No início de Maio, o céu é o limite. E é azul. O Porto lidera a 1.ª divisão, com um ponto de avanço antes de receber o Sporting, e carimba o acesso à final da Taça de Portugal (3:0 ao Marítimo). A dobradinha está ali ao virar da esquina.
Só que não. O Sporting empata 1:1 nas Antas e embala para o título de campeão, culpa de um Porto apático (só três pontos amealhados nos últimos seis). No Jamor, palco habitual de fim de época, o Benfica ganha 1:0. A festa da Taça é uma impossibilidade pela constante fricção entre os dois clubes, tanto dentro como fora do relvado. O resultado é confrangedor e o Benfica nem sequer levanta a taça na tribuna VIP, porque um ilustre desconhecido (Telmo Barreiros, funcionário da FPF) mete o troféu dentro de um saco de bolas e leva-o de volta para as vitrinas da federação na Praça da Alegria. Pergunta de algibeira: quem marca o golo solitário dessa tarde? César. Esse mesmo, o primeiro reforço estrangeiro do Benfica contratado fora de Portugal – o primeiro estrangeiro de sempre é o também brasileiro Jorge Gomes, pescado no Bessa.
Para chegar a César, a viagem é simples. Luís Batoque é amigo da gente aqui do site e do César. Faz a ponte, através do filho do César. Dois dias depois, eis o contacto telefónico.
Bom dia, tudo bem?
Está lá? [César imita sotaque e maneirismo português]
É o César?
Sou eu mesmo, como vai?
Tudo bem, e por aí?
Tudo bem, você é o Rui?
Sou eu mesmo.
Vai ser um prazer falar consigo.
Faz 40 anos do seu golo ao Porto.
Bem sei, bem sei. São coisas que nunca se esquecem, 1:0 ao Porto. Grande tarde.
Como é que foi o seu golo?
Foi ali na meia-lua, como a gente chama no Brasil. O Alves bateu rapidinho uma bola para mim. Estava de costas, fingi que ia chutar, todo o mundo se junto, uns três zagueiros, acho, dei um toque na bola para a direita e ela entrou junto ao poste. O goleiro estava no limite da pequena área e não chegou a tocar na bola.
Foi bonito, o golo?
O golo, e a festa. O Jamor foi abaixo. E foi uma coisa fantástica, porque fui uma contratação de risco por parte do presidente Ferreira Queimado.
Risco, porquê?
Olha, porque foi tudo de repente. O Benfica queria o Cláudio Adão do Flamengo e o Flamengo tinha chegado a um acordo verbal comigo. Aí, o Ferreira Queimado foi ao Brasil e contratou-me. A mim, artilheiro do Brasileirão desse ano de 1979, pelo América do Rio.
E o Cláudio Adão?
Continuou no Flamengo.
E o César?
Vim logo para Portugal. Embarquei no Rio a 19 Dezembro e chegou aí no dia seguinte.
Como é que foi a sua chegada?
Um frio danado. Passei muito frio, passei maus bocados, viu? A minha vida era muito hotel-treino, treino-hotel. Nada mais.
Onde estava hospedado?
Ali na Duque de Ávila, acho. Altis, será? Já não lembro, sei que a minha vida era muito igual e fazia muito frio. Já para não falar da adaptação.
Problemas?
Não diria problema, mas a adaptação é todo um processo. A relva, o treinador, os companheiros, os adversários, o próprio campeonato. Tudo era diferente. Ainda por cima, não tive férias e tinha deixado a minha mulher grávida de seis meses lá no Rio.
Quando é que a voltou a ver?
Só em Março, quando o meu filho nasceu. Pedi dois dias de folga e fui ao Rio. Quando voltei, fui titular com o Belenenses e marquei três golos na Luz.
Hat-trick, boa boa.
O mais famoso hat-trick pelo Benfica é um ao Vitória de Setúbal, também na Luz. É o jogo do título de campeão do ano seguinte, em 1981. Ganhámos 5:1 e o jogo nem chegou ao fim. Os adeptos entraram em campo e fiquei de sunga. Rasgaram-me tudo, só tive tempo de sair a correr para o túnel de acesso ao balneário. Se não reagisse, ficava peladão.
O que é que conhecia do Benfica antes de chegar a Lisboa?
Humberto, Toni, Chalana e Bento. Além do Eusébio, claro. Cheguei a jogar com o 10 que foi dele. Mágico.
E da sua estreia, lembra-se?
Com o Estoril, um particular entre o Natal e o Ano Novo. Ganhámos 2:0 e o jogo nem acabou.
Outra vez?
O nevoeiro era muito e o árbitro apitou para o fim a cinco, seis minutos do fim.
Seis meses depois, é do César o golo da vitória no Jamor?
É isso mesmo. Os sócios estiveram seis meses a pegar no pé do Ferreira Queimado por minha causa. Com esse golo, deram-lhe um voto de confiança. Como se costuma dizer por aqui, o Ferreira Queimado saiu por cima da carne seca. E ainda bem, porque ganhámos tudo no ano seguinte.
Quem era o treinador?
O da Taça? Mário Wilson. Que figura, que senhor. No ano seguinte foi o Baroti, um húngaro que não gostava de brasileiros.
Era assim mesmo à descarada?
Era, sim. O Wilson dava aula em Baroti. Na boa.
O César ainda apanhou o Eriksson?
Claro que sim, em 1982-83. Foi ele quem transformou o clube, deu-nos mais responsabilidades e voltámos a ser campeão nacionais.
Aí o presidente já era outro.
Fernando Martins, dono de um hotel na Baixa, não era?
Isso mesmo. Como era ele?
Mais mão fechada que o Ferreira Queimado, ahahahah.
E o César saiu quando?
A seis meses do fim do meu contrato. Já tinha tudo feito para jogar no Belenenses e ainda havia o Boavista como interessado. Só que recebi uma proposta muito boa do Grémio, um clube determinado em ganhar a Libertadores. Vi o grupo e era muito bom, muito forte. Vi ali uma oportunidade única e voltei ao Brasil.
Que tal?
Fomos campeões sul-americanos nesse ano de 1983.
Contra quem?
Peñarol. Empatámos 1:1 em Montevideo e ganhámos 2:1 em Porto Alegre. O golo decisivo é meu. Fomos jogar a Tóquio Cup [Taça Intercontinental] e ganhámos em cima do Hamburgo. Dois golos do Renato Gaúcho.
Renato, craque?
Craque elevado ao quadrado ou assim. Sempre fantástico. E sempre diferente de todo o mundo. Se o mundo estava mal, ele estava bem. Se o mundo estava bem, ele estava mal. Ainda hoje é assim, ahahahahah.
Última pergunta: nunca chegou a jogar pelo Brasil? Nem quando marcava golos no Benfica?
Estive para ser o terceiro centroavante para a Copa 1982, em Espanha, só que o Telé Santana achou melhor só convocar jogadores do Brasileirão.
Mesmo assim, deve ter apanhado a selecção brasileira em Portugal, não? O Brasil estagiou aqui.
Devo ter apanhado? Amigo, Zico, Sócrates, Leandro e companhia atrapalharam-me a vida durante duas semanas. Todo o mundo ficou na teta do César. Não é brincadeira não.
Ahahahahah.
Isso mesmo. Muito gosto em falar consigo, Rui, Grande abraço.