Óscar Duarte. “Solitária, qual solitária?! Aquilo era o frigorífico no Inverno e a fritadeira no Verão”
Aviso prévio: esta contagem decrescente vai demorar: 2013, 2012, 2011, 2010, 2009, 2008, 2007, 2006, 2005, 2004, 2003, 2002, 2001, 2000, 1999, 1998, 1997, 1996, 1995, 1994, 1993, 1992, 1991, 1990, 1989, 1988, 1987, 1986, 1985, 1984, 1983, 1982, 1981, 1980, 1979, 1978, 1977. Uff, acabámos. Porquê 1977? É o ano da última derrota do FC Porto no António Coimbra da Mota com o Estoril, para o campeonato nacional. Daí para cá, cinco vitórias e quatro empates. É verdade que o Estoril joga ao iô-iô demasiadas vezes entre 1.ª e 2.ª divisão e é verdade que o FC Porto agiganta-se de tal forma que ninguém mais o apanha, mas também é verdade que 36 anos é muito tempo. Demasiado até (para quem joga em casa, claro).
Quem é o herói desse jogo? Óscar Duarte, autor do primeiro golo na vitória por 2-0 na tarde do dia 10 de Setembro de 1977. Só por curiosidade, quanto ficara o Estoril-FCP da época anterior? Ailton dá vantagem para os azuis, José Torres empata e Óscar Duarte fixa o 2-1 para os estorilistas. Uau, herói a dobrar. Temos de falar com este senhor. Pedro Cunha, o do conhecimento epistolar, arranja-nos o número de telefone e aqui vamos nós para uma chamada intercontinental, de Lisboa para a Praia. Em Cabo Verde, atendem-nos com diplomacia primeiro, alegria depois.
Boa noite, é o Óscar?
É o próprio.
Daqui Rui Miguel Tovar, do jornal i, está bom?
Muito bem, obrigado. E o senhor?
Óptimo, obrigado. Ligamos-lhe para…
Desculpe lá mas pode ligar-me daqui a uma hora. Estou a conduzir para a Praia. Sabe, agora sou agricultor e passo a vida entre a cidade e o campo.
Com certeza, até daqui a uma hora
[2013, 2012, 2011, 2010, 2009, 2008, 2007, 2006, 2005, 2004, 2003, 2002, 2001, 2000, 1999, 1998 e por aí fora até 1977; assim se passa uma hora]
Boa noite, é de novo o Rui Miguel Tovar.
Ah sim, sim. Desculpe há pouco mas estava em viagem.
Mas é agricultor agora?
Sempre fui. Andei na Escola Agrícola da Paiã, em Odivelas, e só agora estou a colher os frutos.
Só frutos ou também legumes?
Eheheh, tudo, tudo. Também estou a construir uma casa para trocar a cidade pelo campo.
Muito bem, obrigado pela explicação. Este fim-de-semana é o Estoril-Porto
Ai é? Que engraçado, não sabia, quando é?
Domingo à noite.
Muito bem, muito bem, diga.
Bom, é o Estoril-Porto e o Óscar não só jogou nestas duas equipas como ainda marcou um golo na última vitória do Estoril em 1977.
Ichhhh, pois foi. Lembro-me disso perfeitamente, tenho para aqui uns recortes de jornal e tudo. Esse golo foi engraçado, e bom também. A bola veio para mim, passei o Octávio Machado e fiz um túnel ao Freitas que vinha na minha direcção como um touro, naquele seu estilo possante. Se eu não me desviasse, ia parar à bancada, eheheh. Bom, fiz-lhe um túnel e fiquei ali à frente do Fonseca. Rematei e golo. O Rodolfo estava pior que estragado, eheheh. A dizer-me que só sabia marcar ao Porto e aos outros não.
…
É que eu também tinha marcado ao Porto um ano antes.
Pois, pois
Outro belo golo, por sinal. Mas aí não estava o Rodolfo, se não me engano. Dei de trivela. Na baliza, dessa vez, estava o Torres.
Ora bem, dois golos em duas épocas seguidas.
Já sei o que vai dizer…
Ia brincar, na verdade.
Pois sim, mas essa “brincadeira” foi frequente naquele tempo: por ter marcado duas vezes ao Porto, o Pedroto contratou-me para evitar mais desaforos. Ahahah, essa é boa. Nada disso, jogava bem, de facto.
Tanto assim que até foi internacional português pelo Estoril, certo?
Certíssimo. Em Março de 1978, fui convocado pelo seleccionador Juca e joguei com a França, um particular no Parque dos Príncipes em Paris. Estreámo-nos eu e o Costa, então na Académica. Eu substitui-o a meio da segunda parte. Perdemos 2-0. Mas é isso, fui internacional pelo Estoril. Uma honra enorme. Daí a transferência para o Porto.
E como lhe correu essa experiência?
Não fui lá muito feliz. No Estoril, modéstia à parte, era eu e mais dez. Veja lá, que o treinador-jogador José Torres começou uma época a prometer-me que comprava roupa nas lojas do centro de Cascais por cada golo meu. Bem, às tantas, ele já estava a virar o bico ao prego, num tom muito divertido: ‘quer dizer, eu compro roupa nos ciganos e tenho de ir ao centro de Cascais para comprar-lhe roupa, não pode ser, não pode ser.’ No Porto, era sempre convocado mas não jogava.
Vejo aqui que marcou na estreia.
É verdade, quatro ou cinco a zero ao Belenenses, não foi?
Quatro-zero.
Pois, entrei ao intervalo pelo Duda e marquei o último do dia. Foi um arranque animador mas depois acabei por jogar pouco. O Pedroto dava-me força e dizia-me sempre ‘tem calma, o teu momento vai aparecer’, mas isso realmente nunca aconteceu.
Como era Pedroto?
Via mais com um olho do que todos os outros juntos com dois. Era um homem sagaz e interessante. Uma vez, perguntou-me se tinha filhos. Disse-lhe que sim, dois até. E ele ‘já são baptizados?’ ao que respondi que não. Então ele vira-se e oferece-se para ser padrinho de um deles. Eu digo-lhe que não, ‘o padrinho dos meus filhos tem de ser um amigo meu’. Ele vibra com a resposta. ‘Ò Óscar, se alguma vez precisares de ajuda, fala comigo, telefona-me, bate-me à porta de casa. Estás à vontade, ajudar-te-ei sempre’. Tínhamos muitas conversas sobre política. Quando o PCP planeava algum movimento nas ruas, o Pedroto dizia-me sempre ‘ò Óscar, tem cuidado aí nas ruas hãã?’ e eu respondia-lhe sempre ‘ò sr. Pedroto, lá porque sou de esquerda não quer dizer que seja comunista’ e a partir daí desenvolvíamos a conversa para outros temas políticos.
Sai do Porto para…?
Saio do Porto campeão para o Boavista.
Ali ao lado.
Verdade, já naquele tempo era o Valentim Loureiro. Pagavam-me mais e pensava que ia jogar.
Pensava?
Pois, não joguei tanto como queria. Paciência, não fico triste, não posso ficar. Fui campeão da 3.ª divisão pelo Covilhã, da 2.ª pelo Farense, da 1.ª pelo Porto e ainda fui internacional A.
Espere aí, foi campeão da 2.ª divisão pelo Farense?
É verdade, e apanhei o Jorge Jesus na época seguinte, na 1.ª.
Como era ele?
Um belo jogador, um médio com muita muita muita técnica.
Então e fisicamente?
Talvez fosse ligeiramente preguiçoso, mas compensava isso com a técnica.
Okay. Espere aí, espere aí, foi campeão da 3.ª divisão pelo Covilhã?
Exactamente. Quando cheguei a Lisboa, fui levado aos treinos do Benfica pelo meu bom amigo Carlos Alhinho. Por azar, o treinador Mirolad Pavic não estava lá naquele dia, só o adjunto Fernando Cabrita. Que gostou do que viu. Como tinha ligações lá com o Covilhã, acho que ele era de lá ou perto, disse-me para tentar a minha sorte no Covilhã. Assim foi. Cheguei, treinei e assinei. Estávamos em 1973 e eu precisava de descansar.
Como assim?
Quando regressei a Lisboa, para cuidar dos meus pais, que moravam em Paços de Arcos, o objectivo era continuar a estudar mas os médicos desaconselharam-me. Disseram-me que não estava com cabeça para isso, tinha de descansar.
Mas porquê?
Sabe, fui activista pela independência de Cabo Verde e fiquei preso quase dois anos.
Onde?
São Nicolau do Tarrafal angolano.
E?
…
…
Medo, sofrimento, inimaginável, indescritível, irreal. Nada destas palavras vale muito com o que passámos por lá. Escrevi até um livro. Só tenho um exemplar. Uma vez, fiquei sem o ver durante 21 anos por causa de um amigo que o levou e nunca mais o devolvia. Agora, quem o quiser ler, tem de o fazer aqui em casa. Acredita que já aconteceu isso mesmo, as pessoas passarem um dia e tal aqui em casa?
O que conta o livro?
A história verídica de um homem que conseguiu sair de São Nicolau e foi apanhado a cinco mil quilómetros dali. Sabe o que lhe fizeram? Crucificaram-no como Jesus, sabe? Mas também sabe que o corpo pesa mais quando está sem apoio, não é? Então está a ver, puseram-no lá em cima e o corpo foi-se despedaçando aos poucos: primeiro o ombro…
E o Óscar…
Aquilo era cá um sofrimento danado, num estabelecimento sem leis nem regras. A não ser as leis e as regras do director. Que mudavam muito, consoante a maré. Apanhei tanto que nem imagina. Apanhava marteladas nas mãos, nas nádegas. Um pesadelo permanente. Às tantas, entraram presos de delito comum na prisão dos presos políticos e tudo se agravou. Eu não falava com ninguém Durante quase dois anos, não falei com ninguém. Pois então, se três em cada quatro presos eram informadores.
E a solitária?
Só para ver, lá não era solitária, era o frigorífico no Inverno e a fritadeira no Verão. Aquilo era… Não dá para descrever. Tinha três palmos de largura e cinco de comprimento. Uma vez, passei lá três meses. Com outros presos! Já para não falar das vezes em que abriam-se as portas para tirar de lá um preso que nunca mais o víamos. Ai ai, cada vez que isso acontecia, dizia a mim mesmo ‘Óscar, chegou a tua vez’. E nunca chegou. Com o 25 de Abril, libertaram-nos. Que bom. Sol, chuva, espaço, liberdade.
Que história!
Repare, tenho 40 de pulsação em repouso. Por isso, disseram-me para espairecer quando cheguei a Portugal. Nada de estudos, nada de aulas, faça outra coisa qualquer. Aventurei-me no futebol. E o meu pai não queria nada disso. Cheguei a estar quase, quase a ir para o Belenenses e ele ‘nada disso, nada de futebóis, vais é estudar’. Atenção, isso foi antes de toda esta história que lhe contei.
…
Aliás, tenho uma história muito boa com o meu pai. Ainda em Cabo Verde. Estou a jogar pelo Académica da Praia e as coisas não me saem bem. Às vezes, acontece, não é? Ora bem, nesse dia, aconteceu com o meu pai na bancada. Ele estava lá sem eu saber. Às tantas, os adeptos começam a dizer aquelas coisas de sempre quando falho um passe ou uma outra jogada qualquer e ele levanta-se a dizer ‘este é o meu filho’. Eheheheheh, com o maior orgulho.
Orgulho sempre.
Sim senhor. Obrigado por este tempo. Vai sair quando a entrevista?
Este sábado.
Vou dizer ao meu filho então, abraço e obrigado.
Obrigado nós.