Jorge Andrade. “O Jesus dizia-nos para organizar a equipa em pares de três e filas indianas dois a dois. Um craque”

Mais You Talkin' To Me? 06/19/2020
Tovar FC

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Jorge Andrade. “O Jesus dizia-nos para organizar a equipa em pares de três e filas indianas dois a dois. Um craque”

Há quem o apelide de charmoso mal o veja na televisão. É ele Jorge Manuel Almeida Gomes de Andrade. Fixe o nome próprio mais o último apelido e, tchan tchan tchaaaaan, temos um dos centrais portugueses mais competentes do século XXI. Sim, o Jorge Andrade. Bom rapaz, sereno e humorista. Como jogador, bom rapaz, sereno e de fino recorde técnico. Com ele não há cá charutos nem bolas para o quintal. Tudo, tudo, mas tudo, tem de ser feito com classe e distinção. Cabeça levantada, bola no pé e toma lá disto. Em 12 épocas de carreira, Jorge deixa uma marca indelével nos cinco clubes representados (Estrela, FC Porto, Depor, Juventus e selecção).

Desde os tempos de Fernando Santos até aos de Claudio Ranieri, passando por dois jotas do arco da velha (Jorge Jesus e Javier Irureta) mais Luiz Felipe Scolari, é um rol de histórias sem fim, como a “fila indiana dois a dois” de Jesus ou o voto de silêncio a Deco por dois anos após aquela expulsão no Dragão durante a primeira-mão da meia-final da Liga dos Campeões 2003-04. Sempre no seu registo: de fino recorde técnico e humorista. Sempre tu cá tu lá na arte da escrita. Sim, Jorge Andrade responde ao questionário por email com uma nuance entre sorrisos: “O meu estilo é Saramago, poucas vírgulas.”

Entraste directamente no Estrela?

Vivia na rua atrás do campo do Estrela. Um dia, um amigo meu chamado Vladimir levou-me a mim e a alguns colegas para um treino das escolinhas. Quando entrei jogava do meio para a frente. Com a idade fui passando por posições mais defensivas e com mais responsabilidade, tipo médio defensivo ou central. Nos juniores jogávamos com o sistema de três centrais e eu à frente deles. Na passagem para os seniores tive a mesma dificuldade de integração e então jogava mais como médio defensivo, até me impor a central.

Porque jogaste com o número 10?

Foi estranho jogar com o 10, ainda por cima nos primeiros anos de profissional e a central. Tive a colaboração especial do José Luís, actual secretário técnico do Belenenses, que guardou esse número especialmente para mim depois da saída do sueco Andersson. Foi um presente, claro: ser o 10 não é para qualquer um.

Estreaste-te na 1.a divisão com Fernando Santos (e até marcaste ao Benfica). Como era ele?

Era um treinador muito fechado. A nível de treino, com métodos muito rigorosos, a roçar o militar. Todos os dias passava por ele dizia-lhe “bom dia, mister” e nunca tinha resposta. Depois de todo o ano estar sem resposta, achei que não devia dizer bom dia. Ao passar pelo mister sem lhe dizer nada levei logo com um “não se diz bom dia, miúdo?!” Outra: uma vez tive de faltar a um treino para ir a um exame de Matemática do 12.º ano. Não só me libertou para o exame como se ofereceu para indicar uma professora para dar me explicações. Um grande detalhe! No Porto já o encontrei de cara lavada e sem barba, todo cavalheiro. Foi das pessoas que melhor perceberam muito cedo que a imagem faz toda a diferença.

Só começaste a jogar com regularidade na era Jorge Jesus, em 99-00. Como se deu a aposta dele em ti?

Os seus métodos de treino eram parecidos com os que usávamos nos juniores com o Miguel Quaresma. Como tal, a minha adaptação aos seus métodos foi muito rápida e sempre que possível era usado como cobaia para os testes físicos pela minha grande aptidão. Achava fascinante jogadores como Rebelo, Fonseca e Leal, todos com mais de 35 anos, conseguirem superar todos aqueles treinos físicos violentos. Mas as coisas mais engraçadas eram sempre quando o mister conseguia organizar a equipa em pares de três e filas indianas dois a dois. Um craque! Nas palestras antes do jogo usava pedras magnéticas e sempre que caía uma peça ele dizia “já me estás a querer lixar o jogo mas não consegues”. E sempre que acertava no 11 do adversário ou em factos do jogo dizia: “Muitos pensam que sou bruxo, mas não sou.” Ele tinha de facto uma capacidade forte de antever cenários futuros.

Transferiste-te para o Porto em 2002 e ganhaste Taça mais Supertaça. Nesta última foste o autor do golo decisivo no 1-0 ao Boavista. Como é ser-se herói por um dia?

Sinceramente, das coisas mais bonitas foi ganhar ao Boavista, então o campeão em título. Ser herói num clube como o FC Porto é difícil, mas todo o jogador deveria passar por aquela casa para perceber o carinho daquela estrutura. Há quem não tenha tido a sorte de ser assim tratado, mas posso dizer que fiz e trabalhei para poder usufruir desse estatuto de herói.

Mas, há sempre um mas, não foste campeão nacional em nenhuma das duas épocas. Sentiste essa pressão por parte dos adeptos do clube no dia-a-dia?

Os dois anos do Porto foram fantásticos e vividos de tal forma intensamente que até dá ideia que foram mais. O envolvimento das pessoas da cidade com o clube é uma coisa fora do normal e tive a sorte de ter pessoas como Domingos Pereira, que nos ia buscar a casa para as coisas mais banais do mundo para tudo correr na perfeição. Eu tive a sorte de ser bem acompanhado mas também sei ver que a obsessão por querer com que tudo seja perfeito para os jogadores deixe episódios caricatos, como o de ir a Coimbra ter com Mário Monteiro, actual preparador físico do Benfica, e ser confrontado com isso no dia seguinte. Estranho. Mas isso faz com que os jogadores sejam mais responsáveis e se concentrem no essencial, que é treinar e jogar futebol.

Porquê a ida para o Deportivo?

O primeiro ano no Porto foi maravilhoso. Comecei a jogar em Janeiro e as pessoas foram surpreendidas pela inclusão de um jogador novo no eixo da defesa quando os centrais titulares eram dois monstros do futebol português como Aloísio e Jorge Costa. Existiram logo abordagens, mas como era o meu primeiro ano foi decidido que ficasse mais uma época para cimentar o meu desenvolvimento. Após o Mundial-2002 e a entrada do mister José Mourinho, foi decidida a minha venda. A necessidade de o Porto vender e de eu ser o jogador com mais mercado depois de Deco fez com que saísse para o Depor, vice-campeão espanhol e vencedor da Taça do Rei. Lá encontrei uma realidade totalmente diferente, mas a integração foi fácil: os galegos adoram Portugal e os portugueses. Tinha amizades especiais com Capdevila, Duscher e Molina. O Molina, aliás, estava sempre a comparar-se com o Vítor Baía quando fazia uma grande defesa nos treinos. E ele dizia-me que ia fazer de mim o melhor defesa do mundo e isso confirmou-se em 2004, quando fiz dupla com dois dos grandes: Carvalho e Couto.

He’s my friend, he’s my friend. Continuas amigo do Deco? E do árbitro Markus Merk, que te expulsou nessa noite?

Não existe dia em que não me recordem esse episódio da minha expulsão no Dragão [com Deco no chão, Jorge Andrade finge dar-lhe um pontapé e é punido com vermelho pelo alemão]. Como levava as coisas sempre muito descontraídas, esse lance acabou por prejudicar os meus colegas… e a minha relação com o Deco. Quando nos encontrámos no estágio da selecção, fui como que repreendido pelo Scolari a dizer que a culpa tinha sido inteiramente minha. Fiquei com tanta raiva a esse lance que deixei de falar com Deco e todos os envolvidos. E isso tudo durou dois anos, até o Deco ir jogar para Espanha. Depois ele foi um dos pilares na recuperação da minha lesão antes do Mundial-2006. Lesão essa com o Barcelona de Deco. Ou seja, dois dos dias mais tristes da minha carreira tiveram o Deco como protagonista. Quanto ao Markus Merk, foi o árbitro que apitou os jogos mais decisivos da minha vida e em que nada ganhei: FCP-Depor e Portugal-Grécia na final do Euro-2004. Quando terminou o Europeu, troquei a minha camisola com o árbitro para marcar o ponto mais alto da sua carreira.

Na Juventus encontras pessoas como Ranieri, Del Piero, Buffon, Trezeguet, Camoranesi. É um balneário de campeões em todos os sentidos?

Depois do Depor tive a possibilidade de ir para a Juventus, na esperança de estar totalmente recuperado de qualquer lesão do joelho. A essas estrelas tenho de acrescentar o Bola de Ouro Nedved. A nossa maior estrela era o Del Piero. Enquanto ele treinava os livres directos com um guarda-redes e barreira, os demais colegas, como eu e o Chiellini, corriam. Só que o Chiellini começava a espumar da boca e a dizer que era injusto. Eu então dizia-lhe que ficasse tranquilo, que quando ele parasse de marcar golos também me juntaria aos protestos do Chiellini. Sobre o Ranieri, era um treinador demasiado politicamente correcto e… Bom, no dia em que me lesionei pela segunda vez ele disse-me: “Tranquilo, Jorge, se não conseguires jogar, com o passado que tens, podes ser um treinador de sucesso. Olha o meu exemplo: não fui jogador de sucesso e hoje treino a Juventus.” Caricato. Quanto a Camoranesi, é aquele jogador com gostos alternativos na música e no estilo de vida. Um craque no futebol e na vida, ao ponto de marcar penáltis na final do Mundial-2006 como quem toma o café diário.

O que se passou no Mundial-2002 para aquele desnorte emocional?

O Mundial-2002 foi conquistado por uns e jogado por outros. Esta frase resume muito do que aconteceu, visto que o futebol português pela mão do seleccionador António Oliveira queria fazer tributo a todos os futebolistas da geração de ouro do futebol português, o que fez com que muita coisa corresse mal. Fomos surpreendidos pela forma física dos norte-americanos e subestimámos os sul-coreanos, que jogavam em casa. Correu tudo mal a nível desportivo, o que fez com que toda a gente saísse prejudicada, mas para mim foi bom observar tudo e ver o que não se deve fazer e também para conviver com jogadores de alto nível e tentar imitá-los no sucesso.

Da estreia do Euro-2004 para o segundo jogo com a Rússia, és o único da defesa que se mantém no 11. Scolari aposta em Miguel, Carvalho e Nuno Valente, em vez de Paulo Ferreira, Couto e Rui Jorge, sem esquecer Deco por Rui Costa. Foi uma transição fácil de digerir no balneário ou…? O Euro-2004 foi, é e será o evento cultural e desportivo que mais marcou Portugal. Ter sido protagonista neste sonho foi muito gratificante. Foi como adquirir o estatuto de herói juntamente com os meus colegas. Dava alegria ver como o povo português nos seguiu até à final e nos ajudou a ultrapassar os obstáculos mais difíceis, como o jogo com Espanha ou Inglaterra. Começámos mal mas depois reagimos e não houve tempo para azias nem egos no balneário. O objectivo ficou estabelecido desde cedo: servir o povo português da melhor maneira, fosse com o Joaquim ou o Manel. Fiquei naturalmente contente por ter feito a caminhada toda mas mais feliz ainda porque ganhámos uma equipa de guerreiros para muitas batalhas. Eles ainda andam aí, como Cristiano Ronaldo, Ricardo Carvalho, Tiago. É um orgulho.

in jornal i, 19 Dez 2014

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