Simões. “Deco é um dos maiores erros desportivos de sempre do Benfica”
Sexta-feira, 26 de Julho de 1392. O calendário islâmico tanto está muito atrás como muito à frente. Emtão não é que hoje já é domingo para estas bandas. Isso mesmo, o fim-de-semana iraniano é à quinta e sexta-feiras. Daí que os bancos estejam fechados e as lojas também. É dia sabem de quê?
Preparem-se bem, coloquem o cinto de segurança e avancem até ao aeroporto internacional Imam Khomeini. Pouco antes da portagem para sair de Teerão, vêem-se uma série de homens espalhados pela estrada fora a fazer o sinal de boleia. Será mesmo? Não, não é boleia que pedem. O sinal até é parecido, mas aquele gesto de esfregar os dedos (o polegar com o indicador e o anelar) é de dinheiro. Money talks. Será mesmo? É, o cenário que se estende por uns quantos (bons) quilómetros é como se fosse um gigantesco parque de estacionamento para venda de carros em segunda mão. Quem quer vender o seu carro, encosta à berma e negoceia. Uns estão dentro do carro, outros saem do veículo para falar tu cá-tu lá com o interessado. Tudo ali a céu aberto, engraçado.
No caminho para o hotel, vemos uma mulher com o nariz tapado com gesso. Já não é a primeira, nem a segunda ou a terceira. Há muitas assim. Umas a conduzir, outras a passear a pé. O que é aquilo? Explicam-nos que é moda as mulheres iranianas fazerem operações ao nariz. Os homens recusam-se a embarcar nesta onda, sob pena de serem considerados pouco machos. No hotel propriamente dito, mais uma mulher com o nariz tapado. Ao lado dela, a noiva. Isso mesmo, a agitação no hall do hotel é total com a organização de um casamento. Homens para uma sala, mulheres para o outro, como manda a tradição. E as mulheres todas com o lenço. Isso nem se coloca em questão. Até as turistas são obrigadas a usá-lo, faz parte dos mandamentos do Irão. É neste ambiente que nos cruzamos com António Simões, o adjunto de Carlos Queiroz nesta aventura. E noutras, como a qualificação para o Mundial-2010 com Portugal. Se juntarmos o Mundial-66, este é o terceiro Mundial de Simões, homem de 69 anos, a grande maioria deles vividos no Benfica.
Antes do Benfica, aparece o Sporting?
‘Inda meu deus, vai mesmo ao início da minha carreira. Isso foi uma coisa incrível, estive oito meses no Sporting.
Oito meses?
Com contrato assinado e a ser pago pelo Sporting. Nesse período, o argentino Mário Imbelloni, treinador dos seniores do Sporting, diz aos dirigentes: ‘temos de contratar este menino’.
Porque não jogou logo?
Aí é que está, eu estava preso pela carta de vinculação do Almada FC, o meu clube de então. Para não pagar 50 contos, o preço da desvinculação, que era uma fortuna para aquela época, 1958, 1959, dava para comprar um andar em Lisboa ou um carro de luxo, o Sporting escondeu-me durante um ano. Mal passasse esse ano, acabava o contrato com o Almada e jogaria pelo Sporting de borla, a custo zero como se diz agora. Nesses oitos meses, passam-se duas coisas: eu começo a ficar doido sem jogar futebol e o Benfica descobre. Quando o Benfica entra no processo, arranja o dinheiro…
Os tais 50 contos?
Acho que o Almada fez por 40.
Okay.
O Benfica arranja o dinheiro, faz a transacção com o Almada e sou imediatamente inscrito.
Mas não é tido nem achado?
Falam comigo, com certeza, mas quem assina os papéis é a minha mãe e é o meu irmão mais velho que faz de tutor porque o meu pai já falecera.
…
Há um episódio que não é muito simpático da minha parte: no meio dessa negociação, eu fui ao Sporting pedir o meu Bilhete de Identidade com a desculpa de pagar as propinas da escola. Como era estudante, deram-me o BI. Na verdade, só o queria para fazer acompanhar o contrato entre Benfica, Almada e a Associações de Futebol de Lisboa. E assim se dá a minha entrada no Benfica.
E agora?
Sinto a necessidade de crescer, de amadurecer para jogar com aqueles que se sagraram campeões europeus em Maio de 1961.
Tem referências?
Seguramente o José Águas, depois Coluna, Costa Pereira, Mário João, Germano, Ângelo, Cruz, Cavém. Essa rapaziada toda reúne todas as condições humanas, atléticas e técnicas para ser uma equipa reconhecida lá fora. E depois aparecem dois miúdos: o Eusébio e eu. O treinador Bela Guttmann desabafa para o adjunto Caiado, ‘Fernando, nós temos um rei e um princípe, eles têm de jogar’.
E quem saiu?
No caso do Eusébio, o Santana. Comigo, o Cavém foi tirar o lugar ao Neto no meio-campo. Foram eles os sacrificados no ano seguinte.
Lembra-se da sua estreia pelo Benfica?
A estreia foi nas Caldas, para a Taça, 5-3 no Campo da Mata. A estreia no campeonato foi com o Sporting, 3-3 na Luz.
E como extremo direito, não foi?
Sim, eu tanto jogava na direita como na esquerda, embora preferisse na esquerda. Nesses dias em que fala, o esquerdino era o Angeja. Sabe uma coisa? Sou 70% pé direito e 30% pé esquerdo. Deus Nosso Senhor, deu-me um esquerdo capaz e isso provocou alguma confusão em que me defrontou. Ainda hoje há pessoas que pensam que fui esquerdo e não fui. Mas ainda bem que deu para confundir os adversários.
Quem foram os mais prejudicados?
A história com o Lino, do Sporting, é de um infortúnio. Desde o primeiro ao último dérbi, correu-lhe sempre mal e provocou até algum desalento no Lino, que acabou a carreira mais cedo.
Quem se seguiu?
O Pedro Gomes. Aí, dividimos o sucesso. Também havia o Hilário, com quem o Eusébio falava em landim durante os jogos. Era divertido, porque o Eusébio dizia-lhe ‘hoje o miúdo vai dar-te cabo do juízo’ e o Hilário ficava em silêncio, atarantado. Aliás, nesse 3-3, o Guttmann mete o José Augusto na esquerda e a mim na direita com o Hilário pela frente.
E laterais de outros clubes?
Virgílio, do Porto. No meu primeiro clássico, ganhámos 3-1 e marquei dois golos. No fim, o fotógrafo Nuno Ferrari pede para tirar uma fotografia, o jovem e o veterano. De início, o Virgílio recusa-se complemanente mas depois o Nuno lá o conseguiu convencer.
E laterais de outros países?
Uiiii, aí sou obrigado a falar do Djalma Santos, do Brasil. Repare, a minha estreia no campeonato é um Benfica-Sporting e a minha estreia na selecção é um Brasil-Portugal, em São Paulo. O Djalma Santos era campeão do mundo, como Pelé e Garrincha. Naquele tempo, não tínhamos noção do que era o Brasil, por conta da nossa juventude, irreverência e também alguma irresponsabilidade. Ou seja, nós entrámos em campo a achar que é apenas um jogo e só queremos a bola. De repente, o Brasil começa a jogar e alguém me diz ‘é melhor ires para outro lado, por aqui não passas’. Lembro-me de fazer um drible característico meu e o Djalma Santos chegar à bola primeiro que eu. O Carlos Alberto, campeão mundial em 1970, como capitão da selecção, fez-me a mesma coisa nesse dia. A cultura brasileira a defender era elevadíssima, porque a isso eram obrigados. Se eles se treinam com o Garrincha, imagine-se um Simões…
Ainda assim, o Simões não perde com o Brasil em Mundiais: 3-1 em 1966 como jogador, 0-0 em 2010 como adjunto do Queiroz.
O Mundial-66 é histórico.
Claro que é, o Simões até marca um golo de cabeça ao Brasil…
Ao Manga, o guarda-redes. Mas atenção, para aqueles mais distraídos, eu marcava muitos golos de cabeça sem tirar os pés do chão. Foi assim com o Brasil, e também com Sporting e Porto, com Carvalho e Américo na baliza.
Quais eram os campos mais temíveis?
Olhe, de um nunca me esquecerei, o do Peñarol.
Isso é a finalíssima da Taça Intercontinental-62?
Exactamente. Acabaramos de jogar pelas reservas na Marinha Grande quando o Bela Guttmann nos chama à pressa para viajar de imediato.
Chama-nos?
A mim e ao Eusébio.
Ahhhh.
Nós estávamos sempre juntos, foi assim a vida toda, até no União de Tomar e nos EUA. O maior elogio que recebi foi dele: ‘o Simões é o meu irmão branco.’
Muito bem, pode continuar.
Fomos sozinhos com o homem da agência de viagens, veja bem. Lembro-me tão bem de aterrar em Montevideo com o Eusébio a perguntar-me depois de horas e horas de viagem ‘isto já é Montevideo?’. Com o Peñarol, foi um jogo com uma arbitragem escandalosa, num ambiente terrível, do pior que vi.
E em Portugal, os campos mais complicados?
O da Amorosa em Guimarães era duro. Pelo pelado, pela equipa e pelos adeptos já aí fiéis e empenhados. Ir à Póvoa do Varzim com aquele vento também não era fácil. O Barreiro era outro problema. Está a ver, eram campos pequenos e pelados em que o árbitro estava ali à mão de semear dos adeptos.
Como se comportavam eles?
As bocas eram ligeiras, nada de escandaloso, tipo ‘não jogas nada’.
E dentro do campo, os rivais?
O clime era de intimidação mas havia muito humor. No Barreirense, havia dois jogadores, o Faneca e o Lança, que eram tão duros, tão duros que nos faziam sofrer imenso. Eles intimidavam bastante. Às vezes, o Faneca dava-me uma porrada valente e depois dizia ao Lança ‘apanha esse que já vai ferido’. Na altura, era duro. Depois do jogo, era de partir a rir. São histórias divertidas, com uma dose de humor.
Em relação aos árbitros?
Os árbitros eram como o futebol da época. Não eram árbtiros completamente preparados por falta de condições de trabalho. Não têm a dinâmica de hoje, mas a vocação estava lá, isso é importante referir.
Apanhou algum mau, mesmo mau, ou um bom, mesmo bom?
Eu tenho muito más memórias de um árbitro chamado António Garrido. Não soube tirar partido da sua vocação e deixou-se envolver numa suspeição completamente desnecessária.
Qual?
Cada vez que arbitrava determinados jogos, sentia-se que ele estava inclinado para um lado. Toda a gente sabe a inclinação do sr. António Garrido. Recuso-me sequer a enunciar o clube.
Tem desilusões desportivas?
O Benfica-Celtic para a Taça dos Campeões. Essa noite foi terrível, terrível. Perdemos 3-0 em Glasgow, ganhámos 3-0 na Luz, num estádio completamente cheio. É um grande jogo dessa geração, como o 5-1 ao Feyenoord [1972], e torna-se numa noite frustrante depois de uma noite fulgurante.
Como?
Perdemos na moeda ao ar. O Coluna e o capitão do Celtic no balneário do árbitro e nós sem saber de nada. Há o momento de grande explosão, porque alguém se lembra de dizer que o Benfica ganhar, e depois há o momento da desilusão. Admito: uma das noites mais infelizes da minha vida.
E uma noite feliz?
Benfica-Real Madrid, final da Taça dos Campeões 1962. Ganhámos 5-3, eu só tinha 18 anos, sou ainda hoje o mais novo campeão europeu de sempre. Aliás, não conheço alguém que tenha sido campeão europeu de juniores e de seniores num ano, em 1961 e 1962. Eu sei que aconteceu comigo e é divertido [começa a rir-se].
O Eusébio trocou de camisola com o Di Stéfano e o Simões?
Com ninguém, não havia esse hábito e se trocássemos teríamos de pagar todo um jogo de camisolas.
Como?
Todo um jogo, de 1 a 11. Bastava perder uma para pagarmos todo um set. Um por todos e todos por um.
Alguma vez perdeu a sua camisola?
Nunca.
E alguma vez foi multado pelo Benfica?
Uma vez, por ter chegado a casa depois do horário estipulado, 22h30. E atenção, estava com a minha mulher e cheguei a casa uns minutos depois mas era uma questão de príncipio. Regras são regras: cheguei tarde, pago a multa. A carrinha do Benfica corria as casas dos jogadores todas as noites.
De todos os jogadores?
Não, uns dias uns, uns dias outros. Calhou-me a mim naquele dia.
Isso é ideia de quem?
Bela Guttmann, tudo Guttmann.
Vamos avançar na carreira. O Simões tem a honra de ter treinado o George Best e o Vítor Baptista, certo?
Grandes tempos, em San Jose da Califórnia (EUA). Foi muito divertido ter treinado o Geroeg Best, foi muito complicado ter treinado o Vítor Baptista.
A sério?
Uma das primeiras coisas que o Vítor exigiu à direcção foi um Corvette, um carro que não estava contemplado no contrato que acabara de assinar, mas ele viu o Corvette e desejou-o à força. Começou logo ali um problema, porque o clube não estava muito interessado nisso. A verdade é que o Vítor acabou por ficar com o carro.
E?
Nem houve tempo para haver confusão porque o Vítor rapidamente apanhou o avião para Portugal. Não se conseguiu adaptar e dava sinais de um comportamento estranho que não o ajudou nada. Joguei com ele no Benfica e lembro-me de ter dividido o quarto com ele, a pedido do Fernando Neves, do departamento de futebol. Aceitei, claro, até porque era o capitão de equipa, mas não era nada fácil. O Vítor tinha a tendência para algum desequílibrio no seu reino. Nunca foi má pessoa nem deselegante mas vivia no seu mundo sem se preocupar com os outros. Levei-o para os EUA para tentar ajudá-lo mas não deu.
E o Best?
Gerir o George Best fora do campo era como estarmos com um cidadão completamente introvertido, vivemos experiências de grande ironia e risota. Mas também havia o lado oposto. Uma vez, vamos jogar a Los Angeles. Viajamos no dia do jogo, de manhã. O Best não está no aeroporto. Onde está, onde está? De repente, sabemos que tinha sido internado por razões de alcoolismo.
Mais à frente ainda na sua carreira, como director do Benfica: o que lhe diz o nome Deco?
É o Toni quem começa com todo este processo e eu dou o seguimento. O Deco é a referência de uma acertada política de contratação de jovens. Tanto eu como o Toni acreditámos sempre no potencial do Deco, mas há um erro histórico. Ainda hoje, tenho guardado em casa um contrato de quatro anos com o Deco e o Corinthians Alagoano, assinado no Brasil, quando fui lá de propósito para o efeito.
E porque não se fez valer esse contrato? Porque o Graeme Souness e o Vale e Azevedo estavam mais preocupados em trazer jogadores ingleses em final de carreira. É um dos maiores erros desportivos de sempre do Benfica e do futebol português. E eu já disse isso publicamente. Aliás, o Pinto da Costa leu esta frase e mandou logo contratar o Deco, foi o quele disse numa entrevista ao Record, é só procurar. É um elogio, mas não gostava nada de ter recebido esse elogio.