Breitner. “Holanda, qual Holanda? A Polónia é que jogava à bola como ninguém em 1974”
Um uruguaio, um alemão, um argentino, um brasileiro, um francês, um inglês e mais dois alemães entram num jornal. Isto é alguma anedota ou quê? Não, somos só nos a falar com Paul Breitner, um dos poucos com golos em duas finais de Mundial (1974, 1982).
Dois Mundiais, duas finais. Campeão em 1974 e vice em 1982. De que maneira isso marca a carreira de um jogador?
A minha vida não só desportiva mas também pessoal mudou em 1974, como resultado da vitória nesse Mundial em casa e especialmente do meu penálti na final, à Holanda, que significou momentaneamente o empate [1-1].
Fale-me desse penálti. Ouvi dizer que não havia marcador oficial.
Sim, é verdade. O habitual marcador era o Gerd Müller, só que ele falhara alguns nessa época [1973-74] no campeonato alemão. No início do estágio pré-Mundial, quisemos definir o marcador e ninguém se chegou à frente. Na segunda fase de grupos, com a Suécia, há um penálti e Uli Höness é quem o marca [o 4-2 final, no último minuto]. No jogo seguinte, com a Polónia [1-0], outro penálti e Höness falha [com 0-0 no marcador].
E chegámos à final.
Exacto. A vitória sobre a Polónia garantiu-nos a final com a Holanda. O jogo era às quatro da tarde e na manhã desse dia reunimo-nos no átrio do hotel às 11 horas. Mais uma vez, o Helmut Schön [seleccionador] perguntou-nos quem iria bater um eventual penálti. Nem uma mosca se ouvia. Adiou-se tudo. Acredita, a 15 minutos do início do jogo, Helmut Schön voltou à carga e nada. “Vocês que decidam na hora”, disse ele.
E ao minuto 25.
É penálti para nós. Estamos a perder 1-0. Enquanto os holandeses rodeiam o árbitro a protestar, nós fingimos que não é nada connosco. E alguém pega na bola, coloca-a na marca de penálti, dá uns passos para trás e fica à espera do apito. Quando soa, ele parte confiante, vê o guarda-redes ir para um lado e atira para o outro. Sem hipóteses, é o 1-1. Esse alguém sou eu, mas acredita, acredita mesmo, só tomei consciência disso na manhã seguinte, quando cheguei a casa às dez e tal da manhã, com a minha mulher, vindos de uma festa interminável, deitei-me no sofá e comecei a ver a final num canal austríaco. Quando aparece esse lance, eu levanto-me assustado. Não estava a acreditar naquilo. Mas então eu peguei na bola? Não, não pode ser. Depois de ver a repetição da repetição do penálti, saí de casa e fui andar pelas ruas durante uns bons 45 minutos. Não estava a acreditar naquilo.
E já acredita?
Sim, claro. Mas na altura foi um susto. Parecia que estava a ver um fantasma na televisão.
Esse penálti mudou o jogo, não foi?
Os holandeses foram-se abaixo. Eles julgam-se superiores. E até são. Têm futebolistas e futebol para ganhar a qualquer um, mas quando se metem com os alemães, o interesse deles não é ganhar, é achincalhar. Nessa tarde, como marcaram o golo no primeiro minuto [outro penálti, de Neeskens, a castigar falta de Höness sobre Cruijff], começaram a tourear-nos, a passar a bola de um lado para o outro, sem o propósito de avançar no terreno. Apenas mostrar que são os melhores. Como sempre, aliás. Mas, desta vez, com mais arrogância. Afinal, estavam a jogar na RFA. Como não foram para a frente e se encostaram à sombra da vantagem, quando sofreram o empate ficaram um bocado abananados. Depois, o Müller fez o 2-1 antes do intervalo. Nunca mais se levantaram, embora obrigassem Maier [guarda-redes da RFA] a boas defesas, e nós ganhámos.
Na final de 1982, a história foi ligeiramente diferente mas o actor principal (Breitner) voltou a marcar.
Rectifico: foi muito diferente. Chegámos estourados à final e só a podíamos ganhar àquela Itália se marcássemos primeiro. De outra forma, não dava.
O que é “aquela Itália”?
É isso que ia dizer agora. Essa Itália não era uma selecção latina normal. Vocês [portugueses], os espanhóis e os italianos têm uma forma de estar no futebol um tanto egoísta. Os jogadores querem fintar três ou quatro vezes o mesmo adversário num curto espaço de terreno. Não jogam em bloco, em equipa. O indivíduo é superior ao grupo. O individual quer mostrar-se aos adeptos e à televisão. Faz umas fintas e vira-se para nós, adeptos no estádio ou espectadores de televisão, como quem diz: “Hein, viram, sou ou não sou o maior?” Essa Itália, não. Eram 11 que valiam todo um país. Com Rossi à cabeça, um espírito guerreiro.
Como a RFA, portanto.
Sim, mas essa RFA já estava de rastos. Repare, jogámos a meia-final com a França na quinta-feira. O jogo teve prolongamento, penáltis e acabou perto da meia- -noite. Mesmo assim, quisemos ir logo para Madrid, local da final, para acordarmos lá. Mas deu tudo errado. Havia uma greve qualquer no aeroporto de Sevilha e lá não havia comida nem bebida. Só aterrámos em Madrid às seis e tal da manhã de sexta-feira. No hotel, às sete e pouco da manhã, jantámos. Estávamos todos trocados. A Itália, não. Tinha resolvido a sua sorte na quarta-feira. Estava fresca. E como marcou primeiro, fomo-nos abaixo. O meu golo só serviu para a estatística.
Pronto, mas ganhou um Mundial.
Digo-te: nesse Mundial, não ganhou a melhor selecção.
Pois, a Holanda.
Holanda? Qual Holanda? Eles julgam-se os maiores e julgam que os outros também os julgam os maiores mas não estou a falar deles. Falo da Polónia. Só lhes ganhámos [1-0] porque o relvado encharcado nos ajudou. Caso contrário. Digo-te, nunca vi uma coisa assim: essa selecção polaca, raramente falada, tinha tudo, uma perfeita simbiose entre artistas, jogadores técnicos, lutadores, juventude e experiência. Esses é que jogavam à bola como ninguém e foram eliminados por nós, nas meias-finais. Foi pena.
Então e a RDA, a única selecção que vos ganhou nesse Mundial?
O que tem?
Muita rivalidade, não?
Nem por isso. Há dois mitos que quero desmistificar agora. Na final, havia mais holandeses que alemães, por incrível que possa parecer [a final é em Munique]. Não sei o que aconteceu, mas eu só via adeptos de cor-de-laranja. E nesse jogo com a RDA não houve, pelo menos em campo, qualquer tensão política associada ao Muro de Berlim. Não éramos irmãos. Para mim, a RDA era um país estrangeiro e jogar em Berlim era como se fosse em Kiev, Praga, Moscovo, Budapeste ou outra cidade do Leste. Além do mais, só me ensinaram a história do país até 1918. As pessoas evitavam falar da divisão, da RFA, da RDA, do muro.