Cruz. ‘Joguei sempre a lateral-esquerdo, com o número 3. À direita, com o 2, o pai do Djorkaeff’
Nove. O número martela-nos a torto e a direito de há uns tempos para cá. É o número da moda. Na era dos telemóveis, digo. Ou é 91. Ou 96. Ou 93. O nosso dia-a-dia é iniciado pelo 9. De repente, iniciamos uma conversa de uma forma diferente, completamente old fashion. Carregamos nas teclas 232. Área de Viseu. Que delícia. A ideia é falar com Fernando Cruz, bicampeão europeu pelo Benfica e digno representante do PSG na sua primeira época de sempre, em 1970-71. Uh la la, c’est magnifique.
Bom dia, tudo bem?
Boa tarde, quem fala?
Daqui Rui Miguel Tovar.
E quer falar com?
Quero falar com o senhor Fernando Cruz, se faz favor. Sou jornalista.
Vai desculpar-me, o meu marido não dá entrevistas.
É uma conversa curta.
Não dá entrevistas. É de onde?
De Lisboa.
É para onde, quero dizer?
É um trabalho para mim sobre o PSG.
[voz lá do fundo de casa] Quem é?
[a mulher] É um senhor jornalista, quer falar contigo.
[um segundo]
[dois segundos]
[três segundos]
Espere só um segundo, ele vai atendê-lo.
Está lá?
Alô, tudo bem?
Tudo bem, quem fala?
Rui Miguel Tovar.
Rui Miguel, está bom?
Tudo, e o senhor?
Também. Diga.
Quero falar sobre o PSG.
Paris, Paris. Bons tempos.
Como é que foi parar a França?
Quando saí do Benfica, disseram-me que um clube novo em Paris estava a precisar de jogadores. Apareci lá, treinei e aceitaram-me.
Do que se lembra?
Joguei sempre a lateral-esquerdo, com o número 3. À direita, com o 2, o pai do Djorkaeff. Um senhor simpático, que falhava alguns jogos da 2.ª divisão porque era chamado para representar a selecção francesa.
É isso que queria entender: o senhor trocou o Benfica por um clube da 2.ª divisão?
Nem mais.
Porquê?
Saí do Benfica e pronto.
Mas era complicado sair de um clube, sobretudo do Benfica, ou não?
Era, era. Mas fiz muita força.
Porquê, chateou-se com alguém?
Chateado, chateado, chateado [repete-se como se estivesse a pensar numa resposta]. Nãããã, não quis mais, pronto. Estava farto e queria ir jogar fora de Portugal.
…
Joguei cinco finais da Taça dos Campeões, ganhei as duas primeiras e perdi as outras três. Fui campeão nacional [oito vezes] e levantei Taças de Portugal [três]. Entrei no Lar do Jogador aos 16 anos. Aos 20, o Bela Guttmann lançou-me a titular e nunca mais parei. Joguei as tais cinco finais, fiz 11 anos de Benfica. A dada altura queremos mais do que nos dão. Achei que não me trataram bem. Pronto, é isso.
Pronto.
E saí para Paris.
Muitos portugueses?
Uyyyy, nem imagina. Muitos, muitos.
Onde vivia?
Perto do estádio.
Maravilha.
Às vezes, ia a pé para os treinos. E também para os jogos.
O PSG é campeão da 2.ª?
Campeões da zona centro, sim. Depois jogámos um play-off para decidir o campeão. Ganhámos, também. No jogo decisivo, 4:2 ao Monaco.
O Fernando Cruz jogou sempre?
Mal entrei na equipa [10 Outubro, vs Bourges], só falhei dois, por lesão. De resto, sempre a lateral-esquerdo, com o número 3.
Marcou algum golo?
Só marquei um golo na carreira, ainda pelo Benfica, ao Olhanense, na Luz. Ganhámos 8:1, marquei o sexto.
Jogava com Eusébio, Simões, José Augusto, Torres…
Costa Pereira, Germano, Ângelo, Coluna. Essa malta toda. Dávamo-nos todos muito bem. Olhe, o Coluna também jogou em França nessa época 1970-71.
Lyon?
Exacto, o Coluna era do Lyon. Nunca me encontrei com ele, porque o Lyon era da 1.ª divisão.
[lá do fundo, a mulher de Cruz diz de sua justiça: Lyon, o Coluna jogou no Lyon]
[foi o que disse ao senhor, o Coluna era do Lyon]
Como era o futebol francês?
Zero campos pelados. Era essa a grande diferença em relação a Portugal.
E divertiu-se?
Então não? Conheci um país, um campeonato, uma capital e uma mentalidade diferente. Tudo mudou. Tanto para mim como para a minha mulher e os meus filhos.
E depois?
Fomos para os EUA.
Fazer o quê?
Trabalhar.
Trabalhar?
Já trabalhava em Portugal, era serralheiro civil.
Enquanto jogava no Benfica?
Nem mais. Serralheiro civil. Nos EUA, continuei essa profissão. Para ganhar dinheiro, senão…
[a mulher volta a dizer de sua justiça: foste serralheiro, não te esqueças]
O futebol não chegava?
Nããããã. Nem em França. Nos EUA, fui serralheiro e ainda treinei alguns clubes. Até fundei o Benfica de Newark. Nem sei se esse clube ainda existe.
Nem eu.
Também estivemos na Venezuela, onde a comunidade portuguesa era igualmente grande. Não tanto como a de Paris, parece-me.
[Venezuela, também fomos à Venezuela, grita a mulher lá do fundo]
Os emigrantes apoiavam-no no PSG?
Muito, claro. Dava prazer jogar.
Alguma vez voltou a ver o PSG?
Nunca mais. Nem nunca mais fui a Paris ou a França.
E o que me diz deste PSG?
Cresceu imenso e agora é vê-lo na final da Liga dos Campeões. Quero ver o jogo. A ver se o lateral-esquerdo é melhor que eu.
Ahahahahah.
Ai quero ver quero.
Acho bem. Obrigado por tudo, abraço.
Obrigado, grande abraço.