Genuíno Madruga. ‘Isto de fazer a volta ao mundo sozinho num veleiro é como fazer o Paris-Dakar com um Fiat Panda’

Mais You Talkin' To Me? 09/11/2020
Tovar FC

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Genuíno Madruga. ‘Isto de fazer a volta ao mundo sozinho num veleiro é como fazer o Paris-Dakar com um Fiat Panda’

Quando se atraca na Horta, é uma sensação única de bem-estar. Do porto ao centro, é um passeio de uma beleza indescritível, sempre com o pico do Pico à nossa esquerda. No lado contrário, uma paisagem agradável de casas baixas e coloridas. De repente, uma encruzilhada. Se formos por um lado, tropeçamos no lendário Peter Cafe Sport. Se formos pelo outro, esbarramos na improvável loja de golas Putu (peça única, tamanho único). É tudo um mimo. Se continuarmos em frente, chegamos à praia de areia branca. Bem bonita, por sinal. Com vista para o infinito. Antes, ligeiramente antes (da praia, não do infinito), um restaurante chamado Genuíno cheio de pratos indecifráveis como Rapa Nui (atum no forno), Polinésia (escabeche quente de peixe), Marcel Bardiaux (filetes de peixe-espada com arroz de açafroa), Joshua Slocum (peixe espada com banana), entre outros.

Em cada mesa de madeira, o vidro protege lembranças de outros roteiros (pulseiras, areia, máscaras) e fotografias com o mesmo ator (nem sempre o principal). Ao fundo da sala, um planisfério de dimensões estratosféricas com setas e mais setas, tudo da direita para a esquerda, como que a indicar uma viagem. Dos Açores aos Açores, com passagem pelo temível Cabo Horn. Mas quem? Como? Quando? À porta do Genuíno, o Genuíno. O senhor recebe-nos amavelmente e indica-nos uma mesa lá em cima, ao pé da janela, com vista para o tal infinito. Na ressaca do cesto de pão com queijo e malagueta mais o divinal atum, as perguntas respondem-se automaticamente como a queda das peças de dominó. Faz-se luz e o senhor da entrada é o senhor da volta ao mundo, dos Açores aos Açores.

Ya, Genuíno é o primeiro português a navegar em solitário à volta do Mundo (2000). E é também o primeiro português a cruzar o Cabo de Horn, do Atlântico para o Pacífico (2008). Só falta o como.

Boa tarde, como se chama?
Genuíno Alexandre Goullart Madruga.

De onde é?
Nasci a 9 dezembro 1950, na freguesia de São João, na ilha do Pico.

A ilha do Pico é aquela ali [aponta-se para o horizonte escondido].
Vim para o Faial com os meus pais e os meus irmãos no verão de 1958.

Esse é o ano do vulcão dos Capelinhos.
Lembro-me perfeitamente de acordar, viver e adormecer a ver o vulcão a trabalhar. As cinzas viajavam ao sabor do vento e sujavam as nossas roupas penduradas no estendal, acabadas de lavar. A minha mãe ficava desanimada com aquilo tudo.

Do Pico para o Faial, porquê?
Foi um ano em que saiu muita gente daqui [Faial] para os EUA. Uma saída em massa, um êxodo de emigração muito forte, provocado pelo vulcão e pela procura de melhores condições de vida. Os meus pais optaram por viajar para aqui. Tal como eles, muitas outras famílias fizeram o mesmo. Desde o Pico e até desde São Jorge.

Ou seja, o Genuíno continuava rodeado pelo mar.
Sempre. Nunca me desliguei do mar. Cresci aqui a ver todos aqueles que chegavam ao porto. Chamavam-se os aventureiros e vinham de todo o lado. Como estudava inglês e francês no liceu, tinha oportunidade de meter conversa com essas pessoas e ficava fascinado com as suas histórias. Quando era hora de voltar para casa, ia mais animado que nunca com a perspetiva de me agarrar ao atlas para saber onde eram as terras de que eles falavam. As Caraíbas e isso tudo. Daí a imaginar as histórias contadas, era um passo.

Daí à pesca, foi outro passo.
Ando no mar desde os 12 anos de idade.

No barco de quem?
No meu. Construí a minha primeira embarcação aos 12 anos de idade, durante as férias de verão. Demorei um mês. E era meu.

Como é que se lembrou de fazer uma viagem?
Uma, não. Duas.

Como?
Fiz duas voltas ao mundo.

[silêncio embaraçoso] D-u-a-s? Mas como?
A primeira em 2000, a outra em 2007.

Num barco também seu?
Sim, o Hemingway.

Ernest Hemingway?
Esse mesmo. Comprei o veleiro na Alemanha e batizei-o Hemingway. Tenho ali muitas versões do livro “O Velho e o Mar” [aponta para uma estante, onde se vê o “The Old Man and the Sea”, “Le vieil homme et la mer”, “El viejo y el mar”; na língua castelhana, há duas obras e Genuíno acrescenta: uma é de Espanha, a outra é de Cuba].

Qual o tamanho do veleiro?
Onze metros.

E é possível viajar pelo mundo assim?
Vamos lá ver, isto é como fazer o Paris-Dakar com um Fiat Panda.

Como foi a primeira viagem?
Uns três meses antes, marquei a data de partida para 18 Outubro 2000.

E a da chegada?
Também marquei na minha cabeça, no mesmo dia em que decidi o dia da partida.

E bateu tudo certo?
Sem falhas [e esboça um sorriso paternalista]. Às 15 horas do sábado de Espírito Santo [18 Maio 2002], depois de 19 meses a navegar, cheguei aqui.

E a outra viagem?
Demorou 21 meses, de 2007 a 2009.

Foram iguais?
Na primeira, atravessei o canal do Panamá do Atlântico para o Pacífico. Na segunda, desci toda a costa da América do Sul e passei pelo Cabo Horn para fazer parte da Confraria do Cabo Horn.

Isso é uma espécie de Bola de Ouro dos mares?
[Genuíno ri-se] Percebo muito pouco de futebol e nem sei se hoje joga o Sporting, o Benfica ou a seleção, mas a Confraria só tem dois portugueses. Um é o Pedro Proença Mendes, o outro sou eu. Só que ele passou o cabo Horn ao comando de um navio com tripulação a bordo, eu passei sozinho.

[silêncio embaraçoso, parte II] Sozinho?
Sim, essas duas viagens é a solo. Sou a décima pessoa do mundo a fazer a circum-navegação.

A décima? Só? Sozinho? Só? [as perguntas atropelam-se umas às outras]
O meu combustível é o vento.

E quando não há vento?
Cozinha-se, arruma-se, escreve-se, ouve-se música.

E dormir?
É raro.

Como assim?
Nunca se dorme tranquilo, descansado.

Porque o veleiro nunca está parado?
Isso mesmo, o veleiro só pára nos portos. Aí, durmo descansado mas nunca muito. No dia seguinte, tenho de continuar a viagem.

E não entra em stress?
Nunca. Não dá, simplesmente não dá.

Qual é o Oceano que nunca falta vento?
O Índico. E também corre uma brisa no Pacífico [pisca-me o olho].

Quando há vento, o que se faz?
Temos de abrandar o ritmo para não falhar a entrada.

A entrada?
Isto é como uma autoestrada: temos de sair na via certa, senão…

E quando não há vento, o que faz?
Espero por uma brisa. Às vezes, há dias em que o barco não avança. Simplesmente não há vento nem ondulação. No Equador, por exemplo. Aquilo não anda nem desanda.

E…
Não dá para dormir, garanto-lhe. O calor é tanto, tanto, tanto. O sol é tão forte que não conseguimos pregar olho.

M-e-d-o.
Nada disso. É até bastante terapêutico, sabe? Dá tempo para ver tudo o que nos rodeia, coisa quase impossível no nosso dia a dia em que estamos sempre carregados de deveres e afazeres. Ali, no meio do oceano, dá para ver o céu, as estrelas, o mar, os peixes. É como se parasse o tempo e fizesse auto-análise. É preciso ter as ideias bem arrumadas para navegar sozinho.

E depois?
Percebemos que somos pequenos e, ao mesmo tempo, grandes.

Como?
Somos pequenos nesta vasta dimensão do mundo. E somos grandes porque atingimos os objetivos propostos, até aqueles mais inverossímeis.

Dê um exemplo, se faz favor.
Sempre tive estas viagens na cabeça. Sempre. Em 1970, entrei para a tropa e a ideia enraizou-se ainda mais. Quando voltei a casa, decidi-me a juntar dinheiro para a primeira viagem em 2000. Era preciso muito dinheiro e arranjei-o. Quando comprei o Hemingway, recuei automaticamente no tempo e lembrei-me que não tinha nada quando me casei. Nada. Só depois é que fui comprar uma cama para me deitar com a minha esposa. E só tinha um barco pequenino, com um motor a gasolina de 4,5 cavalos. Não havia dinheiro para mais. Eu era pescador e a minha mulher cuidava das vacas. Não íamos a cafés. Nem a festas. Muito menos de férias. A vida era sempre a trabalhar. De repente, somos pais de dois rapazes. Tivemos de pagar a educação deles e tudo resultou. É aí que quero chegar: parto do zero e compro o Hemingway. Esse salto é uma alegria enorme.

É o salto mais importante da sua vida?
Seguramente. Esse e o facto de ter conhecido Marcel Bardiaux [a cena repete-se: Genuíno aponta para a estante, onde os livros de Bardiaux enchem uma das prateleiras, acima da de Hemingway].

Quem?
Eu sou o décimo a circum-navegar o mundo, ele foi o primeiro. E por quatro vezes. Sempre sozinho, com barcos construídos por ele. Era francês. Uma vez, em 1975, encontrei-o na Horta. Ele chegou aqui com um barco construído em aço inoxidável. Naquela época, isso era uma novidade do outro mundo. Bardiaux era assim, um homem fora de série.

E amigável?
Uyyy, muito, muito. Aconselhou-me imenso na arte da circum-navegação: faz isto, vai por ali, evita aquilo. As suas histórias eram deliciosas. Ficava horas a ouvi-lo e trocávamos ideias sem parar. Que homem extraordinário. Morreu em fevereiro 2000, pouco antes do início da minha primeira viagem.

Que pena.
Muita pena. Era um homem extraordinário. Bem sei que me repito: fez quatro voltas ao mundo. Sozinho.

Na mesa do almoço, estava a olhar para uma fotografia sua ao lado do túmulo do Gauguin.
Sabe de quem é o túmulo ao lado?

Nem ideia.
Jacques Brel.

Onde?
Ilhas Marquesas. A mulher do Jacques Brel era de lá e ele quis ser enterrado em Hiva Oa, a segunda maior ilha das Marquesas. Sabe que apanhei uma vez o Brel aqui na Horta?

Nãããããããã.
Sim, sim. Estava ali no Peter Cafe e um amigo disse-me ‘está ali o Jacques Brel’. Olhei e nem o reconheci à primeira. Já estava com uma certa idade.

Meteu conversa com ele?
Claro, era um dos meus ídolos. Ouvia músicas dele constantemente. Vê-lo ali à minha frente era uma alegria imensa. Fui lá e voltei poucos minutos depois. Não me deu muita conversa, parecia que estava à espera de alguém, algo impaciente. Nas ilhas Marquesas, quis ver o túmulo do Gauguin e acabei por também ver o do Brel, ali lado a lado. Fiz isso na primeira e também na segunda viagem. Sempre gostei de repetir os locais para tentar rever as pessoas que me ajudaram.

Algum açoriano nessas andanças?
Ufff, nem imagina. Há açorianos em todo o lado. Acredite em mim. Quando faz a viagem em solitário à volta do mundo, o Joshua Slocum passa pela Terra do Fogo e relata um encontro com um açoriano. Passa também pelas Ilhas de Robinson Crusoé no Pacífico e relata outro encontro com outro açoriano da Ilha de São Miguel, chamado Manuel Carroça que vivia naquela ilha com uma brasileira do Rio de Janeiro.

Estamos em que ano?
1880. O açoriano era conhecido por rei.

Porquê?
Era o único que falava inglês naquelas ilhas. Há muitos açorianos por aí. Na Samoa, conheci as famílias Silva e Pereira. Na África do Sul, conheci as açorianas Maria de São João, de São Jorge, e Maria Romana, da Terceira.

E o inverso: o mundo conhecer os Açores?
Carreguei o Hemingway de CDs da música açoriana e distribui-os por onde passei. Nunca ma esqueci. Seja Terra do Fogo, Brasil, Cabo Verde, Ilhas Marquesas.

Terra do Fogo. Como é que é aquilo?
O fim do mundo. Para dobrar o Cabo Horn, um feito inaudito na história da navegação marítima portuguesa, é preciso uma paciência ilimitada porque a força do vento e do mar, aliada à neblina, atrapalha qualquer um. Para andar uma milha, é o cabo dos trabalhos. Nesse caso específico do Cabo Horn, levei dez horas para fazer seis milhas e ancorar no porto. Receberam-me dois marinheiros chilenos. A ilha de Horn é um local perdido na terra. Não há árvores, só alguns arbustos e plantas rasteiras.

A seguir à ilha de Horn, segue-se o quê?
A Ilha de Páscoa.

Uauuu.
É mesmo, uauuu. Como é que o homem fez aquilo? Aquelas figuras vieram de onde? Tudo perguntas sem uma resposta evidente. É incrível.

E assustador?
Não, assustador é a pobreza em quase todo o mundo. Vi muita pobreza. Vi pessoas a vasculhar o lixo à procura de comida e vi crianças, muitas crianças, a passar fome e que não sabem quem são os pais. Tudo isto é triste. Nem sabemos como nos comportar. Eu dava tudo o que tenho. Brindes dos Açores, entre porta-chaves, bandeiras dos Açores, CDs.

Também há o outro lado, o do ser humano no seu melhor?
[começa a sorrir, em jeito de troça com o destino] Uma vez, apanhei uma tempestade violenta no Oceano Índico e cheguei sem mastro à ilha Rodríguez. Com a ajuda dos locais, pescadores e não só, andei milhas e milhas com um mastro feito de bambu. Na segunda viagem, estou a chegar à ilha Rodríguez e vejo um homem conhecido. É o Manuel, um dos muitos que me ajudou na primeira vez. Na sua mão, um saco de tomates. Vivia da amabilidade de todos aqueles que me recebiam com carinho e admiração. Fui recebido com pompa e circunstância em muitos locais, sobretudo os de língua portuguesa. Como em Santa Catarina. Houve fogo de artifício e tudo.

E Timor-Leste?
Como o barco tem bandeira portuguesa, fui aconselhado a evitar Díli na primeira viagem. Na segunda, já não. E, lá está, fui recebido como um herói.

Por quem?
Ramos Horta, na linha da frente.

Boa, boa.
Recebeu-me bastante bem, mostrou-me tudo e mais alguma coisa. Ficámos amigos, trocámos números de telefone e enviamos mensagens regularmente. Um dia destes, já no ano passado, escreveu-me a dizer que estava na Guiné-Bissau a tentar resolver uma crise política.

Só para acabar, diga-me lá a viagem tintim por tintim, se faz favor.
Começo nos Açores.

‘Tá giro.
Santa Catarina, Punta del Este, Colonia do Sacramento, Buenos Aires, Ushuaia, Cabo Horn, Puerto Williams, Puerto Montt, Ilha de Páscoa, Ilhas Marquesas, Polinésia, Samoa, Darwin, Dili, Bali, Durban, Port Elizabeth, Cidade do Cabo, Ilha de Santa Helena, Fernando Noronha, Maranhão e…

Horta.
Como é que sabes?

in Observador, Dez 2016

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