Manuel Fernandes. ‘Auxerre? Isso é o jogo em que o Oceano se enganou. Que golo, vai lá vai’
Guy Roux é um histórico do futebol francês. Treinador do Auxerre em 890 jogos entre 1961 e 2005, estreia-se na UEFA em Alvalade, por ocasião da primeira eliminatória da Taça UEFA 1984-85. Golos de Manuel Fernandes e Jaime Pacheco estragam-lhe a noite. Quinze dias depois, em Auxerre, o polaco Szarmach dá-lhe uma dupla alegria. Prolongamento e tal. Oceano marca um golo memorável, O suplente Litos garante o empate em cima da hora.
Bom dia Manuel, tudo bem?
Ò Rui, como é que vais?
Tudo porreiro, a curtir a movida.
Eheheheh, aqui também. Vivo no campo, é uma maravilha. Rodeado da natureza.
Por falar em natureza, tens rede aí?
Eheheheh, claro que sim.
Vou enviar-te um onze do Sporting.
Força.
(…)
Já viste?
Eheheheheh, o jogo em que o Oceano se enganou. Marcou cá um golo, vai lá vai.
Eheheheheh. Vamos falar desses jogadores do Sporting?
Bora, claro.
Damas, 1.
O meu ídolo, Aliás, eu tinha a mania que era guarda-redes por causa do Damas. Habituei-me a vê-lo jogar no Montijo, desde o tempo em que ele era júnior do Sporting. Sempre previ que ia ser um grande guarda-redes. E foi. Grande, enorme.
Nessa altura, o Damas já tinha saído e voltado do Sporting?
Voltou, e ainda bem. Porque merecia acabar a carreira desportiva, com sucesso.
Ouvias os gritos?
Nada, estava lá à frente. Mas o Morato e o Venâncio, coitados. Se fosse preciso, o Damas até lhes apertava o pescoço.
Carlos Xavier, 2.
Foi um dos miúdos lançados pelo Allison no campeonato 1981-82. Jogou quase sempre ao lado do Eurico e só tinha 18 anos de idade. Porque o Allison não tinha medo de arriscar e porque o Carlos era tecnicamente muito bom. Sem ser rápido, tinha um óptimo sentido posicional.
Venâncio, 4.
Foi infeliz com todas aquelas lesões nos joelhos. Se não fosse isso, podia ter tido uma carreira muito melhor. E merecia ter sido campeão nacional pelo Sporting, porque era bom de bola. Via-se desde miúdo que era um bom central de marcação, forte no jogo aéreo e rápido a reagir à perda.
Virgílio, 6.
O cabeça d’+área.
Beeeeem, que expressão. Já não ouvia há tanto tanto tanto tempo.
Jogava à frente dos centrais. No meu último ano de Sporting, o dos 7-1, ele jogava a central.
Mário Jorge, 3.
Mais outro da formação, jogava a lateral-esquerdo. Ou era ele ou o Inácio. No tempo do Allison, não havia cá titulares indiscutíveis. Há até uma situação com o Jordão em que o Allison não o meteu a jogar com o Porto.
Whaaaaaat?
O Rui falhou um treino. Ou melhor, chegou atrasado a um treino. E o Allison não o perdoou, muito embora o Rui estivesse a passar por um período familiar conturbado.
E o Allison sabia?
Sabia, pois. E o Rui voltou a explicar-lhe, como razão desse atraso ao treino. Estávamos na semana do jogo do título com o Porto, em Alvalade. O Allison não vai de moda: saca o Jordão e mete o Mário Jorge. Coincidência das coincidências, ganhamos 1-0 com golo do Mário Jorge. É o golo do título, por assim dizer. Ainda faltava muito para acabar, mas aquele 1-0 deu-nos uma vantagem considerável.
Isto para dizer o quê, já me perdi.
Eheheheheheh. Que não havia titulares indiscutíveis para o Allison. Tanto assim é que o Rui foi titular na jornada seguinte a esse 1-0 ao Porto. Jogámos no Restelo e o Allison tirou o Mário Jorge para incluir o Rui. Resultado?
Diz.
3-1 para nós, um golo do Rui. Ou dois, já nem me lembro. Sei que jogou e a polémica passou. Aliás, eu próprio disse ao Rui durante a semana para não se irritar com o Allison. ‘Ò Rui, não te preocupes, ele só está a fazer isso para te enraivecer e vais ver que jogas no Restelo.’ E assim foi. Que personagens, eheheheheheh.
Eheheheheheheh. Oceano, 5.
Corria 90 minutos e, se fosse preciso, mais 90 logo a seguir. Nos primeiros tempos de Sporting, quando chegou do Nacional via-Pedro Gomes, ele só queria correr, correr, correr, correr. A gente só lhe dizia ‘vai com calma’. E a verdade é que ele acalmou e evolui tanto, tanto.
Verdade. Muitíssimo. Ainda me lembro dos adeptos do Sporting a assobiá-lo.
Exactamente. Isso era triste, mas verídico. O Oceano não ligava nenhuma e levou a melhor com essa atitude de guerreiro.
Lito, 7.
Doutor Lito, se faz favor. Jogou na direita. Um miúdo extraordinário, com uma qualidade acima da média. Se levasse o futebol mais a sério, tinha ido para outros patamares. Só lhe interessava a bola e fazia coisas maravilhosas. Sem bola, alheava-se um bocadinho do jogo. Excelente no um para um.
Jaime Pacheco, 10.
Jogou ao lado do Oceano e fizeram uma dupla do caneco. Anos mais tarde, fui buscar o Jaime para o Vitória FC e pu-lo a jogar sozinho no meio-campo como ele gostava. Era muito inteligente e pisava todos os terrenos: recuperava bem a bola, transportava-a bem, pressionava alto como ninguém. Fora do campo, extrovertido ao máximo e um ganhador nato.
Romeu, 8.
Jogou sobre a esquerda, um profissionalão. Muito sério e honesto, era preciso conhecê-lo bem para sabermos lidar com ele.
Eldon, 11.
No tempo do Toshack, a dupla era sempre eu e o Rui. O Eldon entrava de vez a vez. Quando o fazia, marcava sempre. Uma vez, no Estádio do Mar, com o Salgueiros, entrou a 15 minutos do fim e fez um hat-trick. Como o Lito, se ele levasse o futebol a sério era um caso sério. Só que não prescindia de uma cervejinha. Uma, não; duas ou mais, eheheheheh.
Falta um.
É o Litos, não?
Não, não, é o próprio Manuel.
Eheheheheheheh. O Litos estava no banco, então. É ele quem marca o 2-2 no último minuto do prolongamento.
Nem mais.
O Litos era um amor do Toshack, era ele e mais dez. E, de facto, o Litos era muito bom com a bola e inteligente sem ela. Sou eu, é isso?
Exacto: Manuel Fernandes, 9.
Número 9. Curiosamente já levava nove anos de Sporting. Aproveitava essa condição para abraçar o início da carreira dos mais jovens e havia-os aos montes como vimos. Levava-os aos nossos almoços para se integrarem mais depressa no grupo.
E o Auxerre?
Boa equipa, treinada pelo então jovem Guy Roux. Vimo-nos aflitos, mesmo com a vantagem de 2-0 da primeira mão. Marcou o Szarmach, por duas vezes. Era um avançado polaco bom de bola. Já o tinha encontrado na qualificação para o Mundial-78 e jogava muito. Eles empataram a eliminatória e só resolvemos no prolongamento, com aquele golo do meio da rua do Oceano.
Treinador, Toshack
Foi pena, a saída do Toshack. Como não foi campeão, o João Rocha mandou-o embora. Fez mal, o Toshack tinha um carácter forte e todos gostávamos dele. Tal como o Alisson, o Toshack nunca arranjava bodes expiatórios nas horas más e sempre deu a cara. Além disso, era um líder coerente e justo. Qualquer jogador de futebol só quer um líder, não precisamos que nos ensinem a jogar, basta a liderança. E a liderança passa por muita coisa, como respeitar tanto os titulares como os suplentes.
Grande, estou a ver.
Enorme, ò Rui. Na última vez que o vi, disse-me ‘foste um dos melhores jogadores que treinei na carreira’. E eu, espantadíssimo, mas então treinou o Real Madrid e tal?
E ele?
‘Nãããão, Manolo, tu, tu’.
Eheheheheheheh.
Eheheheheheheh.
Na eliminatória seguinte, os mesmos resultados.
Foi, triste. Fomos eliminados pelo Dínamo Minsk, lá na URSS. Ganhámos 2-0 em Alvalade e perdemos 2-0 em Minsk. No prolongamento, nada.
Nos penáltis.
Falhámos um.
O Manuel Fernandes marcou o seu.
Sempre preferi ser o terceiro marcador.
Não sabia.
Era para ler o guarda-redes nos dois penáltis anteriores.
Boa, boa. Obrigado por tudo.
Ora essa Rui, grande abraço.