Até um golo de cabeça fora d’área
O vídeo é curto, de tão-só 40 segundos. Vê-se Maradona novíssimo, seguramente sub-10, a dar toques sucessivos numa bola quase maior que ele. Um, dois, quatro, oito, 16 e por aí fora. Às tantas, Diego olha para a câmara e diz: ‘só tenho dois sonhos: jogar o Mundial e ser campeão do mundo’. Frio na barriga, pele de galinha, arrepios e essas coisas todas. É incrível como o sonho se torna realidade. E da forma mais especial de todas, com uma Argentina assim-assim, sem individualidades por aí além, sobreudo depois de falhar o Mundial-78 por opção técnica de Menotti e de ser expulso no último jogo do Mundial-82, com o Brasil.
O seu Mundial de sonho é o de 1986, no México, onde Pelé se sagrara tricampeão em 1970. O Estádio Azteca tem a magia de juntar dois homens desavindos, dois craque do além, sem comparação possível. Se Pelé marca um golo icónico na final de 1970, Maradona assina o golo do século (ou será dos séculos?). Pobre Inglaterra, completamente destroçada. Já se sabe, tudo começa com a mão, naquela bola dividida com Shilton. Como há quem diga que o lance é ilegal, Diego vai buscar mérito ao slalom desde o meio-campo no 2-0. A jogada dura 10,8 segundos, Maradona dá 12 toques com o pé esquerdo enquanto ultrapassa Reid, Beardsley, Butcher, Fenwick e Shilton. “De que planeta viniste?” questiona o jornalista Víctor Hugo Morales no mais emocionante comentário de sempre.
Para quem não sabe, Diego é do planeta Villa Fiorito. “Vive num bairro privado. Privado de luz, água, gás”. Sempre com a língua afiada, Maradona nasce e cresce no meio da pobreza. A bola enfeitiça-o desde pequeno e ninguém o segura até à coroação mundial em 1986. Essa Argentina marca 15 golos, dez deles com a marca Maradona, seja em golos (cinco) ou assistências (cinco) – a última é verdadeiramente sensacional, para o definitivo 3-2 de Burruchaga na final com a RFA.
Maradona é o primeiro a juntar o Mundial sénior ao de juniores (daí para a frente, só os espanhóis Casillas, Marchena e Xavi). O título sub-20 é o de 1979, no Japão. Revoltado pela ausência no Mundial-78, mostra-se ao mundo pela primeira vez e faz seis golos. É considerado pela FIFA o melhor jogador, por supuesto. E marca na final, claro, vs. URSS. Um ano depois, em 1980, Maradona só tem 19 anos e está no Argentinos Juniors. Antes de um jogo com o Boca, o guarda-redes Hugo “El Loco” Gatti diz que Diego é apenas um “gordito” com algum jeito para a bola. Maradona reage de pronto e fala em quatro, quatro golos. No dia seguinte, promessa cumprida: penálti, bola corrida e dois livres directos. É só mais um dia normal na vida deste ET. Que se transfere para o Barcelona, em 1982.
A transferência mete até o Benfica. Hein? Antes do Mundial de Espanha, a Argentina faz um teste com o Benfica, em Buenos Aires. Conta Carlos Manuel, o herói de Estugarda. ‘Foi o fim da era Baroti e ele meteu o Paulo Campos, um avançado brasileiro contratado ao Portimonense, a marcar o Maradona. E deu-lhe tanto, coitado do Maradona.’ Quem vê o jogo é Josep Lluis Núñez, presidente do Barcelona. ‘O Maradona não se viu e foi perseguido até nos pontapés de baliza’.
De Espanha segue para Itália, onde representa o Nápoles, campeão italiano 1987, vencedor da Taça UEFA 1989 e bicampeão italiano em 1990 – ano em que capitania a Argentina no Mundial em Itália. Nos oitavos-de-final, Maradó tem um lance genial a originar o golo decisivo de Caniggia ao Brasil (1-0). Na final, a Alemanha vinga a derrota de 1986 e Maradona esvai-se em lágrimas, substituída por impotência no Mundial EUA-94 na sequência de um controlo anti-doping positivo.
Seja como for, Maradona é um ícone. Para argentinos. E também brasileiros. Veja-se o caso do avançado Careca, com quem divide balneário no Nápoles. “Pele ou Maradona? Bem, vejamos uma coisa. Pelé era mais completo. Jogava com os dois pés, era fortíssimo de cabeça. E sempre que foi à baliza, em três situações, nunca sofreu golos. E Maradona? Digamos que se ele só sabia jogar com o pé esquerdo e só treinava duas vezes por semana e estava ao nível do Pelé, o que pensar e dizer se ele tivesse um pé direito como o esquerdo e treinasse diariamente? Além disso, Diego proporcionou aos adeptos mais emoções e alegria. Se o futebol é divertimento, espectáculo, alegria, direi que Maradona é melhor que Pelé.” Já estamos carecas de saber.
E golos que é bom? Ei-los
353 golos
321 pé esquerdo
6 pé direito
26 cabeça (um fora da área: 1988, Nápoles 4:1 Milan)
88 penálti
206 bola corrida
59 livre directo
1 bicicleta (1984, Pescara 0:3 Nápoles)
1 canto directo (1985, Nápoles 4:0 Lazio)