2005, Al Ahly vs Étoile du Sahel
No Cairo, o vermelho é para ser respeitado. No trânsito, é até considerado verde tinto, razão pela qual todos os 10 milhões de encartados (?) o passam impunemente, mesmo com polícias sinaleiros no uso do apito. O Al Ahly de Manuel José foge à regra. Estamos em Novembro de 2005 e o treinador português não perde desde Abril de 2004 (a última derrota até parece fazer parte de um documento mais desactualizado que a escrita hieroglífica). Está invencível há 52 anos e prepara-se para ser bicampeão africano. Ou não, as próximas 24 horas são surreais. Acreditem.
Primeiro, a viagem de táxi para o Estádio Militar, palco da segunda mão da final da Champions. São 40 minutos de pura adrenalina com conversas sem sentido porque não falamos egípcio e ele não speak english. Por gestos, lá nos entendemos e trocamos números de telemóvel para a viagem de volta. É nesse instante que se dá a (primeira) grande surpresa que fica gravada na minha memória e no aparelho dele: o meu número aparece em egípcio! B-e-r-u-t-a-l. E não, não consigo descrever a emoção nem os números do visor. Mas calma, muita calma, o ponto alto ainda está por vir. Quando nos aproximamos de uma espécie de estádio, tocamos-lhe no ombro direito e apontamos para a esquerda, como quem diz “mas aquilo ali não é o estádio da final?”.
O taxista nem pensa duas vezes. Pára a meio da auto-estrada e faz marcha atrás de 200 metros para pedir informações à polícia, enquanto outros veículos apitam alegremente. Os egípcios têm essa e outras manias, como a de transformar três faixas de rodagem em cinco. Tudo muito fácil. No estádio, centenas de polícias mas nenhum deles me revista. Basta dizer Portugal para a passadeira vermelha (no sentido metafórico, claro está) se estender à la garder. É uma maravilha. Como só chegamos uma semana antes do jogo, já não há bilhetes para o camarote de imprensa. Resta-nos a bancada central, ao lado de adeptos, com um portátil ao colo, ao ombro, entre as pernas, em cima da cabeça, onde der, é a loucura. E a minha sorte, porque só assim é que vejo e lido com a emoção de uma final.
A bancada está cheia de adeptos do Al Ahly e há 30 polícias à nossa frente, virados para nós. E também para o jogo. Hey, eles são egípcios, sabem fazer isto de fazer tudo de perfil. É uma característica inata. Um-zero e é o delírio. Dois-zero é a confusão. Três-zero e é um filme de todo o tamanho. Um adepto vindo não sei donde entra na fila abaixo da nossa e começa a distribuir dinheiro em dezenas de notas de 100 libras egípcias (naquela altura, 17 euros). Os polícias são obrigados, por assim dizer, a aceitar! Não sabemos se será considerado um acto de insubordinação mas a autoridade mistura-se com a populaça de uma maneira sui generis.
A conferência de imprensa é outro episódio digno da Quinta Dimensão. No final do jogo, todo o gato pingado entra na improvisada sala de imprensa – que mais se parece uma sala de aulas para crianças da pré-primária com carteiras individuais e o quadro preenchido a giz branco, laranja e amarelo com cães, gatos, ratos, girafas e rinocerontes. Porque África é um mundo à parte. Meeeeeeeesmo. A força policial não existe (ainda devem estar de gatas à procura de uma nota ou outra na bancada). A sala está semi-cheia, com repórteres e outros que tais. Todos a envolver os dois treinadores mais os respectivos tradutores, sem qualquer respeito pelos fotógrafos e “cameramen”. Uma tremenda confusão que só não dá em nada porque a sala é grande e uma palavra de Manuel José é mais importante que a de um polícia ali sentado, com ar frustrado, sem “pinta” de coisa alguma.
Noite de festa pelas ruas do Cairo. No dia seguinte, a grande paródia. Que nem um filme de Jacques Tati. No tempo da rainha Cleópatra, o bom serviço de qualquer egípcio é recompensado com ouro e o mau significa comida para os crocodilos. Como isto anda mal, é a crise e tal (sim, já aí se fala assim da economia mundial), Manuel José devia ter uma pirâmide e pronto, não se fala mais nisso. E não é que nos encontramos na pirâmide de Gizé?! Com Manuel José. E a taça conquistada no dia anterior. É um festival cordial/atabalhoado de beijos, abraços, fotos, filmagens, autógrafos. Alguns camelos, metafórica e literalmente falando, ficam só a ver. Outros só querem tocar em Manuel José, a figura nacional. De volta à estrada, a adoração continua. E o vermelho continua a ser respeitado. O do Al Ahly, claro.