António-Pedro Vasconcelos. ‘Os Cinco Violinos eram uma loucura’
Há patos no nosso caminho. E árvores. E adolescentes. O Jardim da Estrela é uma fauna engraçada a partir das 12h18. Que é o momento em que António Pedro Vasconcelos nos liga para adiar a entrevista das 12h30 para as 13h00. Repete-se o filme, é já um clássico: patos, árvores, adolescentes. Mal o relógio da Basílica da Estrela solta a badalada da uma, lá encontramos o realizador no meio de um café, perdido entre a multidão, só reconhecível com o boné azul escuro. Está acompanhado e pede-nos mais um tempo de espera para acabar uma entrevista e tirar uma fotografia perto do coreto. Meu dito, meu feito. Quando já está despachado, dá-nos um valente passou-bem e senta-se num banco de jardim. Começa a dança.
Que dia, o de hoje. Uma entrevista atrás da outra.
[abre os braços tipo Jesus Cristo Super Star] Hoje? É assim quase todos os dias. De lá para cá, de cá para lá. Sabe a minha idade?
Por acaso, até sei: 78.
Está a ver [encolhe os ombros]. Estou sempre a fazer coisas [e senta-se no banco].
Como por exemplo?
Agora estou a fazer um docudrama.
Sobre o quê?
É sobre um episódio que ninguém conhece do 25 de Abril. Quando as pessoas comemoram o 25 de Abril, lembram-se dos tanques, dos chaimites, dos cravos. Ora, para se chegar a isso, foi preciso montar toda uma operação e há um episódio absolutamente decisivo de um tipo que fez o serviço e voltou à sua vida nas Caldas da Rainha, como se nada fosse.
Então?
Foi viver para as Caldas da Rainha, é natural de lá.
Não. Então que operação foi essa?
Ah, muito bem. Ele teve de montar um cabo de transmissões desde o Fonte Nova até à Pontinha, onde estava o posto de comando. Se eles não tivessem isso, nunca poderiam escutar as conversas do Marcello Caetano, do chefe da PIDE, dos chefes do Exército nem comunicar-se como o Salgueiro Maia. Dava para ouvir tudo. Foram eles que conseguiram interceptar uma conversa do Ministro do Exército ou da Marinha em que a Fragata Gago Coutinho ia subir o Tejo e voltou para trás para disparar sobre os chaimites no Terreiro do Paço. Os gajos interceptaram isso.
E depois?
Felizmente, o Otelo soube que a fragata ia disparar e telefonou a quem de direito. Se vocês disparam para o Terreiro do Paço, vão ao fundo no segundo seguinte. Basta olhar para o Cristo Rei.
O que havia por lá?
Uma série de homens armados prontos a disparar na direcção da fragata. Isso fez com que houvesse um recuo nas intenções da fragata, está claro.
Que cena.
Esse herói anónimo das Caldas da Rainha foi o autor de uma operação clandestina, na noite de 22 para 23 de Abril. Ele era um jovem furriel miliciano e foi aliciado para o serviço. Levou consigo uma equipa de 20-e-tal guarda-fios e, em duas noites, montaram o cabo telefónico desde o Fonte Nova até à Pontinha, passando por Carnide e os Pupilos do Exército. Nessa zona dos Pupilos do Exército, não havia como passar o fio. Então, eles tinham de passar os fios por cima de telhados, árvores e tudo o mais. Veja bem, corriam o risco de serem apanhados em flagrante ou até colhidos por um eléctrico. Aquilo tinha de se fazer e esse gajo é um herói anónimo.
Que se chama?
Cenoura, Carlos Cenoura. O próprio Otelo só o conheceu 34 anos depois. Ele veio aqui a Lisboa explicar-nos o que fez.
Isso é o docudrama. E mais?
Estou a preparar um filme que se passa no Parque Mayer nos anos 30. Está a dar-me uma trabalheira do caraças. Uma trabalheira boa, entre escolher actores e pensar como vou refazer o Parque Mayer num descampado qualquer em Lisboa.
Boa.
No meio disto, sou um activista. E quanto mais velho, mais activista sou. Envolvo-me em movimentos contra coisas lesa-pátria. Já foi a TAP, agora é a exploração de petróleo, completamente criminosa. Os contratos que foram feitos dão-nos zero. Uns três por cento ao fim de 15 anos. E se houver acidentes, o problema é nosso. Uma coisa bárbara. Portugal assina o acordo de Paris em que os combustíveis fósseis são um desastre para a Humanidade, toda a gente sabe isso, menos o Trump. É preciso investir em energias limpas e Portugal vai mexer naquilo para destruir o Algarve todo, através da Ria Formosa e da Costa Vicentina. Estou metido nesse movimento.
Estou a ver que sim.
[ri-se e continua] Estou num outro movimento que me deixa indignado.
Qual?
O acordo ortográfico. O que é aquilo? A malta escreve à antiga e, de repente, apercebo-me que os meus netos escrevem uma língua que não é a minha.
[a conversa é interrompida pelo toque de um telefone, APV atende-o, fala animadamente e abre uma mini-agenda para se organizar]
Isto do acordo é uma catátrofe: 94% dos portugueses são contra e nem sabem escrever desta maneira. Pura e simplesmente, tiram os cês e os pês. Outro dia, vi na TVI um rodapé sobre os adetos do Braga. Os adetos?! Depois há o pato de estabilidade, os casamentos de fato. Sim, claro, e também os de manga de camisola e tal. Resolvem tirar as consoantes mudas e pronto. No outro dia, os meus netos perguntaram-me ‘ò avô, o que é alto e para o baile?’ É alto e pára o baile. E o problema disto é que ninguém se mexe, as pessoas simplesmente conformam-se. Isto tira-me do sério e ocupa-me um tempo. Temos de juntar a comunidade científica com os artistas para mexer com isto, só que eles nunca estão disponíveis. Assinam a petição e nada mais. Dizem que estão ocupados, com um concerto, um livro e tal. Eu também estou ocupado, também tenho o tempo limitado. Olhe, no último filme que fiz, tinha de interromper para falar à televisão sobre a TAP. Bom, siga.
Belo início, a partir daqui só futebol. Uma vez, ouvi-o dizer que tinha visto jogar o Peyroteo. Como assim?
Em Coimbra, num Académica-Sporting. Era da Académica e via os jogos em Coimbra, levado pelo meu pai. Quando vim para Lisboa, aos 14 anos, continuei a ver os jogos da Académica com o meu pai, nas Salésias, no Campo Grande e no Estádio. Naquela altura, os Cinco Violinos do Sporting eram uma loucura. E a Académica era fantástica. A Académica do Cândido de Oliveira, que maravilha. Havia o Bentes, o extremo esquerdo, que ainda chegou a jogar em alternativa ao Albano na selecção. E apanhei um jogador genial chamado Rocha, filho de pai português, mãe chinesa e macaense de nascimento. Que portento, garanto-lhe. Destrocava jogo como ninguém. Também vi o Mário Wilson em acção. Depois, vi a outra Académica, a dos anos 60, com Gervásio, os irmãos Campos, Rui Rodrigues, Maló à baliza. Outra maravilha. Perguntava-me pelo Peyroteo. Tenho uma história engraçada.
Conte.
O primeiro grande jogo que vi foi um Portugal-Espanha, no Jamor. Não tenho assim grandes recordações de jogos. Tive uma infância feliz, muito feliz. Os únicos momentos de sobressalto, por assim dizer, foi mudar-me de Leiria para Coimbra aos 7, de Coimbra para Lisboa aos 14 e de Lisboa para Paris aos 21. De sete em sete anos, a minha vida mudou. Bom, fui ver esse Portugal-Espanha com os meus pais e um amigo deles. Esse amigo tinha um Citröen. Na altura, ter um carro marcava a diferença em relação aos outros. Trouxe-nos de Coimbra até ao Jamor e fomos ver o clássico ibérico. Antes do jogo, o Azevedo, um lendário guarda-redes do Sporting que estava lesionado, entrou em campo com o braço engessado e foi aplaudido pela multidão. Depois, passou um avião a distribuir papelinhos.
Papelinhos? Isso parece a final do Mundial-78.
Eheheh, pois. Começa o jogo e sofremos o 1-0 ao primeiro minuto de jogo. E depois ganhámos 4-1. Foi cá uma exibição. A base da selecção era as Torres de Belém atrás [Capela, Feliciano e Vasco] mais os Cinco Violinos à frente, sem o Vasques. Marcaram Araújo, do Porto, e Travassos, do Sporting. Cada qual dois golos, 4-1. Embora Portugal e Espanha fossem regimes irmãos, havia uma certa rivalidade e os gajos juraram vingança no próximo jogo. Falou-se em 10-0. Infelizmente, apanhámos 10-0, sim, só que da Inglaterra do Stanley Matthews. Também no Jamor. A este jogo, eu não fui. Sabe quem foi ao jogo de desforra, em Madrid?
Quem?
O tal amigo do meu pai. Agarrou no seu Citroën e foi. Ele adorava futebol. Como era uma pessoa animada, contava-me as histórias todas e eu, novito, ficava fascinado. Nunca mais me esqueci desta história, até porque sempre gostei de trocadilhos, sou muito sensível à língua. Contou ele que o ambiente era de hostilidade para com os portugueses, que lhe bateram à porta do quarto na manhã do jogo a dizer desayuno [10 a um] e que saiu de lá, furioso, com um sapato na mão, para dar porrada no gajo com a bandeja. [parte-se a rir como se estivesse realmente a ver a cena]. Isto para dizer o quê?
Boa pergunta.
Ah, é verdade. Estávamos a falar do Peyroteo. Ele abandonou o futebol relativamente cedo, abriu uma loja desportiva na Rua Nova do Almada e eu tentava vê-lo sempre que passava por lá.
E viu-o?
Umas duas vezes. Ele lá estava, sempre porreiro.
E…
Espere lá, há mais do Peyroteo. Houve uma altura em que escrevia crónicas para o Independente. Até publiquei-as em livro. Já não sei se fui eu ou se foi o Vasco Pulido Valente que me disse ‘em vez de estares a escrever sobre cinema, porque não escreves sobre futebol?’. Boa ideia e comecei a comprar livros de futebol até ficar com uma biblioteca do caraças. Pensei ‘vou escrever sobre futebol para tentar aliciar as pessoas que têm aquela ideia dos 22 gajos a correr atrás da bola e não sei mais o quê’. Então, começava os artigos com uma história ligada à arte, citava Shakespeare, Blas de Otero, whatever, e depois metia o futebol para ver se os cativava. Aquilo correu muito bem e até passei a ser convidado para alguns programas de televisão.
Lembro-me bem.
Diverti-me imenso e provámos que os programas podem ser feitos só com cavalheiros. Podemos ser confessadamente adeptos de um clube e falar na boa sobre o futebol. Foi simpático, só que depois descambou. Ainda participei num programa da SIC chamado “Os Donos da Bola”. Coincidiu com o Vale e Azevedo e nunca me iludi com o Vale e Azevedo. Sou do Benfica, um clube sério, popular e democrático, que tinha eleições para eleger o presidente, e nunca protegido pelo regime, ao contrário do que quer fazer crer o Pinto da Costa. E, portanto, não me revia num presidente que decide rasgar contratos. Epá, ele até pode ter razão, mas que não rasgue os contratos e vá para tribunal. E, ainda por cima, rasgar contratos com um tipo que já pagou adiantado um ano. Tive vários problemas com o Vale e Azevedo.
Então?
Olhe, não podia ir à Luz e, nos programas da SIC, cheguei a ter perseguições de automóvel. Os gajos estavam à minha espera.
Na SIC?
Aqui, em casa. Daqui para a SIC, por duas vezes, eu arrancava, o gajo arrancava. O caminho todo.
Perseguições à filme?
Nãããão. Perseguições, só. Também recebi telefonemas e cartas a ameaçar e não sei quê. Depois fui para a RTP e o Benfica começou a ganhar. Aí, a coisa virou.
Porquê?
Só fui à bola com dois treinadores: Fernando Santos e Jorge Jesus.
E os outros?
Credo. Quer dizer, eu defendia o Fernando Santos e ele fez um milagre no Benfica. Ficou sem o Luisão em Paris [2-1 do PSG em 2007-08] e depois ficou sem o Simão e, mesmo assim, conseguiu disputar o campeonato até à última. Depois é corrido à primeira jornada da época seguinte para vir o Camacho. Epá, tinha uma simpatia humana pelo Camacho mas sempre o achei um treinador antiquado. Não era treinador para o Benfica. Aliás, entrei em colisão com o Benfica porque disse em directo que “o Camacho vai ser um desastre, vocês estão à espera do D. Sebastião e vai sair-vos o Sancho Pança”. Com o Quique Flores, passei a época inteira a arrasar. A partir do momento em que o Jesus chega, começo a defender o Benfica de todas as maneiras e feitios. Defendo o Vieira e defendo o Jesus. A partir daí, os meus colegas portista e sportinguista aliaram-se e perdeu-se o fair-play, o chá. Tornou-se uma coisa horrível. Acabei por ir-me embora. No momento em que o governo do Passos Coelho anunciou que ia privatizar a RTP, achei por bem anunciar que era o meu último programa. Isso foi previamente combinado e veio aquele tipo pá, do Porto [demora meio segundo a fazer reset à cabeça e voilà], o Júlio Machado Vaz. Perguntei-lhe: Se não te importas, fazes a passagem de testemunho na segunda parte. Assim foi. E até me saiu uma porreira: ‘pelo menos, durante esta meia-hora, vamos estar em igualdade.’ Onde é que íamos?
Na biblioteca futebolística do António.
Ah pois. Comecei a escrever crónicas sobre futebol e fiquei com uma biblioteca faz favor. Tenho dois livros geniais, ambos do Nélson Rodrigues, o “À sombra das chuteiras imortais”, uma variação do “À sombra das raparigas em flor”, de Proust, e o “A pátria das chuteiras”. São deliciosas crónicas de futebol de um gajo que gostava de futebol, que era do Fluminense, muito de direita e, ao mesmo tempo, um anarca. Depois há um terceiro livro, igualmente genial, do uruguaio Eduardo Galeano, chamado “Futebol, Sol e Sombra”. Mais um livro de pequenas crónicas, delicioso, delicioso. Um dia, fui a Londres falar com um argumentista adepto do Arsenal e estava a dizer-lhe que me tinha iniciado a escrever sobre futebol, só que tinha dificuldade em encontrar livros de futebol. Ele, espantado, levou-me a uma livraria em que havia uma sala só de futebol.
Imagino.
Claro, trouxe uma braçada de livros e um deles encheu-me as medidas: “The Best of times”, do George Best. Que, aliás, começa a falar precisamente sobre o Estádio da Luz, na noite em que ele marcou dois golos nos primeiros 11 minutos e o Manchester United ganhou 5-1. Ele conta que um adepto entrou em campo com uma tesoura para lhe cortar o cabelo à Beatle. Também conta que os adeptos do Benfica aplaudiram o Manchester United a entrar em campo porque pensavam que aqueles jogadores de vermelho eram do Benfica [nesse dia, o Benfica joga de branco]. Bom, comecei a ver que havia jogadores a escrever memórias e escrevi no Independente que era uma pena não haver livros deste calibre em Portugal. Então, recebo uma carta da viúva do Peyroteo a dizer “o senhor está a ser injusto porque o meu marido publicou as suas memórias”. Pedi-lhe imensas desculpas e perguntei-lhe onde se podia arranjar um exemplar. Ela indicou-me um sítio na Rua do Quelhas. Sabe onde é a Rua do Quelhas?
Huuuum, apanhou-me.
Ao lado da minha casa. Aquilo era um pavilhão enorme. Lá encontrei o livro e deliciei-me com a escrita, as histórias e os números. O Peyroteo tem toda a estatística pessoal, tanto jogos como golos. Seja em casa, fora, neutro. Aquilo é precioso. Sabe, é uma pena não haver imagens dos golos do Peyroteo. Estamos a falar do jogador com melhor média de golos no campeonato nacional a nível mundial e não há registos de imagens. É uma pena. A única imagem que vi dele é uma finta a um jogador do FC Porto no “Leão da Estrela”.
Onde é que o António Pedro está quando o Benfica é bicampeão europeu, em 1961 e 1962?
Tive um azar porque estou em Paris.
Azar?
Como não havia televisão, só soube dos resultados em diferido, digamos assim, através de telefonemas ou até dos jornais. Em Paris, os tugas eram os gajos da construção civil e os porteiros. Ainda por cima, para a classe mais instruída, éramos de um país fascista, atrasado e fechado. De repente, o Benfica ganha aquelas duas Taças dos Campeões e o nome de Portugal salta para a ribalta. As pessoas começaram a associar Portugal a Eusébio. É como agora associar Ronaldo a Portugal. O gajo [Eusébio] era um génio. Ele tinha uma coisa que poucos têm: ele estava ali para meter golos, para ganhar e sempre com um fair-play digno de registo. Ele tinha um arranque e uma corrida absolutamente geniais. A corrida com a bola controlada era uma coisa impressionante. Sabe quem também vi a correr assim?
Nem ideia.
Puskas. Vi-o também no Jamor, num 2-2 entre Portugal e Hungria. Ele a driblar e o Kocsis a cabecear, aquilo é que era uma equipa. A Hungria era um assombro. Mas, espere, estava a falar do Eusébio e tenho uma coisa engraçada para contar.
Diga lá, vá.
Quando o Eusébio morreu, escrevi um artigo sobre o facto de ele ter sido o primeiro jogador português da era da televisão, só que ainda não tinha interiorizado o facto de estar a ser filmado. Por exemplo, o Maradona é o primeiro gajo a saber que está a ser filmado. Até vou mais longe: ele mete o golo com a mão direita porque sabe que a câmara está no lado esquerdo. Sou fã dele, até dos seus excessos. E há um pormenor revelador da sua inteligência: é o golo à Grécia no Mundial-94, em que ele corre para a câmara. O gajo sabe onde está a câmara. Hoje, vê-se isso com quase todos os jogadores. Olhe o Ronaldo. Ele sabe perfeitamente que está a ser filmado e faz aquelas caretas e tal. Há até um filme curioso em que se filma o Zidane durante 90 minutos, só que o realizador esquece-se que estar em cima do Zidane tem dois erros de base: primeiro, um jogador tem a bola na sua posse uns dois minutos e isso quer dizer que os restantes 88 são uma seca; se filmasse o jogo de outra maneira, como as movimentações tácticas dos outros jogadores, ainda dava para perceber a dinâmica do jogo, mas não, ele só filma o Zidane; segundo, o Zidane sabia que estava a ser filmado e isso criou-lhe uma tensão que acabou por agredir um gajo e ser expulso.
É verdade, um Real Madrid-Villarreal.
Essa história da média do tempo de posse de bola em cada jogador é curiosa. Sou um admirador de Jesus, como treinador e homem. Não perdi um único jogo do Benfica com ele no banco e houve uma enorme ingratidão do Benfica, que o correu. Porque ele foi corrido, deixemo-nos de conversas. Não foi corrido directamente, mas o Vieira nunca lhe disse abertamente se o queria ou não o queria, enquanto o empurrava para o estrangeiro e não sei mais o quê. Por acaso, almocei com o Jesus no Solar dos Presuntos uns dias antes de se ir embora e ele dizia-me ‘por mim, ficava no Benfica, quero acabar a minha obra aqui mas, se ninguém me diz nada, ainda acabo a treinar o Tondela’. Quando percebeu que não o queriam mas não lhe diziam abertamente, e já estavam em negociações com o Rui Vitória, ele fez o seu caminho e assinou pelo Sporting. Isto tudo para dizer o quê?
Sim, o quê?
Eu tinha grandes conversas com o Jesus. Era com ele e com o Fernando Santos. Numa dessas conversas, há uma que revela muita coisa do génio de Jesus. As pessoas gozam muito com a forma como ele fala, mas ele próprio diz ‘epá, eu não sou o Eça de Queirós, eu tenho é de saber do futebol’. O Jesus é genial a pensar o futebol. Há pessoas que são muito boas naquilo que fazem e não precisam de um canudo. Uma vez, tivemos uma conversa em que ele estava indignado com os comentadores desportivos a criticar-lhe o modelo de jogo. Ele para mim: ‘Modelo jogo? Sistema de jogo? Não, eu tenho é uma ideia de jogo. Uma ideia. E, depois, tudo é em função disso. Você que faz filmes também tem uma ideia do filme.’ Exactamente, respondi-lhe. Tenho uma ideia do que vou contar, com todos os elementos presentes, entre actores, actrizes, cenários, guarda-roupa, etecetera. ‘Pois é’, dizia-me ele, ‘esses gajos não percebem nada, o 4-2-4 e não sei o quê’. Recupero a palavra e faço-lhe um breve questionário.
Então?
Começo por perguntar-lhe se sabe que o futebol e o cinema são a coisa mais parecida que há. E ele, atento, a tentar ver para onde eu ia. Primeiro, passa-se num rectângulo. Verdade ou mentira? Segundo, as vedetas são os jogadores e os actores. É por aí que as pessoas vibram. Depois, quem está por trás deles? Alguém os dirigiu, alguém lhes deu a táctica, não é? É o treinador e o realizador. Às vezes, o público nem se apercebe deles. Há ainda o presidente, que é o produtor. Se você não tiver em sintonia com ele, dá cabo do filme. A acabar, são 90 minutos. Tanto o futebol como o cinema, em regra, são 90 minutos. E antes, havia intervalo no cinema. Mais, um bom jogo tem suspense até ao fim. Como o quê? Um bom filme.
E o Jesus?
A conversa continuou e, não sei muito bem como, ele começa a contar-me como é que treinava e como é que via o futebol. Às tantas, diz-me ele ‘você sabe qual é a primeira pergunta que faço a um jogador? Sabes quanto tempo tens a bola em teu poder durante um jogo de futebol? E eles ‘não faço ideia, mister, uns 20 minutos.’ Nãããã, no máximo, dois minutos e meio. O Cardozo, uma vez, meteu três golos e não tocou na bola mais de um minuto.
E os jogadores?
Pois é isso que ia dizer. Eles perguntavam ‘como dois minutos e meio, no máximo?’ E o Jesus respondia-lhes: ‘É fácil, fazes as contas: dois minutos e meio vezes 22 dá quase uma hora, mais bolas fora, pontapés de baliza, lançamentos laterais, faltas, cantos e os tempos mortos.’ Os jogadores lá ficavam convencidos e perguntavam ‘mas, mister, porque é que me pergunta isso?’ Lá vinha o Jesus: ‘Ora isso era a pergunta que esperava que me fizesses: pergunto isso porque os outros 87 minutos e meio são mais importantes.’ Isto, desculpe lá, define-o com uma inteligência para aquilo. Eu vou explicar-te o que vais fazer nesses 87 minutos, porque tu tens talentos para rematar, avançar e driblar. Tens talento, agora tenho de te ensinar que isto é um jogo colectivo e tens saber o que deves fazer em cada momento do jogo. Estávamos a falar disto e lembro-me de lhe perguntar ‘ó Jesus, sabe quando rende em média um dia de filmagem? Dois minutos e meio.’
Uauuuuu.
Multiplique dois minutos e meio. Filmamos à volta de oito semana, que são 40 dias. Ora, 2,5 vezes 40 dá 100. Pouco mais de uma hora e meia.
Com descontos, portanto.
Está a ver? É fantástico. Isto vinha a propósito de quê?
Boa pergunta. Adiante, é do Benfica porquê?
Porque os meus amigos da tertúlia eram quase todos do Benfica. Começo a ser verdadeiramente do Benfica quando vou para Paris. A tal experiência das duas Taças dos Campeões faz-me ser do Benfica em definitivo. Quando volto a Lisboa, já sou daqueles que vai à Luz.
Então vê o Eusébio, Simões, Torres.
O Torres foi um jogador bom para mim.
Então?
Na altura em que ele apareceu, eu já media 1,94m e não havia muitos portugueses assim. Éramos muitos mais baixos que agora. Ainda por cima, eu era magríssimo. Foi, aliás, isso que me salvou da tropa.
Ai sim?
Fui às sortes.
Às sortes?
Chamava-me isso ir à inspecção militar. Antes, aceitavam-me baixos, altos, gordos, magros. Naquela altura, já não era bem assim. Havia o índice Quetelet, baseado no cientista belga Quetelet, que era a relação altura-peso. Se um gajo fosse gordo e baixo, não ia. Se fosse alto e magro, também não. E eu magríssimo. Lembro-me que as pessoas metiam-se comigo na rua a dizer ‘epá, não vou contigo aos figos’.
Aos figos?
Era uma expressão, os figos, as árvores [António Pedro continua sentado e faz o movimento da apanha do figo]. E não é que o Torres também tem 1,94m? Senti-me um bocadinho acompanhado pelo Torres.
E como era o Torres em campo?
Um pouco desconjuntado, mas era incrível. Vemos agora os jogos do Mundial-66 e percebemos que ele era muito mais que um ponta-de-lança. Não era um Jardel, que fica ali à frente da baliza. Não, ele interagia com a equipa.
Que mais jogos guarda na memória?
Há os relatos da rádio, os da televisão e ao vivo.
Um jogo emocionante pela rádio?
Um Benfica-Sporting em que o guarda-redes Azevedo fractura a clavícula ainda na primeira parte e, mesmo assim, joga até ao fim [a história é simples: é a última jornada do regional de Lisboa, em Novembro 1947, e ao Benfica basta-lhe o empate para se sagrar campeão enquanto o Sporting tem de ganhar; aos 40 minutos, com 1-0 a favor do Sporting, o guarda-redes Azevedo lesiona-se e, à falta de substituições permitidas por lei, cede o lugar de baliza a Jesus Correia, depois a Veríssimo; a meio da segunda parte, Azevedo vai a jogo, sofre o 1-1 e evita o 2-1 de Espírito Santo com um voo sensacional ao ângulo superior; o Sporting faz o 2-1 por Albano e ainda o 3-1 por Peyroteo; no final, Azevedo é levado em ombros pelos companheiros de equipa e é aplaudido pelos adeptos dos dois clubes]. Você nem imagina o relato. Eu parecia que estava lá dentro do campo, a ver tudo. O pormenor, a excitação, a emoção, tudo isto não me sai da memória. Lembra-se de ter dito que o Azevedo entrou no Jamor para ser saudado antes do Portugal-Espanha?
Sim, claro.
Foi na ressaca deste Benfica-Sporting. Quer outro jogo pela rádio?
Bora.
O Joaquim de Almeida ia ser homenageado no Festival de Huelva e convidou-me para lhe entregar o prémio. Quando vi que isso batia com o Benfica-Porto da final da Taça de Portugal 2004, disse-lhe que tinha de me arranjar um sítio para ver a bola. Lá fomos e vi o jogo a caminho de Huelva, num café. Só que houve prolongamento. Bem, meti-me no carro e ouvi o relato pela rádio. Quando abro a porta do carro para entrar no anfiteatro, grita-se goooooolo, o tal de cabeça de Simão. É o tal jogo que criou um bocado o mito Camacho.
Um jogo emocionante pela televisão?
Aquele 4-4 do Benfica em Leverkusen. O 5-3 de Portugal à Coreia no Mundial-66. Esta história até é engraçada: estava a filmar com uma equipa de ingleses ali no Tamariz e disse-lhes que só queria trabalhar até à hora do jogo. Como é claro, o filme arrastou-se um pouco mais e aí foi no Tamariz que soube do 1-0 da Coreia. Minutos depois, já a caminho daquele hotel, o Estoril-Sol, 2-0. Os ingleses, óbvio, metiam-se comigo como gente grande. Estou a entrar para o elevador do hotel e 3-0. Mas como é que é possível? Como é que Portugal dá três a toda a gente na fase de grupos, inclusive o bicampeão mundial Brasil, e agora está a perder 3-0. Quando chego ao quarto, Portugal inicia a recuperação. Um, dois, três, quatro, cinco. Acaba 5-3. Só vi os golos de Portugal. Grande dia.
[António Pedro levanta o dedo como que a pedir só mais um, só mais um]
A memória mais indelével é o 6-3 em Alvalade. Estava no Festival de Cannes e não havia RTP internacional. De todo. E agora? No dia seguinte ao jogo, tinha de estar em Cannes para uma projecção. O que fiz? Telefonei a uns amigos meus em Paris e pedi-lhes que vissem um sítio onde ver o dérbi. Eles encontraram a Rádio Alfa, que tinha uma antena que captava a RTP. Meti-me no avião para Paris e lá fui à Rádio Alfa. Chego à sala e sento-me com uma série de malta que desconhecia. De repente, 1-0 do Figo e apercebo-me que estava em clara minoria. Tudo aos saltos. Depois, é a noite do João Pinto.
Um jogo emocionante ao vivo?
Tantos, tantos. Um que nunca esquecerei: na Luz, com o cineasta alemão Werner Herzog. Ele estava em Lisboa e queria ver um jogo, então levei-o ao Benfica-Anderlecht.
A final da Taça UEFA em 1983?
Esse mesmo. Empatámos 1-1, mas perdemos a Taça UEFA. O estádio cheio, cheio, cheio. As noites europeias eram outra coisa, havia mais ambiente. Este novo estádio é mais confortável, sem dúvida, mas o outro era de uma imponência brutal. Aquilo era maravilhoso. Uma vez, trouxe um miúdo alentejano, benfiquista doido e filho de um caseiro onde passava os finais de ano com amigos e tal. Prometi-lhe que o levava à Luz e, um dia, levei-o mesmo. Nunca mais me vou esquecer quando entramos no estádio, pelo túnel, já com as luzes ligadas e os jogadores em aquecimento, o puto ficou parado. As pessoas passavam por ele, davam-lhe cada pantufada e ele estava ali parado, só a soltar ahhh, ahhh, ahhh. A Luz era uma coisa divinal.
E ir a Alvalade ou às Antas?
A Alvalade, fui. Só que a partir do momento em que comecei a ser conhecido, deixei de ir. Às Antas, nunca fui. Nem ao Dragão.
Era barato ir à bola?
Epá, a paixão era tão grande que nem me lembro se era barato ou não.
Ia sozinho?
Ao futebol, devemos ir sempre acompanhados. Tinha muitas tertúlias, a malta do cinema era quase toda benfiquista, como Fernando Lopes, João César Monteiro, Fonseca e Costa, mas não era muito de ir ao estádio. Geralmente, íamos de transportes públicos. A partir de uma certa altura, comecei a ir de carro. Era o único com carro, aliás.
Qual?
Um Citroën boca de sapo, comprado em segunda mão, que me durou 40-e-tal quilómetros.
Só?
Pifou. Depois tive um Volkswagen, um Peugeot 404 descapotável, um dois Cavalos, um 4L, os primeiros Hondas. Mais tarde, um Audi. Agora tenho um Jaguar X-Type 2.0.
Sempre teve paixões por carros?
Não sou um daqueles gajos cuidadosos com o carro, mas gosto de ter um carro. Por exemplo, um carro que sempre desejei e nunca o tive: o Alfa Romeo que entrou no “Lugar do Morto”. Ou um Porsche que meti no meu primeiro filme.
Há jogadores de futebol na sua família?
Tenho um neto que tem um jeito enorme para ser guarda-redes. Aliás, fez um estágio com o Benfica e até ganhou um prémio. Só que ele não vai ter a minha altura, é pena. A adoração dele era o Oblak.
Por falar em guarda-redes, qual o seu preferido do Benfica?
Bento ou Preud’homme, fico sempre indeciso. Voto no Bento, o melhor guarda-redes abaixo dos 1,75 m de sempre.
E lateral-direito?
Sabe uma coisa? Naquelas conversas com o Jesus, ainda ele era treinador do Benfica, perguntei-lhe ‘então como é que é para o ano e tal?’ E ele nem esperou pelo final da frase: ‘Está lá um miúdo que se o Benfica o souber segurar, nunca mais terá problemas durante mais de 15 anos: é o Nélson Semedo’. Vi muitos, como Veloso, Ângelo, Artur e o Nélson Semedo é o mais impressionante de todos. É franzino e inteligente, sem ser maluco. Tem disciplina táctica.
E…
Centrais? Luisão, Mozer, Humberto Coelho, Ricardo Gomes. Há o David Luiz, que é especial porque subia, subia, subia. Nunca mais me esqueço de um PSG-Benfica para a Taça UEFA. O Luisão lesiona-se e o Fernando Santos faz entrar o David Luiz para jogar ao lado do Anderson. Curiosamente, na sequência da falta que lesiona o Luisão, é o 1-1 do Pauleta. Adiante. Nos minutos seguintes, é vê-lo [ao Fernando Santos] a gritar e esbracejar junto à linha para dizer ao David Luiz para jogar à esquerda e não à direita. É a estreia do David Luiz. Há muitos centrais dos bons. Está a custar deixar-me o Mozer de fora. Tem a ver com os pés e também com o sentido posicional. Há um central que é o pivot e há outro mais móvel, é como os pontas-de-lança.
Na esquerda?
Coentrão. Há uma época em que os defesas deixam de ser defesas e passam a ser laterais. É o Roberto Carlos quem lidera esse movimento. Veja uma coisa: a qualidade dos jogadores não mudou muito com o avançar do tempo, o que mudou foi a atitude. Chegou com o futebol total da Holanda dos anos 70 em que não há momentos defensivos nem ofensivos, há momentos de jogo. Antes, o defesa era fixo e atirava a bola lá para a frente. Agora, não. O Coentrão é o expoente máximo. Também havia o Schwarz, por exemplo.
No meio-campo?
Tenho medo de me esquecer de alguém. O Rui Costa foi um prodígio. Há o senhor Coluna.
E o Valdo?
O Valdo era genial. Aliás, tenho uma camisola dele da selecção brasileira, oferecida pelo próprio Valdo.
A propósito de quê?
Se bem me lembro, foi a SIC que me fez um programa-surpresa no dia em que fazia anos e havia convidados, um deles era o Valdo. Adorava-o, era um falso lento. Tinha um controlo de bola verdadeiramente sensacional.
No ataque?
José Augusto, Eusébio e Simões. É quase impossível tirá-los. Houve o Simão, um jogador precioso. O JVP, outro. O Nené, mais um.
Então e o Chalana?
[António Pedro Vasconcelos começa a rir-se e a mexer os dois braços como se estivesse a afogar] Ele fazia assim e os adversários caíam. A Luz vibrava como nunca. Quase na mesma época, houve um outro jogador assim, daqueles que levantava o estádio: o Futre. Esse também era um quebra-cabeças para qualquer defesa. Ainda me lembro bem dele no Benfica, naquela final da Taça com o Boavista. Ganhámos 5-2 e ele fez uma exibição divinal. Marcou, assistiu, arrancou um penálti. Que dia. Fui ao Jamor nessa tarde. O Benfica era uma equipa dos diabos: Futre, Rui Águas, Paulo Sousa, Rui Costa, Paneira, Schwarz, Isaías, Mozer, Veloso.
O António deve ter visto grandes equipas.
Siiiim. Os Cinco Violinos, reforço. O Porto do Artur Jorge, campeão europeu em 1987. A história da final com o Bayern é engraçada. Tinha de filmar umas cenas em Madrid e disse-lhes que só ia com a condição de ir ver o jogo. Arranjaram-me um lugar na Embaixada de Portugal e aquilo foi uma experiência magnífica: os gajos da TVE estavam a puxar pelo Porto, porque o Real Madrid tinha sido eliminado pelo Bayern. Na primeira parte, estávamos a perder 1-0 e os comentários do locutor eram assim ‘a equipa portuguesa es muy inferior, va a ser una final tranquila para el Bayern’. Bem, na segunda parte, quando o Madjer marca aquele golo de calcanhar e oferece o 2-1 ao Juary, o registo dos comentários mudou significativamente e aí já se exultava a superioridade do futebol ibérico. Já viu estes gajos? Tramados. Superioridade ibérica, vejam bem. É o jogo que promove o Futre, a caminho do Atlético Madrid. No dia seguinte a essa final, ainda estava eu em Madrid, lembro-me das manchetes dos jornais espanhóis a falar do Futre como o novo Maradona.
O Porto sempre deu grandes jogadores.
Claro, claro que sim. Começo pelo Araújo, aquele que vi marcar dois golos à Espanha no tal particular no Jamor. Era um goleador insaciável. O Hernâni, conhecido como o furacão de Águeda, era fantástico, entusiasmava-me vê-lo jogar a serpentear os defesas com distinção. O Pavão também era incrível, digo-lhe. Tinha uma serenidade no jogo fora do comum. E há o Seninho. Vi-o uma vez, a marcar dois golos em Old Trafford ao Manchester United, e fiquei deslumbrado. O Oliveira, outro bom jogador. Bom, não; caprichoso. Se lhe apetecesse mostrar que era bom, superava-se. E há aquele Porto do Pedroto, o da final da Taça das Taças com a Juventus. Que jogaço. O Porto elevou bem alto o nome de Portugal.
[eis se não quando aparece António Barreto, acompanhado pela mulher Maria Filomena Mónica, ambos com o ar mais plácido deste mundo: ‘ò António, estava a ver-te a esbracejar ao longe e a pensar ou está a falar do Benfica ou da Revolução’; é mesmo um clássico, um portuense meter-se com um benfiquista]