Primeiro Carvalho, depois Dani

Mais Stop The Press 12/21/2020
Tovar FC

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Primeiro Carvalho, depois Dani

A Inglaterra é um país sui generis. No que a tudo diz respeito. Isolados do resto da Europa, numa ilha com ligação à França através do Canal da Mancha, os ingleses não trocaram a £ pelo €. Conduzem à direita. Comem fish and chips. Bebem pints a torto e a direito (mais a torto que a direito). São os autores das melhores séries cómicas de sempre (Sim sr. Ministro, Monty Phyton, Allo Allo, Mr. Bean, The Office). E julgam-se os melhores do mundo. No futebol, essa também é uma verdade absoluta. Afinal, foram eles que inventaram as 14 regras do jogo, em  1855.

E também foram eles que estrearam as camisolas numeradas, num jogo de campeonato entre Sheffield Wednesday (de 1 a 11) e Arsenal (de 12 a 22), em 1928. A FIFA só adaptou os números nas camisolas no Mundial-54, na Suíça. Quatro anos mais tarde, no Mundial da Suécia, a delegação brasileira esqueceu-se de enviar a numeração e foi um uruguaio da FIFA quem definiu os números de 1 a 22. Por qualquer capricho do destino, o 10 foi atribuído a Pelé, então um menino de 17 anos com algum jeito para a bola mas que geralmente até vestia o 9, no Santos e na selecção brasileira. Nesse Mundial da Suécia, Pelé estreou-se apenas no terceiro jogo, com a URSS, e atirou à trave logo aos dois minutos. Depois, bem depois, foram seis golos em três jogos, desde os quartos-de-final à consagração final (um ao País de Gales, três à França e dois à Suécia). O Rei Gustavo da Suécia é que tinha razão: “Este menino vai ser o rei do futebol.” Pelé com o número 10.

A partir daí, o fetiche dos números ganhou proporções inacreditáveis. Nos EUA, por exemplo, basta uma lenda do desporto retirar-se para o número desaparecer de circulação, como o 3 de Babe Ruth nos NY Yankees (basebol), o 33 de Larry Bird nos Celtics (basquetebol), o 16 de Joe Montana nos San Francisco 49ers (futebol americano) ou o 99 de Wayne Gretzky (hóquei sobre o gelo). O futebol não se agarra a essa moda tão yankee e o marketing não dita as leis de forma tão ditatorial.

Tanto assim é que o 14 do lendário Johan Cruijff no Ajax já foi de Dani. Esse mesmo, aquele português cuja carreira futebolística se podia assemelhar a um monitor de batimento cardíaco, pela quantidade de altos e baixos. Deslumbrou-nos (a nós portugueses, a nós amantes do futebol, a nós cidadãos do mundo) em 1995, no Mundial do Qatar sub-20, deixou-nos de boca aberta quando anunciou o adeus ao futebol, aos 27 anos de idade. Podíamos estar aqui a escrever páginas e mais páginas sobre ele. Ele, Dani. Não, não o outro de que também se fala, o das passagens de modelo, o das noitadas. Desse, não há vídeos, nem referências, só conversa de taberna. Falo do Dani futebolista. Aquele que, uma vez, pegou na bola do meio-campo e aí fintou logo dois argentinos junto à linha lateral, depois mais um, a seguir outro, até que lhe apareceu o guarda-redes e tocou-lhe por entre as pernas. Não é Maradona (este fintou seis ingleses), mas é Dani. Marca registada.

Foi em Abril de 1995, em pleno Mundial sub-20, de boa memória para Portugal, que acabou em terceiro lugar. Como dizem os brasileiros, a Dani só lhe faltou fazer chover. Além do título de segundo melhor marcador da prova (Bota de Prata), foi eleito o segundo melhor jogador (Bota de Ouro), atrás de um obscuro Caio, brasileiro que nunca se conseguiu impor no futebol europeu. A Dani, podem queixar-se de muitas coisas, de exibições apagadas, de golos falhados, de expulsões absurdas, como aquela no Rapid Viena-Sporting, precisamente no dia do seu 19.º aniversário. Podem, e devem. Mas, se virarem o disco ao contrário, também podem ver o lado B, o lado bom. Os dois golos de cabeça ao Rangers (4-1 para o Ajax) na sua estreia na Liga dos Campeões, lançado por Van Gaal. A explosão de alegria por decidir um dérbi londrino entre Tottenham e West Ham (0-1). O orgulho de ter sido campeão espanhol da 2.ª divisão, treinado por Luis Aragonés, esse decano do futebol que deu o título europeu à Espanha em 2008. A fantástica oportunidade de ter sido aposta de José Mourinho no Benfica. E aquele golo de 30 metros no Atlético Madrid-Ajax, também para a Liga dos Campeões, ainda hoje no top 10 dos melhores de sempre do Ajax, entre uns de Van Basten e outros de Cruijff.

E foi este que, espantado com a sua técnica, o seu ritmo e o seu estilo, lhe deu autorização para vestir a camisola 14 na segunda época de Dani em Amesterdão (leu bem, sim senhor, autorização; porque isto dos mestres é coisa séria e respeitável). Na primeira, era o 21, com Carvalho escrito nas costas. Seja como for, Daniel da Cruz Carvalho (isto dito pelos holandeses tem muito mais piada do que imagina e até nos arrepia) tem o seu lugar na história. Nas passarelas do futebol. A este, o Rei Gustavo da Suécia podia sussurrar-lhe o que quisesse. Dani iria ouvir e continuar o mesmo. Aos altos e baixos. É a sua marca registada.

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