Carlos Manuel. ‘Sete finais, sete Taças de Portugal. Não espalhes, se não ainda me chamam papataças e isso cai mal’

Mais You Talkin' To Me? 12/26/2020
Tovar FC

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Carlos Manuel. ‘Sete finais, sete Taças de Portugal. Não espalhes, se não ainda me chamam papataças e isso cai mal’

Quem não se lembra daquele golo à RFA que garante a Portugal um lugar no Mundial-86? Ou daquele à Polónia que nos permite sonhar com a qualificação para o Euro 84? Ou daquele à Inglaterra no arranque do Mundial-86? Pois bem, Carlos Manuel faz isso e muito mais. Pela selecção e não só. Ei-lo no seu melhor.

Boa noite, Carlos, daqui Rui Miguel Tovar, do jornal i. Tudo bem?

Sempre bem, obrigado, Rui. E por aí?

Tudo bem. Quando se fala no Carlos Manuel fala-se daquele golo à RFA.

Xiii, esse golo de Estugarda faz parte da memória de muita gente. Ainda hoje as pessoas da minha terra [Moita] me falam dele porque o viveram lá mesmo, no estádio, e depois foram ter comigo ao hotel. Para onde vá, falam-me desse golo. Se não me engano, foi a primeira derrota da RFA em casa nas qualificações para o Mundial.

É verdade, e depois disso só perderam uma vez, em 2001, com a Inglaterra: 5-1, hat-trick do Owen.

E a seguir a este telefonema vais falar com o Owen, é? [E parte-se a rir…]

Estava mais a pensar em ir jantar.

Eu também, eu também. Vamos lá, o golo da RFA.

Nããããão, esse eu já conheço.

Então?

Então digo eu, não tem outro golo tão interessante como esse ou mais?

[Resposta imediata] Tenho, sim. E nunca mais o vi, só no “Domingo Desportivo” daquele dia [4 Maio 1980]. Meias-finais da Taça de Portugal, na Póvoa. Uma jogada a três toques entre Bento, Toni e eu. É um contra-ataque, porque apanhámos o Varzim todo lá na frente. Na bola do Toni, eu estou a ir por um lado e o guarda-redes pelo outro.

Ui, isto promete.

[Gargalhadas] Chego mais cedo que ele por menos de um segundo e adianto a bola. Quando esta vai a sair pela linha de fundo, reparo pelo canto do olho que qualquer companheiro meu está longe de mais para fazer o golo, então foi de trivela. A bola entrou muito devagar e ficou pouco depois da linha de golo. A corrida foi tal que ainda bati no muro. Faço aqui um apelo: quem tiver esse golo gravado, diga-me. Quero esse golo para mim.

Ai é daqueles que guardam tudo?

Euuuuu? Era bom era. Nãããããã, não sou nada agarrado a isso, mas esse golo ao Varzim é o meu melhor [mais gargalhadas, isto está a tornar-se monótono]. Dou- -lhe um exemplo: só tenho uma camisola comigo e está tão bem escondida, tão bem escondida, tão escondida cá em casa que nem sei onde está. Nem quero saber. Sei que está aqui e isso chega-me.

Qual é o tesouro?

Ó Rui, não vais acreditar em mim: é a camisola 16 do Nápoles do Maradona.

A 16?

Isso mesmo. Lembras-te do Sporting-Nápoles para a Taça UEFA em 1989?

Yup.

Em Alvalade, na primeira mão, o Maradona é suplente e entra só na segunda parte com a 16. Já estou eu a descer as escadas para o balneário e a dar entrevistas para as rádios quando alguém me toca no ombro. Viro-me e é Ele, o Maradona. Queria trocar de camisolas. Era hábito dele, fazia isso com todos os capitães, e eu era o do Sporting.

Essa eliminatória é aquela resolvida nos penáltis lá em Nápoles?

Isso mesmo. Lá o Maradona recebeu-nos no Estádio San Paolo a perguntar se precisávamos de alguma coisa, se estava tudo bem. Isso é coisa de dirigente mas foi ele quem nos recebeu à porta do estádio e mostrou-nos os corredores e os balneários.

O Ivkovic defendeu o penálti do Maradona, não foi?

Era aí que queria chegar. Houve a tal aposta de 100 dólares e ele bate-nos à porta do balneário para pagar a aposta ao “Ivo”.

Isso é uma história do arco da velha. Com que então o Carlos Manuel, formado no Benfica, é capitão no Sporting?

[Oh oh, gargalhadas] Fomos a votos e ganhei. Sou muito popular [Alguém o pára, se faz favor?].

Do que se lembra desse Sporting?

Do presidente Jorge Gonçalves, que esteve sempre connosco, nada a apontar, e dos treinadores: o Manuel José, o Vítor [Damas], o Fernando Mendes, o Pedro Rocha. Apanhei uma fase conturbada do Sporting, com problemas de dinheiro e algumas mudanças de treinador.

E jogou pelo Sporting na Luz?

Uiiiii, então não? Perdemos 2-0 [Magnusson e Pacheco em Dezembro 1988] e fui constantemente assobiado.

E?

São assobios que se traduzem em respeito e admiração.

Na Luz foram muitos e bons anos.

Foi uma belíssima aventura. Dividi balneário com grande, grandes jogadores: Bento, Humberto, Shéu, Alves, Nené, Chalana, Toni, Diamantino… Podia estar aqui horas e horas a citá-los que ainda me esquecia de um ou outro. A equipa era de sonho: ganhámos quatro campeonatos, seis Taças e duas Supertaças. Em nove anos, e com o FC Porto em crescendo tanto aqui como na Europa, não está nada mau.

Lembra-se da estreia na Luz?

Perfeitamente, porque há uma história.

Conte lá isso. Sem se rir, se faz favor. [Pronto, estragámos tudo.]

Foi um Benfica-Boavista e estava 0-0 à meia hora. Antigamente, o pessoal impacientava-se rapidamente com a falta dos golos e de futebol. Eu até estava a jogar bem, tudo a correr-me às mil maravilhas, mas o capitão [Mário Wilson] substitui-me pelo Cavungi para passarmos do 4-4-2 para o 4-3-3. Bem, o capitão levou uma assobiadela tremenda. Ainda hoje falamos disso quando nos encontramos. Eu puxo conversa e ele lá se explica à sua maneira. Se tivéssemos ganho, ninguém se lembrava disto. A questão é que perdemos, 2-1. No dia seguinte apelidaram-me de menino querido do 3.º anel e nunca mais saí da equipa.

Sempre, sempre?

Sempre.

E mais histórias?

Mais?

Vá, vamos afunilar isto só para dérbis. Grandes golos ao Sporting, algum?

Lembro-me de dois. Ambos na Taça, se não me engano. Um em Alvalade, com o Katzirz na baliza. Um canto do Chalana da direita, alguém afasta de cabeça para bem fora da área e apanho a bola a jeito com o pé direito. Pummmm, foi ao cantinho. O Katzirz nem se mexeu, mas, atenção, perdemos esse jogo 2-1 e eu fui expulso, juntamente com o Zezinho. Uma falta dura, perto da área do Sporting, e eu respondi-lhe. Vermelho e vermelho, caso resolvido.

Há um outro jogo em que marco de canto directo. Eheheheh, acho que era o Fidalgo na baliza. E ainda um outro que marco de cabeça. Pois é, agora está tudo a aparecer na minha cabeça. Esse de cabeça foi num canto. O guarda-redes, acho que o Vaz, soca para a entrada da área na minha direcção e pronto.

Katzirz, Fidalgo e Vaz. Nenhum ao Damas, portanto?

Ao Vítor, ao Vítor [está a fazer contas de cabeça], ao Vítor lembro-me de um em Portimão, um Portimonense-Benfica. Penúltima ou antepenúltima jornada do campeonato… Antepenúltima, de certeza. Ganhámos 1-0 e fomos campeões nesse dia. O golo foi meu, muito perto do fim. E sei que foi antepenúltima porque a penúltima foi a festa do título, com o Sporting, na Luz. Ganhámos 1-0, golo do Chalana. Nesse dia, o Bento falhou um penálti e defendeu outro, do Jordão.

Só alegrias, estou a ver. E o 7-1?

Brrrrrrrr, foi um dia inesquecível, daqueles para esquecer. Não foi um jogo normal, não foi um resultado normal.

Foi duro no balneário?

No balneário, claro, mas imagina o que é chegar de autocarro à Luz e ver aqueles adeptos todos indignados. E naquela altura não havia cá garagens, era passar pelo meio das pessoas. No dia seguinte, segunda-feira, descanso. Na terça-feira, treino, muita conversa e alguns caldos.

Caldos?

É a melhor terapia de grupo, além da conversa, como é lógico. Falámos, falámos e falámos, corrigimos erros nossos e dos outros, dá-se uns caldos e tudo resolvido. Só para veres: nunca mais perdemos para o campeonato, fomos campeões no jogo com o Sporting, 2-1 acho…, e ganhámos a Taça de Portugal ao Sporting no Jamor. Que época.

Essa é a final do Diamantino?

Xiiii, o Diamantino. O Diamantino era um génio da bola e nesse dia deu um show à parte. Um golo de livre directo e outro de jogada individual após passar por dois defesas com um só toque, o de meter a bola por um lado e ir buscá-la pelo outro. Que tarde magnífica… Sabes que o Diamantino chega ao Benfica em 1977 e só começa a jogar em 1982? Penou muito, mas era um génio e isso também dá para ver a qualidade do plantel do Benfica. Na altura em que ele chegou, era Alves, Toni, Shéu, Pietra e Chalana. Muita muita muita qualidade. O Diamantino esperou e atacou na altura certa. Já merecia uma oportunidade e agarrou-a. Essa final da Taça em 1987 prova-o indiscutivelmente. Que golos!

Ainda Benfica-Sporting, há aquele 2-1 na Luz em 1986.

Qual, o que nos tira o campeonato?

Esse mesmo.

Esse é diferente do 7-1, sabes? No 7-1, saiu-nos tudo mal. Nesse 2-1, jogámos bem mas o Sporting foi superior. Jogou de forma competente, meteu-se à frente por dois golos [Morato e Manuel Fernandes], ainda fomos atrás, reduzimos [Maniche] e foi só. Uma pena, mas atenção: aquele Porto que ganha em Setúbal com um golo do Paulo [Futre] com o pé direito e aproveita o nosso deslize é de campeões. Hãããããããããã, isso era uma equipa de luxo.

Pois, não é por acaso que ganha a Taça dos Campeões do ano seguinte.

Exactamente. E nós ajudámos [olha as gargalhadas… há quanto tempo, hein?!].

Esses jogos com o Porto também deviam ser frescos.

É daqueles que sonhava jogar. João Pinto, Lima Pereira, Eurico, Inácio, Eduardo Luís, Jaime Magalhães, Jaime Pacheco, Gomes, Futre, Madjer, Frasco, André. Jogar contra eles era puxar pelo nosso melhor. No seu ambiente, então, mais engraçado ainda.

Engraçado?

Há uma final da Taça de Portugal [1983], que ganhamos nas Antas: 1-0, golo meu ao Zé [Beto]. Que memória. Ganhar uma final no campo do rival é uma sensação indescritível, incomparável.

E há outra: uma, duas, três [lá vem ele com as contas de cabeça] Das seis Taças de Portugal pelo Benfica, quatro são com o Porto, uma com o Belenenses e outras com o Sporting.

Quatro ao Porto, quatro?

E lembro-me de todas: 1-0 do César no meu primeiro ano (1979/80), 3-1 com autogolo de Veloso e hat-trick do Nené na época seguinte, o tal 1-0 meu nas Antas em 1983 e ainda um 3-1 em 1985 com bis do Manniche.

De seis, quatro ao Porto? Quatro? Há jogadores que nem ganharem quatro Taças, quanto mais quatro ao Porto.

Pois, naquela altura, éramos jeitosos com a bola no pé e tínhamos cá uma força. Éramos uma família dentro e fora do campo e isso traz resultados óbvios. Mas, olha, vou dizer-te uma coisa: ganhei mais uma Taça de Portugal, pelo Boavista, em 1992. Sabes com quem?

Nããããããããã, não pode ser.

É isso, ao FC Porto. Só não sei se joguei, se entrei ou se nem isso [é suplente não utilizado numa final com golos de Marlon Brandão, Jaime Magalhães e Ricky].

Como, não sabe se jogou uma final da Taça entre Porto e Boavista? Lembra-se de tudo do Benfica e disto…

Não sei bem explicar porquê, mas não me lembro desse dia. A equipa era já um Boavistão, com Alfredo, Barny, Casaca, Bobó, João Pinto, Ricky, Marlon, Samuel, Fernando Mendes.

Sete finais, sete Taças.

Não espalhes, se não ainda me chamam papataças e isso cai mal. Deixa lá isso. Sete Taças e ponto.

E por pouco não tem uma Taça UEFA.

Esse dia também há-de perdurar. Pelo empate, sim, e também pela conquista do Anderlecht mas sobretudo pela adesão popular. A Luz encheu-se magnificamente, aquilo foi um espectáculo que só visto, com hino e tudo. Que arrepios. E depois o Anderlecht era uma equipa fantástica, formidável. Dois ou três dos jogadores foram para Itália e Espanha.

E o capitão era o Vercauteren.

Claro que sim, lembro-me perfeitamente. Outro génio. Na primeira mão, em Bruxelas, perdemos 1-0. Não me lembro do autor do golo, vê lá bem, só sei que o cruzamento foi do Vercauteren e de trivela. Uma classe tremenda.

Mas ó Rui, aquele Anderlecht é a base da extraordinária selecção belga dos Mundiais-82 e 86. É uma equipa de sonho e nós fizemos o nosso melhor jogo da campanha europeia em Bruxelas. Não merecíamos ter saído de lá com uma derrota.

E as exibições em Sevilha (Betis) e Roma (Roma)?

Também foram boas, sem dúvida, mas garanto-te que a de Bruxelas conseguiu ser ainda ligeiramente superior.

O treinador desse Benfica…

Eriksson. Fantástico. Treinos com bola, nada de estágios no hotel nos jogos em casa. Passou-nos total responsabilidade e nós respondemos bem com um quase triplete. Ganhámos campeonato e Taça de Portugal, só faltou essa Taça UEFA.

Em Portugal o Benfica era rei e senhor. Na Europa era mais difícil?

Naturalmente.

As outras equipas eram mais fortes?

Também, mas não só. Vamos por partes. Se até ao 25 de Abril a informação exterior não nos chegava, nos anos seguintes também não. Demorou-se muito tempo até um de nós poder estudar o adversário e receber informação disto ou daquilo. As grandes equipas alemãs, inglesas e soviéticas tinham uma ciência de treino que nós nem sequer imaginávamos. Estavam muito à frente, além de serem quase todos uns autênticos muros, todos grandes, musculados e prontos para o confronto físico. Nós sempre nos fizemos valer pela criatividade, aí ninguém nos batia. Sempre foi assim e ainda agora é. Somos criativos, queremos sempre fazer um truque qualquer, estamos sempre prontos para o gesto técnico. Já agora, o meu aplauso a todos os treinadores portugueses que levaram as nossas equipas até bem longe na Europa. E porquê? Porque essas equipas eram uma família e o treinador era o nosso pai. Só essa relação de amizade, respeito e admiração podia levar-nos a fazer tudo e mais alguma coisa. Uns pelos outros, quero dizer. Chegávamos longe porque os filhos seguiam o pai.

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