Great Scott #193: Quem é o primeiro estrangeiro da 1.ª divisão numa caderneta do Mundial?
Yazalde
Yazalde vive o sonho nunca sonhado. Em três anos de Independiente, marca 72 golos em 113 jogos. É o melhor marcador do campeonato argentino e é campeão nacional em 1970. É um ano sui generis. A federação argentina altera as regras para dar mais emoção. Posto isto, se duas ou mais equipas estiverem empatadas na classificação, o factor de desempate é o número de golos marcados – em vez da diferença de golos. É o fim da picada. Há dois candidatos. River e Independiente, juntos até ao último instante. Pois bem, última jornada. Na sexta-feira, o River dá 6-0 ao Unión, penúltimo classificado. Quer isso dizer que o Independiente tem de marcar três golos ao arqui-rival Racing. O dérbi está marcado para domingo, só que uma tempestade do outro mundo obriga ao adiamento por 24 horas. O sofrimento é imenso.
Aquela segunda-feira, dia 27 Julho 1970, é histórica. Há dois estádios completamente a abarrotar. O do Racing, por razões óbvias. E o do River, onde os adeptos se juntam para ouvir o relato de José Maria Muñoz. Que maravilha, que tempos. Aos nove minutos, 1-0 para o Racing, golo de Benítez. Aos 21′, penálti para o Independiente. Avança Tirabini, defende Cejas. Alegria monumental. Os adeptos do River saltam de contentamento e nem ouvem a informação seguinte: “Dellacasa manda repetir, por adiantamento de Cejas”. Verdade seja dita, Dellacasa é conhecido por ser um árbitro rígido no que toca às regras. E é capaz de expulsar um jogador do River ou do Boca como das equipas de classe média-baixa. Tirabini tenta outra vez, Cejas defende novamente. A explosão é imensa para os lados do River. Pois que Dellacasa manda repetir de novo. Cejas mexe-se antes da bola partir e vê o cartão amarelo. À terceira, sim, Tirabini faz o empate.
Siga a marinha. Antes do intervalo, Perfumo adianta o Racing aos 33′ e Maglioni empata aos 37. Na segunda parte, já com os adeptos do River sem esperança num milagre, eis que aparece a figura de Yazalde. A jogada pertence à dupla Pavoni e Pastoriza. Os dois trocam a bola como senhores doutores e o passe para a direita é primoroso. Aparece Yazalde de rompante, pára no peito e atira uma bola indefensável com o pé esquerdo, sem hipótese para Cejas. É o golo de uma vida. Chirola elevado a rei. Ou não fosse eleito o melhor jogador desse campeonato. Nada mais justo.
Melhor é impossível. Ou talvez não, ainda falta a selecção. Contabilizada a primeira internacionalização e com o Mundial-74 no horizonte, o futuro de Chirola é cada vez mais risonho. E se se aventurasse no estrangeiro? Os interessados fazem fila. Há-os de todos os países, entre Espanha (Valencia), França (Lyon), Brasil (Santos), Uruguai (Nacional Montevideo) e Argentina (Boca Juniors).
De repente, Portugal. É o Sporting a dar um ar da sua graça. É o dirigente Abrãao Sorín quem desmarca as férias em São Paulo e desembarca em Buenos Aires para negociar pessoalmente o contrato com o fora-de-série. A oferta de 4200 contos é irrecusável, só que o Independiente torce o nariz a algumas nuances do contrato, sobretudo os 20% pedidos por Yalzade. Um toque aqui, outro ali e o negócio faz-se finalmente por 3500 contos.
Com o dinheiro, Yazalde manda construir uma vivenda no centro de Buenos Aires para os pais e só depois de escolhido o local da empreitada é que viaja para Lisboa, onde chega a 11 de Fevereiro de 1971, na ressaca da vitória da Tonicha com o tema “Menina”, de Ary dos Santos, no Festival da Canção, e do primeiro jogo do Benfica nos Açores (12-0 ao Santa Clara, com seis golos de Torres e cinco de Raúl Águas. O assunto é amplamente noticiado. Aos jornalistas portugueses à sua espera no Aeroporto da Portela, diz-se sentir cheio de confiança. “Quero marcar uma época no futebol português.”
Errrr, mais que isso até. Na estreia oficial, demora um, dois, três, quatro, cinco, seis minutos a encontrar o caminho da baliza. Pobre Boavista (4-1). Antes do intervalo, 2-0 de Yazalde. O futuro está mais que garantido. Três dias depois, a estreia europeia corre-lhe às mil maravilhas com um golo aos noruegueses do Lyn, em Alvalade (4-0), para a Taça das Taças. A semana acaba com um 2-1 no D. Manoel de Melo, casa do Barreirense. Adivinhe lá quem assina o resultado final? Ah pois é. Chirola está em todas. Até ao fim do ano de 1971, Yazalde contabiliza mais oito golos, três dos quais em Santo Tirso na ressaca do Natal (5-3). De repente, stop. O corpo pede descanso, os golos desaparecem. Janeiro, zero. Fevereiro, zero. Março, zero. Abril, zero. Só se salva Maio, com um festejo na Luz (derrota por 2-1).
Calma, o homem não está desinspirado, está é enamorado. Por uma actriz de revista chamada Carmen. “Quem me apresentou ao Chirola foi o Camilo. Um dia, estava a entrar no Drugstore Tutti Mundi na Avenida de Roma com uma amiga minha e vejo um homem forte com a Conchita Velasco [actriz/bailarina/diva espanhola], no outro lado da rua. Eles moravam no mesmo prédio, em cima do drugstore: ele no 3.º, ela no 1.º. O Chirola impressionou-me logo, tinha uma cara de índio. Quando cheguei ao drugstore com a minha amiga, encontrei-me com os outros actores de revista, porque almoçávamos todos os sábados e domingos. Um desses actores era o Camilo de Oliveira, um sportinguista enfermo. Perguntei-lhe quem era ele e o Camilo disse-me tudo, menos o tamanho do pé, jajajaja.” E depois? “Fiz um anúncio publicitário no Guincho e o Chirola apareceu lá. Por magia, supongo. A partir daí, nunca mais me tirou os olhos de mim. Nem eu dele. Ele ia ver as peças de teatro e ficava na primeira fila.”
Enquanto a relação avança, Yazalde conquista ainda mais os adeptos do Sporting com uma série de golos. Ao todo, 12 na primeira volta. Mérito maiúsculo, um nas Antas (1-0) e outro na Luz (1-4). Quando o ano vira, o seu encanto desaparece. É comum acontecer isso aos sul-americanos, mais habituados ao ano civil (de Janeiro a Dezembro) do que propriamente a época desportiva europeia (de Setembro a Maio). Mesmo assim, Yazalde dá cartas na Taça de Portugal, com um bis em Leça (3-1) e um hat-trick ao Torres Novas em Alvalade (5-0). Na final, é seu o momentâneo 2-0 sobre o Vitória FC, no Jamor.
O Sporting levanta a Taça de Portugal e Yazalde viaja para umas merecidas férias. “Levou-me à Argentina para conhecer o país e eu fui, tranquila da vida. A ideia era conhecer e viajar. Às tantas, pedem-me para fazer anúncios televisivos para uma marca de cigarros. Comecei a gostar daquela movida, no país do Chirola. Quando voltei a Portugal, já estava casada. O Chirola tratou de toda a papelada desde a Argentina. Casámo-nos a 16 Julho 1973.” Agarre-se bem, muito bem, porque Yazalde vai meter o turbo a partir daqui e pulveriza recordes, alguns inéditos (primeiro sportinguista a ganhar a Bota de Ouro, em 1974), outros imbatíveis (46 golos num só campeonato, nem Jardel). É o fungagá da bicharada. Insistimos na ideia, 46 golos em 29 jogos na 1.ª divisão.
Eis o seu registo assombroso: Boavista (2), Leixões (2), Belenenses (1), Oriental (4), Farense (2), CUF (1), Montijo (6), V. Guimarães (0), Benfica (0), Beira-Mar (1), Académica (2), Olhanense (2), Barreirense (3), V. Setúbal (1), Boavista (0), Leixões (1), Belenenses (0), Oriental (5), Farense (1), CUF (3), Montijo (1), FC Porto (0), V. Guimarães (0), Benfica (2), Beira-Mar (1), Académica (1), Olhanense (2), Barreirense (1). Seis ao Montijo? Cinco ao Oriental? Que craque, bolas. Naturalmente, é o melhor marcador da Europa e é o primeiro argentino a conquistar a Bota de Ouro. O segundo, espante-se, é Messi.
Como se isso fosse pouco, o de juntar os títulos de melhor marcador da 1.ª divisão e da Europa com os do Sporting (campeonato + Taça = dobradinha), a vida de Yazalde ganha uma nova dimensão com a convocatória rumo ao Mundial-74, na RFA. É ele o primeiro estrangeiro de uma equipa portuguesa a participar num Mundial. E é também ele o primeiro estrangeiro de uma equipa portuguesa a marcar num Mundial. Ainda por cima, aos pares – que o diga o Haiti (4-1). É um fartote, nunca visto.