Mostovoi. ‘No hóquei do gelo, jogo à defesa e Putin ao ataque’
Mostovoi atende-nos a rir desde Sochi, onde Portugal joga hoje vs. Uruguai. É viciante. “Sabes o que mais gostava em Lisboa? Acordava às oito da manhã e já havia sol. Depois, treino, praia e comida”
Há coincidências do além. Estamos em São Petersburgo, a cidade-natal de Mostovoi, e ligamos-lhe. Atende-nos desde Sochi, onde está a competir num torneio de hóquei sobre o gelo. Hein? Isso mesmo, Mostovoi é agora craque de outro desporto, na ressaca de uma movimentada carreira futebolística com um notável pico de forma no Celta Vigo. Há coincidências do além. Como a vida desportiva de Mostovoi em Portugal. A estreia é com o Porto. A despedida, idem idem. O golo mais importante, aspas aspas. Para alguém do Benfica, o clássico é a maior honra. O russo sabe-o bem, só que ainda hoje não percebe o porquê de ter jogado tão pouco. Mistérios. Nunca desvendados. Nem por telefone de Petersburgo até Sochi.
Olá Mostovoi, já podemos falar?
Olá, sim, sim, tudo bem? [Mostovoi fala castelhano e, às vezes, até arrisca o português com distinção] Desculpa ter-te dito para ligares há meia-hora e eu não atendi. Estava a tomar banho depois do jogo.
Jogo?
De hóquei.
Jogas hóquei?
Siiiiim, há muito.
Hóquei quê?
Aahhhhhhh, sobre o gelo, claro.
Ahahahahah. Só queria que ficasse esclarecido. Tu gostas?
Adoro. A minha equipa ganha muitas vezes.
Jogas a quê?
Sou defesa.
Então e o ataque?
É o Putin.
Hein?
O Putin joga ao ataque. Tenho mais de uma equipa de hóquei sobre o gelo, atenção. Numa delas, o Putin é avançado. Eu sou sempre defesa.
O Putin, Putin?
Esse mesmo.
E que tal?
Digo-te já, marca muitos golos,
Incrível.
É, não é? Coisas fantásticas acontecem aqui, ahahahahah. O ringue é um espaço óptimo para continuar a praticar desporto. A minha equipa acabou de se qualificar para os quartos-de-final de um torneio anual. O objectivo é o título, claro.
E o futebol?
Já lá vai, já lá vai. Agora só comento. Tens de me ver.
Apanho-te, às vezes. Estás dentro de uma cabine a analisar as jogadas em slow motion e tal.
Isso, isso. Sou eu. É um trabalho engraçado, ahahahah.
Alguma vez te analisaste em slow motion?
Nunca. Sempre em fast forward, ahahahahah.
Sempre gostaste de futebol?
De niño, siempre. A minha primeira recordação é uma bola, dormia com ela todas as noites.
Como é que era a vida em Petersburgo nos anos 70?
Devo dizer-te que fui para Moscovo aos cinco anos e a vida era complicada, difícil. Não tinha nada em casa, só pão e ya está. O meu pai era electricista, a minha mãe cabeleireira. Trabalhavam muito e nem os via muito por casa. Fazia a minha vida lá fora, com a bola de futebol. Até porque não tinha telefone nem televisão.
Nada, nada?
Nada. Comunismo e tal e tal. Acho que a primeira televisão lá de casa já eu era mayor, 13/14 anos. E tenho ideia que o meu pai roubo-a de algum lado.
Eischhhhh, grande pai.
O meu pai é o maior. Jogava de puta madre.
Futebol?
Siiiiii. Ainda hoje é craque nos jogos de veteranos.
E tu, sempre foste craque? Quer dizer, és muito tecnicista.
É de dormir com a bola. Ela obedecia aos meus pés, ahahahahah.
Quando é que começaste a ver o futebol como assunto sério?
Aí aos 16 anos. Jogava com a equipa do bairro e pude dar o salto para uma da 3.ª divisão. Daí fui para o Spartak Moscovo.
Miravas alguém especial?
Como te disse, não havia televisão. Só muito tarde. Portanto, perdi o comboio dos anos 70 e início dos 80. Tanto assim é que os meus primeiros ídolos são Maradona e Van Basten. Ah, e Platini.
Foste campeão europeu sub-21 em 1990. Do que te recordas?
Da eliminatória.
Eliminatória?
Sim, duas mãos: ganhámos cá e lá à Jugoslávia, 4-2 e 3-1. Mas é só isso. Sinceramente, a minha memória não vai mais além.
Mas marcaste um golo?
Verdade, cá. Mas nem sei exactamente como foi. Lembro-me de uma jogada fluída, dois/três toques, um regate e paaam, gol.
Que tal essa URSS?
Uyyyyy, equipo buenisimo. Já jogávamos juntos há três: eu, Kolyvanov, Dobrovolski, Yuran, Kanchelskis, entre outros. Eles da Jugoslávia também tinha uma equipa, pfffff: Suker, Boban, Prosinecki, Jarni, Boksic. Grande, grande final. Ganhámos nós, ainda bem,
Como é que apareces em Portugal, assim de repente?
Bueno, ya sabes como es, as regras, a perestroika e tudo se precipitou um pouco.
De que maneira o Benfica estava mesmo interessado em ti?
Mira, a história verdadeira é esta: tinha 21 anos, queria sair da URSS e recebi uma oferta alemã do Bayer Leverkusen. Estava muito bem em Leverkusen no primeiro dia ou assim e o Kulkov, já do Benfica, liga-me a perguntar-me o que estava ali a fazer. ‘Que estas pensando? Vete para Lisboa’. E fui.
E foste.
Sim, tinha de ser. Em Lisboa, tinha amigos como Kulkov e Yuran.
Vivias onde?
Muito perto do Estádio da Luz. Sabes o que gostava mais?
Nem ideia.
Acordava às oito da manhã e já via o sol. Depois ia treinar de manhã e tinha o resto do dia todo livre. Essa liberdade nunca a experimentara na URSS. Havia muito tempo livre e aproveitava para ir à praia. Metia-me no carro, passava a ponte e ia ali para
Então?
Agora não me lembro do nome da zona, ajuda-me aí.
Costa da
Caparica, Costa da Caparica. Bueno, imagina: despertava às oito da manhã, treinava e depois ia para a praia o resto do dia. Praia e comida, maravilllllaaaaaaaaaa. Era como um chupa-chups.
Ahahahahahah.
En serio, que tempos maravilhosos.
E futebol?
Despediram Ivic e comecei a jogar com Toni. Fiz 10 jogos e, depois, tchau. Ainda hoje não percebi.
O quê?
Porque joguei tão pouco, porque saí.
Davas-te bem com a malta?
Ainda hoje me dou com personas. Olha, o João Pinto, por exemplo. Vi-o no sorteio da fase de grupos do Mundial-2018 e abracei-o. Também estive com o Rui Costa há uns quatro meses. Há amigos para sempre, claro. E outros que não, óbvio. É assim a vida. Que não só a do futebol.
Marcaste dois golos.
Um ao Baía, outro ao Amora,
Ahahahah. Como é que foi ao Porto?
Olha, uma coisa que passa despercebida à maior das pessoas. No jogo de estreia pelo Benfica, com o Porto, para a Supertaça, tenho uma oportunidade claríssima com 0-0 no marcador. Daquelas oportunidades imperdíveis: em dez, marco nove. Pois falhei aquela, acreditas? Bom, no pasa nada. Os meses avançam e jogamos outra vez com o Porto, nas Antas. É livre e pico a bola por cima da barreira, é golo. Buenisimo, por sinal. Ahahahahahah.
Foste grande em Vigo. Ainda olhas para esses tempos com admiração?
Claro que sim, era uma equipa pequena que sempre lutou por um lugar na Liga dos Campeões. Jogámos sete anos seguidos na Europa e a dar espectáculo. Tenho memórias fantásticas, tanto do campeonato espanhol, em que dávamos trabalho a Barça e Madrid, como na Europa. Há jogos imperdíveis.
Como o 7-0 ao Benfica?
Por exemplo. Olha, outro chupa-chups.
Porquê?
Quando entrei em campo, pensei em ganhar 2-1 ou 3-1. Não mais. Uma hora e meia depois, 7-0. Sete-zero??! Que resultado. Mas há mais, hein? Uma vez, ganhámos 2-1 ao Milan em Milão. Aliás, nessa época, passámos o grupo da Liga dos Campeões para os oitavos-de-final, à frente de Milan e Ajax. Fomos eliminados pelo Arsenal. Numa outra vez, demos 4-0 à Juventus em Vigo. Eliminámos o Liverpool em Anfield. Grandes feitos. Outro: ganhámos a Taça Intertoto, ao Zenit.
E depois a ressaca, com a descida de divisão?
Pues, verdad. Como te disse, era um clube pequeno e nunca imaginei que a direcção fosse tão má a gerir um negócio. Os problemas de dinheiro começaram no ano da Liga dos Campeões. O clube afundou-se e tornou-se como norma o não pagamento. No último ano, só jogava com dinheiro. Prometeram-me, fui a jogo e, mesmo assim, não me pagaram. Não me pagaram o último ano. Saí, claro. E a descida foi um cenário triste. E, já agora, previsível.
E a selecção russa do teu tempo?
Una mierda, no? De 1990 a 2000, convivemos com problemas infinitos. Vê bem: falho o Mundial-90 porque sou jovem; falho o Euro-92 porque lesiono-me a cinco dias do início; falho o Mundial-94 porque aquilo era mais uma equipa de turismo do que de futebol, além dos problemas com dirigentes; falhamos o Euro-96 porque o grupo incluia Alemanha e República Checa, finalistas do torneio, mais Itália; falho o Mundial-2002 por causa de uma lesão e foi uma pena, porque estava numa forma fantástica; falho o Euro-2004 porque disse o que pensava e mandei o treinador tomar por el culo. Y ya está, o meu resumo na selecção. Eram outros tempos, mais obscuros e difíceis, muy difíceis.
Como?
Fui eleito o melhor jovem sub-20 e deram-me um papel como prémio. Um papelito. Só isso. Agora é dinheiro e um carro. Quando íamos à selecção, queríamos receber porque todas as federações pagam aos seus jogadores. Connosco, não. E havia peleas intermináveis entre dirigentes e nosotros, jogadores. Hoje em dia? Hum, hoje em dia, um miúdo ganha mais que eu em dois dias.