Abdelghani. ‘Jantei vitela na casa do Mário Soares e não deixei nada no prato’
Gregos, alguém os entende?
Russos, alguém os entende?
Turcos, alguém os entende?
Seja a falar ou a escrever, é uma salganhada de todo o tamanho. Impercetível, ninguém se entende. Há letras gregas que nem letras são no nosso abecedário (salvo o i grego, claro). Há caracteres russos sem ponta por onde se pegue. E há pormenores do alfabeto turco do arco da velha, como um S cedilhado e os tremas em cima de i, o, u. É um fartote. Só para atazanar o juízo da malta, resolvemos sacar uns hieróglifos da boca do Abdelghani. Ou talvez não: a primeira frase do egípcio do Beira-Mar é
Graças a Deus, está tudo bem, obrigado. [português fluente, sotaque nulo e alegria, muita alegria]
Há quanto tempo o Abdelghani não vem cá?
Há demasiado, sabes? Tens de investir numa viagem para rever amigos e rever Aveiro. Faz-me falta o vosso calor humano, a vossa generosidade.
Foi sempre assim?
Sempre, desde o primeiro taxista em Lisboa.
O quê?
É isso mesmo. Voei do Cairo até Lisboa e ninguém me esperava no aeroporto. Ninguém.
E isso era o combinado?
[Abdelghani começa a rir-se sem parar] Se era, não sei. Que aconteceu, aconteceu.
Mas como é que o Abdelghani veio parar a Portugal?
Comprida, muito comprida, a história.
Fale à vontade.
Tinha 28 anos e estava com vontade de sair do Egipto para uma aventura na Europa. Um amigo meu fez-me uma cassete VHS com golos e lances meus.
Uauuu, vivò luxo.
Eheheheh, é isso mesmo. Enviei a cassete para um conhecido meu na revista France Football, juntamente com uma carta.
Uma carta?
A explicar quem era, o que tinha feito e o que tinha ganho ao serviço da selecção do Egipto.
E o que ganhou?
Uma Taça Africana das Nações, por exemplo. Em 1986, aqui, no Egipto. Não ganhávamos nada há mais de 30 anos e, de repente, levantámos a taça numa final com os Camarões do Roger Milla. Olha-me lá este pormenor: começámos a perder, 1-0 com o Senegal. Unimo-nos e demos a volta, com o apoio fantástico do nosso público. Não cabia um alfinete nos estádios e a sua voz dava-nos mais força ainda.
A final acabou quanto?
Zero-zero aos 90′, zero-zero aos 120′. Nos penáltis, ganhámos 5-4, acho.
Marcaste um dos penáltis?
O segundo. Na baliza, N’Kono. Dois anos antes, em 1984, já tinha estado nos Jogos Olímpicos em Los Angeles. E marquei um golo.
De penálti?
Este não, de bola corrida. À Costa Rica, ganhámos 4-1. E passámos a fase de grupos, um feito extraordinário. Nos ¼ final, fomos eliminados pela França, que seria a campeã olímpica.
Que experiência.
Viver isso tão jovem foi uma experiência muito importante para o futuro. Los Angeles era uma cidade imensa, com uns 80 km de largura, não? Era um outro mundo, o mundo dos filmes, e viver aqui de perto era um sonho tornado realidade. Além disso, fizemos um bom campeonato e honrámos o Egito.
Portanto, uma presença nos Jogos Olímpicos e um título africano.
Sem esquecer os títulos de campeão egípcio e as Taças dos Campeões Africanos pelo Al Ahly. Com tudo isto, resolvi enviar o meu currículo.
E alguém o chamou?
E é aí que resolve ir para Portugal?
Lisboa, aí vou eu. Chego lá e ninguém à minha espera. Ninguém. Troco dinheiro e vou lá fora para apanhar um táxi.
Para onde?
Havia um hotel marcado em meu nome.
Qual?
Xiiiii, já não me lembro. Sei que a viagem foi 500 escudos e paguei cinco mil escudos.
Como?
Nunca tinha visto notas portuguesas e o taxista tirou-me uma nota de 5000. Mal saí do táxi, o porteiro do hotel perguntou-me quanto é que tinha pago. Contei-lhe a história e o taxista foi abordado, no outro lado da rua.
E então?
Devolveu-me a nota de cinco mil e paguei-lhe 500 escudos.
E o taxista disse o quê?
Que se tinha enganado.
Assunto resolvido, pronto. E o hotel?
Entrei no quarto e, nem cinco minutos depois, recebi uma chamada.
Do Lucídio?
Sim, a dizer-me para apanhar o comboio.
Aveiro?
Exatamente, Aveiro. Que bonita cidade.
Foi chegar, ver e vencer?
Nada disso. Cheguei ao hotel e não tinha nada em meu nome. Apresentei o meu passaporte ao rececionista e ele dizia que não tinha nada em meu nome.
E agora?
Tive de pagar o hotel do meu bolso.
Quantas noites?
Xiiii, não me lembro desses pormenores. Sei que não sabia nada de nada, de quando iria receber outro telefonema e, então, comecei a treinar-me.
Onde?
No hotel.
Ginásio?
Ahahahahahah, não. Nos corredores.
Dentro do hotel?
Sim, sim, entre o elevador e os quartos. Corria para lá, corria para cá. Fazia abdominais, flexões e corria mais um pouco.
Só isso?
Até à próxima chamada, sim. Tinham-me dito que o Beira-Mar estava a jogar para subir à 1.ª divisão, havia que ser paciente.
E essa chamada apareceu?
Um dia, sim.
E?
Levaram-me a treinar ao Beira-Mar.
Correu tudo bem?
No meu primeiro jogo-treino, um goal. No meu segundo jogo-treino, no goal.
E o terceiro?
Meteram-me a defesa-central.
Eisch.
E marquei um golo.
Que monotonia.
O que interessa é que ficaram comigo e cumpri o meu sonho de jogar na Europa.
Moravas onde?
No primeiro ano, na Barra, junto ao mar. Aquilo era tão frio e húmido que o meu filho estava sempre doente, com gripe, febre e isso. No segundo ano, mudei-me mais para o interior.
E que tal?
Tudo espetáculo. Vivi quatro anos em Aveiro e conheci toda a gente.
Toda a gente?
Duvido que tivesse saído de Aveiro sem conhecer todos. Saía muito à rua e cruzava-me com muita gente. Sabia a cara das pessoas de cor e salteado. Podia não saber o nome de alguém delas, mas conhecia-as de vista. Dos passeios na rua, dos passeios à beira-mar, do estádio, das lojas, dos cafés, dos restaurantes. Todas, não me escapou nem uma.
A sério?
Estou a dizer-te, conheci todas.
E isso é possível?
Para quem veio do Cairo, é. Esta cidade tem milhões de habitantes e sempre tive jeito para fisionomias. Aí, em Aveiro, tudo ficou mais fácil. Até porque as pessoas também me procuravam bastante. Metia um pé na rua e recebia a atenção de toda a gente. Havia muito carinho, muito carinho. Tinha de retribuir.
Compreendo, eras o egípcio mais famoso de Aveiro.
E arredores, eheheheheheh. Só não fui o egípcio mais famoso de Portugal por um dia.
Quando?
Durante a visita do meu presidente Hosni Mubarak, em 1991.
Viste-o?
Se o vi? Amigo, ele convidou-me para jantar na casa do Mário Soares, que era o vosso Presidente da República.
E foste?
Como não? E levei a minha mulher. Foi bem engraçado. Jantámos vitela. Comi tudo, tudo. Não deixei nada no prato. [é um prato, o Abdelghani]. Adoro a vossa comida. Em Aveiro, perdia-me completamente nos restaurantes.
Quais?
Já não me lembro dos nomes, tenho é saudades daqueles pratos.
Disso já se lembra, não?
Amigo, claro que sim: arroz de marisco, bacalhau assado, bacalhau grelhado, bacalhau frito, bacalhau seja do que for,, camarões grelhados, tamboril, peixe-espada.
Nesse ano, nunca mais voltaste a ver o Mário Soares?
Ahhhhhh [como quem diz, olha-m’este a querer enganar], claro que sim. Na final da Taça de Portugal, com o Porto. Perdemos 3-1, com um golo meu. Fomos para prolongamento. Sabes, eu sou Benfica?
A sério?
Sim, eles vieram ao Cairo nos anos 70, com Eusébio, Coluna e essa equipa. Fiquei hipnotizado. Esse Benfica era divinal, depois veio o Sousa Cintra [compasso de espera]. Era o Sousa Cintra?
O do Sporting?
Não, o do Porto.
Ah, é o Pinto da Costa.
Ah, pois é. O Pinto da Costa montou um Porto bem bom durante o meu tempo em Aveiro. A melhor equipa nacional, sem dúvida. Ganhou tudo, campeonatos, taças e supertaças. Aquilo era um plantel compacto, do guarda-redes Vítor Baía ao avançado Domingos. Lá pelo meio, uma série de grandes jogadores.
E o Beira-Mar levou essa final para prolongamento.
Eles tinham o Kostadinov no banco, vê bem. O Kostadinoooov. Foi uma tarde magnífica, pena o resultado. Valeu pela experiência de ir ao Jamor e ver os adeptos do Beira-Mar a encher aquela bancada. Quando marquei, fui ter com eles e a alegria é ainda hoje indescritível. Estou no meio da rua neste momento e até me arrepio todo só de pensar nisso. Aquele golo, que maravilha. É tudo junto. Um golo no Jamor, um golo na final da Taça, um golo ao Porto, um golo ao Baía. Ao Baía. É curioso, sabes? Perdemos e virámos heróis. Fomos bem recebidos em Aveiro.
O Beira-Mar só vingou essa final em 1999, com aquele golo do Ricardo Sousa.
Amigo, amigo, eu comprei bilhete de propósito para ver esse jogo.
No Jamor?
Fui aí e participei na festa. Eu sabia que o Jamor não me ia deixar mal uma segunda vez e foi cá uma festa. Que alegria, sobretudo por juntar duas equipas do meio da tabela: Beira-Mar e Campomaiorense. Jantei com os campeões e senti-me como um deles.
E visitou Aveiro?
Claro, havia esse propósito, independentemente do resultado.
E que tal?
Bonito como sempre. Vi amigos, entrei em lojas.
Quais?
Ainda hoje me lembro da abertura da Zara. Comecei a ir lá numa base diária, eheheheh. Era um mundo que me fascinava. E, claro, o supermercado de sempre.
Voltou lá?
Claro. As senhoras aturavam com cada uma.
Porquê?
Regateava tudo, tudo.
Num supermercado?
Tudo. Se comprasse uma esponja para lavar a loiça, não ligava nenhuma para o preço na embalagem. Só saía de lá depois de regatear.
Imagino a conversa.
Aquilo era entretido, acredita. Mal entrava, elas ficavam logo animadas. A arte de regatear tem muito que se lhe diga, é um fenómeno muito nosso, muito cultural.
E também regateaste o teu contrato?
Lembro-me é de regatear pelo Amunike.
Amunike?
Pergunta ao Sousa Cintra. Agora sim, acertei no nome dele. O Sousa Cintra pediu-me ajuda para impedir o Amunike de sair do Zamalek para o Duisburgo, da Alemanha.
E tu ajudaste?
Claro que sim, queria muito que o Amunike fosse para Portugal. E o tempo deu-me razão, ele passou grandes momentos no Sporting que lhe permitiram jogar depois no Barcelona.
Pelo meio, ainda ganhou os Jogos Olímpicos-96 e jogou o Mundial-94.
Sabes uma coisa?
Não.
Sou o único árabe a marcar um golo nos Jogos Olímpicos e outro no Mundial. Ninguém mais conseguiu essa proeza.
O dos Jogos Olímpicos é o tal à Costa Rica, em 1984. E o do Mundial…
À Holanda, à grande Holanda, em Palermo, Itália. O sorteio foi duro: Holanda, Inglaterra e Irlanda. Empatámos os dois primeiros jogos e só perdemos no fim, com a Inglaterra do Robson: 1-0. A partir daí, nunca mais fomos a um Mundial. E, antes, só tínhamos ido ao de 1934.
O teu golo à Holanda é aquele de penálti?
Sim, é.
Estavas nervoso?
Nada, se tivesse nervoso nessa noite depois de ter marcado tantos penáltis na vida, então não valia a pena. Estava confiante, muito confiante.
O guarda-redes da Holanda era o Van Breukelen, especialista em penáltis.
Bem sei, lembro-me muito bem dele. Aliás, toda a selecção holandesa era uma chuva de estrelas: Koeman, Rijkaard, Gullit, Van Basten.
Trocaste de camisola com alguém?
Ou Gullit ou Van Basten, já não me lembro. Tirei foi imensas fotografias depois do jogo.
Com os da Holanda?
Claro, era um jogo imperdível. E eles estavam disponíveis, todos sorridentes. O resultado não lhes foi favorável, mas isso é dentro do campo. Fora, portaram-se lindamente connosco e convivemos ainda um pouco. Eles estavam descontraídos.
Até o Van Breukelen?
Pisquei-lhe o olho e ele retribuiu.
E no lance do penálti?
Total concentração. Sabia para onde ia atirar a bola.
E o Van Breukelen adivinhou?
Esticou-se bem, só que a bola, se reparares bem, saiu do meu pé para a malha lateral interior. Belo pontapé, admito.
E…
Olha, agora peço-te desculpa, vou entrar nos estúdios da televisão. Tenho mais uma entrevista [Abelghani é o presidente do Sindicato dos Jogadores do Egito].
Tudo bem, claro. Abraço.
Abraço meu para ti e todos os portugueses. Até breve, até breve.
in Observador, Set 2017