Great Scott #247: Único árbitro europeu a apitar a decisão da Libertadores?
Leo Horn
O futebol já foi a preto e branco. Em 1962. Ano em que o Santos de Pelé começa a dominar a América do Sul e o mundo. Que o diga o Benfica, varrido pela classe dos paulistas na Taça Intercontinental desse ano (3:2 em São Paulo, 5:2 na Luz). E que o diga o Peñarol, a primeira vítima dos santistas, na Libertadores-62, numa das finais mais impressionantes e tumultuosas da história da competição.
Na primeira mão, nada de especial. Spencer fez o 1-0 para o Peñarol e o Santos virou o resultado com um bis de Coutinho. “Fiz os dois golos daquele jogo bem complicado. Eles tinham uma equipa fortíssima, eram os bicampeões sul-americanos em título [1960 e 1961] e batiam com força”, lembra o herói dessa vitória no Uruguai. Já Pepe, outro avançado santista, vai mais longe. “Santos e Peñarol eram as duas melhores equipas da América do Sul e a rivalidade até era mais dos dois países do que concretamente das equipas. Tudo devido ao Mundial-50, quando o Uruguai silenciou o Brasil no Maracanã [2- 1] e levou o título. Nesse tempo, os uruguaios eram mais fortes e com mais raça que os argentinos.”
Na segunda mão, a 2 de Agosto, a cidade de São Paulo engalanou-se para festejar o título continental do Santos, o primeiro de uma equipa brasileira na Taça Libertadores. Mas tal não aconteceu. Pelo menos nessa noite. O jogo arrastou-se por três horas e trinta e quatro minutos. Os contornos dessa longa maratona, surreais. O Peñarol marca primeiro por Sasia (18’) e o Santos empata por Dorval (27’). Na segunda parte, bis de Spencer aos 49’ e novo empate do Santos, por Mengalvio (50’). Aos 73 minutos, hat trick de Spencer. No instante final, Pagão faz o 3-3 e o Santos comemora o título. No relvado. No balneário. No dia seguinte, os jornais brasileiros também exaltam o Santos. Até que um comunicado da Conmebol invalida o 3-3 e estabelece o 3-2 como resultado final. Mas que coisa.
Qual foi o problema? Ou melhor, os problemas. O jogo esteve paralisado várias vezes e o árbitro chileno Carlos Robles (o mesmo da primeira mão) não teve coragem nem autoridade para acabá-lo antes de tempo, com medo de criar um tumulto no estádio. Para começar, o Peñarol espicaçou o Santos ao pedir que o jogo se realizasse no Morumbi, casa do São Paulo, com mais lugares sentados que o da Vila Belmiro. O Santos disse “não” e aumentou o preço dos bilhetes. Assim, as duas partes ficaram satisfeitas. Depois, dois autocarros de adeptos do Peñarol viajaram de Montevideu a Santos e monopolizaram as atenções da polícia paulista.
Barricados numa bancada da Vila Belmiro, os milhares de uruguaios não pararam de atirar objectos para o relvado. Numa dessas vezes, uma garrafa de cerveja atingiu um dos fiscais-de-linha. Daí à confusão dentro do relvado foi um pequeno passo. Os jogadores das duas equipas trocaram chutos e pontapés. Voam acusações. De um lado e do outro. O defesa Lima, do Santos, diz que o 1-0 de Sasia foi irregular. “Antes de rematar, ele pegou num pedaço de terra e atirou-o à cara do Gilmar [guarda-redes do Santos]. Os uruguaios são conhecidos pela vontade de perturbar o adversário através de inúmeras acções extradesportivas: insultos ou faltas feias.”
A acção do Peñarol resulta. O árbitro Robles interrompe o jogo e vai para o balneário. Como o ambiente no estádio fica cada vez mais ruidoso, Robles reentra em campo, aconselhado pelos dirigentes da Conmebol, e reinicia o jogo. Faltam 14 minutos e o Peñarol já ganha 3-2. O que ninguém do Santos sabe é que o jogo já acabou. É o próprio Lima que confirma. “A arbitragem, e o pessoal da confederação [Conmebol], não considerou o nosso último golo. Eles só deixaram jogar o que faltava para sossegar os adeptos e não causar um tumulto em Santos. O curioso é que foram os adeptos do Peñarol que atiraram a garrafa de cerveja no fiscal-de-linha.” Acontece que o árbitro escreveu no relatório que fora um do Santos.
À conta desse detalhe, a Conmebol homologou o 3-2, o que então obrigava a um jogo de desempate, em campo neutro. O que muito indignou o Santos. Desta vez é Pepe no comando das operações. “Quando estávamos a sair de campo, a festejar, um dos laterais do Peñarol disse-me que ia haver um terceiro jogo, que o árbitro só tinha reentrado em campo para evitar confusão em campo e fora do estádio. Nem acreditei na hora. Continuei a festejar. No campo. E no balneário. As rádios entraram lá e demos entrevistas como campeões. Depois da decisão, pensei melhor e lembrei-me da questão do idioma entre o árbitro chileno e os jogadores uruguaios. Eles sabiam de tudo, nós não.”
Está decidido. Vamos a terceiro jogo. Em campo neutro (Buenos Aires). E com árbitro neutro, aka de fora da América do Sul – o holandês Leo Horn. O Peñarol quer o jogo para a semana seguinte. O Santos pede o adiamento por 28 dias e ganha o braço-de-ferro junto da Conmebol. Tudo para recuperar Pelé, que se lesionara no Mundial-62, em Junho, e nunca mais voltara aos relvados. O regresso do Rei está marcado para Buenos Aires e o Peñarol, treinado pelo húngaro Bela Guttmann (esse mesmo, o feiticeiro que se sagrara bicampeão europeu pelo Benfica em Maio desse ano de 1962), não tem qualquer hipótese. No dia 30 de Agosto acaba 3-0 para o Santos, com um autogolo de Caetano (11’) e bis de Pelé (48’ e 89’). O Santos é o campeão sul-americano no futebol a preto e branco.