Washington. ‘Até arranquei o Bento da baliza’
Na azáfama noticiosa da substituição presidencial de Trump por Obama, nem pensámos duas vezes e telefonámos para Washington. Ei-lo, cheio de força na voz e opinião própria. Que figura.
Washington, Washington, Washington. Só se ouve falar de Washington. Obama fez o discurso de despedida. Onde? Em Washington, of course. Trump vai dar entrada na Casa Branca. Onde? Em Washington, ora essa. Vai daí, ligámos para Washington. Quem? Senhoras e senhores, Washington Geraldo Dias Alves. Defesa-central brasileiro em Portugal nos anos 70/80 e pai de Bruno Alves.
Boa tarde Washington, tudo bem?
Oi, pois não?
Daqui Rui Miguel Tovar, jornalista.
Quer falar comigo?
Isso mesmo. Uns dez minutos sobre a sua vida.
Dez minutos? Dez? Você sabe a minha idade?
Por acaso, até sei: 67 (obrigado ò internet)
Pois é, dez minutos não chegam, não. Dá-me cinco minutos para estacionar o carro e liga-me se faz favor.
(passam-se sete minutos)
Boa tarde Washington.
Aaaaaah agora sim, arranjei aqui um bom lugar. Fala aí.
O Washington está onde?
Na Póvoa.
Criou raízes aí, então.
Foi mesmo.
Como é que o Washington sai do Flamengo para jogar no Espinho?
Olha, isso não é assim não.
Então?
Nasci em Barão de Coçais, Minas Gerais, Brasil.
Até aí, tudo bem. Confere.
Vivi depois em Itabira, a cidade do ferro, também em Minas Gerais, cuja capital é Belo Horizonte. Depois em Valério Doce. Fui fazer um teste ao América Mineiro e recusaram-me. Então, um amigo meu levou-me para o Flamengo, lá no Rio de Janeiro.
Estamos já em que ano?
Final dos anos 60. Fiz os dois anos de júnior no Flamengo e foi o Yustrich, ex-Porto, quem me subiu à equipa principal, em 1970, ano em que o Brasil é tricampeão mundial lá no México. Entrei no lugar do Brito, ex-Vasco. Ele foi vendido para o Cruzeiro, porque a ideia do Yustrich era jogar comigo.
E deu certo?
Certíssimo, rapaz.
Diz-se aqui em Portugal que o Yustrich não era assim flor que se cheirasse.
Sabe porquê?
Nem ideia.
Porque era organizado e disciplinado. O Yustrich adoptava a filosofia do seu tempo.
Qual era?
A filosofia do tapa.
Do tapa?
Isso, de apanhar. Quando eu era pequeno, a minha mãe batia-me e eu perguntava ‘porquê é que ’tou apanhando?’. Ao que ela respondia, ‘está apanhando porque você fez isso e aquilo mal.’ Então, eu apanhava porque havia limites e valores. Se fazia a coisa errada, apanhava. Agora já não é assim. Se hoje um pai der uma palmada no filho, é preso. Com a falta de limites e valores, é ouvir as notícias em efeito dominó: filho estrangula pai, mãe enforca filho, filho queima pai. Os valores deixaram de existir, os limites já não existem mais. Passa-se o tempo a ver e a ouvir a internet, completamente dependentes da ficha: temos de estar ligados a alguma coisa.
Assim não, é isso?
Claro que não. Os jovens têm de aprender a comunicar e a largar o telemóvel. Já há estudos nos EUA a dar conta de uma doença provocada pelo excesso do uso de telemóveis. Já chega. Mesmo.
E o Yustrich.
Pois, é isso. O Yustrich era organizado e disciplinado. Há quem não goste, mas tem de ser rigoroso. Ele ensinou-me muito, sabe? Saí de casa aos 16 anos, encontrei muitos obstáculos e esbarrei contra muitas paredes. No fim de contas, a vida ensinou-me isto: a vitória estará sempre do lado de quem suporta a dor. Quem pensa o contrário, está tremendamente enganado.
…
Com o Yustrich, ganhei mais do que perdi. E ele gostava de mim. Muito mesmo. Sempre que ele assinava por um clube, convidava-me a ir jogar com ele. Gostei dele para caramba no Flamengo. Cumpria sempre o que me pedia.
Que era?
Destruir, nunca criar. Eu era bom a destruir.
A bem e/ou a mal?
Vou usar a ironia, ’tá bom? Se eu marcasse o Cristiano Ronaldo, dava uma porrada no tornozelo dele. Forte, para aleijar. Se eu fosse expulso e ele saísse lesionado, quem ficava a ganhar? A equipa do Cristiano é que não era não. Reforço a ironia, ’tá bom ò Rui? Sabe porquê?
Porquê?
Nunca lesionei ninguém. Nem aqui em Portugal, nem lá no Brasil. Nunca. E olha lá que joguei contra o Pelé. Sabe o que fazíamos para o marcar em cima? Um à frente dele, outro atrás. Mesmo assim, não era garantido que ele ficasse no nosso bolso. Muitas vezes, ele driblava e gente e saía dessa zona com a bola controlada. Craque que é craque suporta a dor, a marcação, a malandrice do adversário. Por isso, o Pelé era o rei.
E o rei de agora?
Agora? Agora já não se joga futebol espetacular como antes. Digam o que quiserem, isto é futebol pobre. Dizem-me que o meu tempo é o do futebol da roda quadrada. Pois bem, então fomos nós quem eliminámos os bicos dessa roda. Ficou tão redonda, arrisco-me a dizer redonda demais, que agora é difícil jogar com ela. O futebol de hoje não é compatível como o de antigamente.
Então?
Antigamente, um cara acertava quatro dos cinco passes longos a atravessar quase todo o campo. Agora, acerta um em cinco. E e e e e. Volto a dizer, não é compatível o antigamente com a atualidade. Antes, o futebol era espetacular. No seu todo. Agora já não. Agora há mais dirigentes a falar que os jogadores. Agora o artista está fora do palco.
Quais eram os artistas do antigamente?
Uyyyy, tantos ò Rui.
Em Portugal?
Artistas do outro mundo? Eusébio, Chalana, Futre, Alves, Vítor Baptista, Humberto Coelho. Tantos, tantos.
E no Brasil?
Joguei com o Pelé. Ou melhor, contra o Pelé. Joguei, isso sim, e tenho orgulho em dizê-lo, com o Zico. Joguei com o Zico no Flamengo. E fomos campeões cariocas.
Pois, o Washington jogou no Flamengo. Quanto tempo?
Cinco anos, 85 jogos.
E depois?
Fui emprestado à Portuguesa para jogar o campeonato carioca. E fui vendido ao Colorado, em Curitiba. Depois, joguei finalmente no América Mineiro e sagrei-me bicampeão baiano pelo Bahia. Só então é que fui para Portugal.
Como?
De bicicleta [e escangalha-se a rir] [continua a rir-se] [alto e bom som, tenho de afastar ligeiramente o telemóvel do ouvido direito]. Agora a sério, fui de avião. A companhia era a Varig.
Imagino a viagem?
Não imagina não: Foi assim ò: Salvador-Belo Horizonte-Rio de Janeiro-Lisboa-Porto-Espinho.
Porto-Espinho de avião?
Agora me pegou [mais uma fornada de risos estridentes]. Não, aí não. Aí foi de carro, com o senhor Lito de Almeida. O pai dele era dono das termas do Gerês e ainda de um hospital em Espinho. Cheguei em Junho de 1974.
Uyyyyyy, 1974?
Isso mesmo, ainda se respiravam os ares da revolução.
E mais, e mais?
Olha, Portugal era um país em plena festa, dentro de um caos muito próprio. Quer dizer, a revolução tinha saído à rua e isso ainda se notava. Hoje, 42 anos depois, Portugal é um país livre, com boa comida, praias lindas e um povo bom. Deve ser o país da Europa com mais tempo de sol por ano.
Portanto, Espinho 1974.
O Espinho tinha subido à 1.ª divisão e encontrei uma equipa bem boa com muitos jogadores ex-FC Porto, como Malagueta, Lemos e Bernardo da Velha. Ainda havia Aníbal, Hélder Ernesto.
Lembra-se da estreia?
Não, isso não.
Do que se lembra dessa primeira época?
Dos jogos com os grandes, do fascínio de sair do peladão do Varzim para um Estádio da Luz ou um José Alvalade ou um Estádio das Antas.
O fascínio da sua parte?
O meu fascínio era jogar no pelado. Imagina eu que cresci a jogar no Maracanã pelo Flamengo. Aquilo enchia a torto e a direito, entre 150 mil a 200 mil pessoas. Com o Flu, mais de 200 mil. Escreve isso sem medo, era mesmo assim. E se fossemos para fora do Rio de Janeiro, só jogávamos no melhor estádio da capital do Estado. Tinha de ter de 50 mil lugares para cima. O Flamengo é o Flamengo, leva muuuuiita gente. Vivi essa febre boa de perto, bem perto. A adoração pelo Flamengo é global, não há como resistir. Agora imagina eu, do Maracanã para um peladão. Engraçado demais da conta.
Então, o fascínio de quem?
Dos meus companheiros. Alguns eram do Porto desde pequenos. Ou do Benfica. Ou do Sporting. Para eles, jogar na casa do seu clube tinha um fascínio muito próprio. Como se isso já fosse pouco, havia o pormenor da viagem de autocarro ou comboio, do jogar com muita gente a ver e da adrenalina dos jogos.
O Washington lembra-se do quê em concreto?
Nessa primeira época, lembro-me de um Espinho-Benfica em que o fiscal-de-linha só tinha espaço para correr naquela linha lateral. Para a frente, era o campo. Para trás, estava tudo ocupado com adeptos. O pessoal enchia o estádio nos jogos com os grandes e ocupava o campo todo, até onde podia. Era incrível, a atmosfera.
Quem apanhou pela frente que era levado da breca?
Eusébio. Mesmo com mais de 30 anos, ainda era um problema para segurá-lo. Cheguei a encontrá-lo ainda no Beira-Mar. Também havia o Yazalde. E, claro, o Fernando Gomes. Tudo gente fina, com classe. Bastava uma desatenção e eles não perdoavam. Bastava-lhes um toque na bola e era golo.
Outro assim era o Manuel Fernandes. Bom demais.
E golos, o Washington marcava?
Mostraram-me um que nem me lembrava, ao Benfica, em 1983. Ali na Póvoa.
De cabeça?
De cabeça? Livre direto, rapaz.
Ai o Washington gostava de marcar livres?
Gostar, gostava. O problema é que raramente me deixavam marcar. Nessa tarde, vá lá, deram-me um desconto e eu aproveitei.
Como foi o golo?
Atirei com força e arranquei a barreira, o guarda-redes e a baliza. Foi o 1-0.
Quem estava à baliza?
O Bento.
Uyyyyy, marcar ao Bento não é para todos.
Obrigado.
Do Espinho para o Varzim, como?
A primeira época no Espinho foi boa a nível pessoal, má a nível desportivo: descemos à 2.ª divisão. Continuei no Espinho mais um ano e não conseguimos a subida. Recebi então um convite do Varzim e lá fui. Nessa primeira época, em 1976-77, acabámos em sétimo lugar. Grande época, o presidente era o Manuel Vaz e o treinador António Teixeira.
E depois?
Seguiu-se Rio Ave em 1977-78, Varzim 1978-79, Rio Ave 1979-80, Lusitânia Lourosa 1980-81.
Bolas, não pára quieto.
É agora: voltei ao Varzim em 1981, na 2.ª divisão, e só saí em 1984. Depois, só Famalicão e Paredes.
Pendurou as chuteiras e depois?
Ainda treinei as camadas jovens do Varzim e fui adjunto de Manuel Oliveira mais José Rachão. Também fui treinador da equipa principal até ser substituído pelo Henrique Calisto. Aí, saí do futebol e trabalhei nas duas maiores obras portugueses nos últimos 20 anos.
Como assim?
Fui técnico de prevenção de higiene e saúde das obras da Expo 1998 e do Aeroporto do Porto.
Olha que bem. Pelo meio, três filhos futebolistas: Bruno Alves, Geraldo Alves e Júlio Alves.
Tenho nove irmãos, todos com nomes de estadistas norte-americanos.
Oi?
Eu sou Washington e ainda há Lincoln, Júlio César, Wilson. Deixa ver aqui mais nomes
(e começa a pensar alto)
(de repente)
Dos dez irmãos, eu incluído, só um não tem nome de estadista. Era o Geraldo.
“Era” porquê?
O meu irmão Geraldo, um dos melhores jogadores do Brasil (e pergunta ao Zico se sim ou sim), morreu muito novo.
Xiiiiii, não sabia.
É, o Geraldo era craque das cabeça aos pés. Chamavam-no Geraldo Assoviador. Fez a formação com o Zico no Flamengo e ainda chegou à seleção. Não é à toa que se chega à seleção brasileira com 21 anos. Sabe uma coisa?
Conta.
O Flamengo jogava com calção branco, certo?
Certo.
A morte do meu irmão fez com que o Flamengo jogasse com o calção preto, em sinal de luto. Isso ainda durou um bom tempo.
E o Washington, onde andava?
Isso foi em Setembro 1976 e já estava a jogar em Portugal, pelo terceiro ano seguido. Só pude chegar ao Brasil uns 15/20 dias depois. É uma situação dura de se viver. O meu irmão tinha um futebol de elevada qualidade, ia ser um craque. Era um sobredotado, um 8 com pés de 10. Era genial e complementava-se muito bem com Zico. Tanto assim é que eram amigos fora do relvado. O Zico chamava-o “meu filho marronzinho” [no Brasil, marron é castanho; Geraldo é mulato]. Grandes memórias. Ficava aqui mais um tempo a contar histórias atrás de histórias.
E eu a ouvir na boa, só que o meu telemóvel está a apitar.
É a nossa hora, ò Rui. Obrigado por me ouvir. Isso sai onde?
No Observador.
E quando sai a matéria?
Quinta-feira.
Como faço para lê-la?
Observador.pt.
É só?
É só e basta
Obrigado e abraço
Abraço.
In Observador, Jan 2017