Manuel José. ‘Marquei um golo ao Damas quase do meio-campo num Benfica-Sporting em juniores’

Mais You Talkin' To Me? 04/09/2021
Tovar FC

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Manuel José. ‘Marquei um golo ao Damas quase do meio-campo num Benfica-Sporting em juniores’

Manuel José dispensa apresentações. É um homem com uma obra tão vasta, tão vasta, tão vasta que a sua lista de títulos ultrapassa as duas dezenas. Mas quantos ao certo? Ah pois é… Com que então, Manuel José dispensa apresentações? Onde é que julga que vai com essa atitude? Nã, nã, nã, Manuel José tem de ser apresentado. Porque não estamos a falar de Manuel José, estamos isso sim a escrever sobre O Manuel José. O jogador campeão da 1ª divisão. O treinador das quatro Ligas dos Campeões. O homem do Cairo. Pelo meio, um trajecto de loucos entre jogos e mais jogos, títulos e mais títulos, confusões e mais confusões, a última das quais no Mali. O i liga-lhe para saber se já está recomposto do susto. Porque de resto dispensa apresentações, verdade?

Bom dia, Manuel José. Há quanto tempo…

Boa tarde, Rui. Você nem imagina a loucura aqui no Egipto.

Então?

Não dá para manter o mesmo número porque há sucessivas fugas de informação. No último ano e meio, troquei seis vezes de número. Não dá, não dá. Eles aqui são…

Loucos?

Dedicados [gargalhadas], extremamente dedicados. Isto já tem história. No Verão de 2008, por exemplo, lembro-me que se falou da minha eventual saída do Al Ahly. Sabe o que aconteceu?

Nem ideia.

Os adeptos criaram um blogue para evitar a minha saída. Alguém que escreveu o meu telefone e, pronto, metade do Egipto já sabia o meu número. A brincadeira só acabou quando troquei de telemóvel. Nem imagina a quantidade de chamadas que recebia. De 15 em 15 minutos, lá atendia uma pessoa qualquer. Até no hotel onde vivo [o Marriott, curiosamente no bairro Zamalek e na torre Zamalek, nome do maior inimigo do Ahly], tive de pedir aos funcionários para não passarem mais chamadas para o quarto.

E agora mais do mesmo.

Agora, antes, depois. Isto é incrível. Às vezes, fico a pensar para mim mesmo o que é isto que se passa aqui no Egipto? Esta adoração toda. É que não são só os adeptos do Al Ahly. Os outros também me chamam na rua, também querem trocar umas palavras comigo, também querem tocar-me e tirar fotografias. … Às vezes, pareço que estou no jardim zoológico. Sabe quando nós vamos ver os animais e apontamos olhò leão, olhò tigre, olhò aquele, aqueloutro. Nas ruas, é a mesma coisa, olhò José e lá vou eu falar com eles. Não que me dê trabalho, mas eles são uns quantos milhões.

Então deve estar mais à vontade nos jogos fora.

Qual quê?! Isto não é só no Cairo. A devoção deles pelo futebol é uma coisa extraordinária, e aprendi isso muito cedo. Em 2002, na minha primeira passagem pelo Al Ahly, ganhámos 6-1 ao Zamalek. É um dérbi como o Benfica-Sporting mas potencializado sei lá eu quantas vezes. O treinador do Zamalek, um alemão qualquer, foi demitido no dia seguinte. Num outro Ahly-Zamalek, o Flávio, um fantástico avançado nosso, de origem angolana, aquele que esteve no Mundial-2006 e marcou ao Irão de cabeça, sabe?

Sim, agora sim.

Esse Flávio falhou um penálti num dérbi que ganhámos por três ou quatro. Sabe o que lhe aconteceu? Alguns adeptos do Al Ahly vaiaram-no nos jogos seguintes. Às vezes, nos treinos. É a loucura.

Dizia-me que não podia andar à vontade no Egipto.

Acredite, Rui, não dá. Tentei ir duas vezes à biblioteca de Alexandria e qual quê?! Em ambas as vezes, fugi a sete pés e numa delas até me escondi num café. Isso comparado com o que vive agora não é nada.

Ah claro, sem dúvida.

Os últimos meses foram demasiado intensos.

No Mali, por exemplo.

Sim, sim. Fomos lá jogar para a Liga dos Campeões. Perdemos um-zero com um golo nos descontos e não voltámos para casa nesse dia porque Bamako [capital do Mali] foi varrida por uma tempestade de areia. Como tal, fecharam o aeroporto, o que impediu que o nosso avião proveniente da Tunísia pudesse aterrar.

E?

E fomos obrigámos a pernoitar em Bamako. Nessa madrugada, um contragolpe de Estado militar varreu a cidade. Como resultado, tivemos de ficar no hotel.

Quanto tempo?

Cinco dias.

Cinco?

Estivemos cinco dias fechados no hotel com outra equipa de futebol, o Sunshine Stars da Nigéria.

Como é que se passam cinco dias no meio de um contragolpe de Estado?

Nada fácil, e muito assustador. Os revoltosos entraram no hotel de metralhadora em punho e isso assusta qualquer um. Além disso, ao segundo dia já não havia comida no hotel.

Como resolveram isso?

A sorte é que de dia a vida parecia correr normalmente e à noite só se ouviam disparos de metralhadoras e canhões. Portanto, de dia, o cozinheiro do Al Ahly ia ao mercado, comprava uns alimentos e fazia almoços e jantares.

E os treinos?

Na piscina, uns dentro de água, outro fora, mas o medo estava sempre presente. Até porque ninguém sabia muito bem o que ia acontecer. Nós saímos de lá ao quinto dia. Anteontem, pelo que soube, a tal equipa nigeriana continua por lá.

Xiiii

Pois é. E nós saímos ao quinto dia, num avião militar, com aqueles bancos de lona, está a ver? Uma viagem de 15 horas naquela situação… Nós, a equipa do Al Ahly, mais umas famílias egípcias.

O que interessa é que está a salvo. Tal como no Masry-Al Ahly.

Foi outra história. Isto tem sido um corropio que nem lhe conto. A minha vida já não dá um livro. Tem de ser um filme [gargalhadas tímidas]. Nesse Masry-Al Ahly, aquilo foi organizado. Foi uma manobra política. Eles tinham um dístico em inglês, com letras garrafais, onde se lia ‘hoje vocês vão morrer todos aqui’. Aquela mensagem não era para mim nem para a minha equipa técnica, era para a imprensa internacional ver. Invadiram o campo cinco vezes, o jogo devia ter sido suspenso ao intervalo e não foi. Estávamos a viver um clima horrível perante centenas de polícias que não mexeram um dedo! Terrivelmente triste. A partir daí, acabou-se o futebol no Egipto.

Nem para a Liga dos Campeões?

Na segunda-feira, jogamos a segunda mão com a tal equipa que nos venceu no Mali mas o estádio estará vazio porque a polícia não se responsabiliza pelos actos de vandalismo durante o jogo. É um jogo da CAF (Confederação Africana de Futebol). Aqui no Egipto ninguém quer jogar. Nem campeonato, nem Taça nem Supertaça. O futebol está parado e assim vai continuar. Por isso, tenho este jogo de segunda-feira, mais um particular em Barcelona com o Espanyol no dia 18 de Maio e depois tomarei obrigatoriamente uma decisão sobre o meu futuro.

Uma decisão? Mas e o Al Ahly?

Eles contam comigo mas nestas situações…

Sente a paixão dos egípcios por si?

Isso nem se fala mas não é isso que me agarra aqui. O Cairo é uma loucura. Os egípcios sabem falar ao coração como ninguém. Julgava que os brasileiros eram os que trabalhavam melhor nesse campo mas enganei-me. Os árabes dão 10-0 aos brasileiros. Quando estamos em baixo, o melhor que temos a fazer é ouvi-los. Até pode ser mentira, mas isso não vem ao caso. Eles mentem muito, porque são orgulhosos. Não conseguem dizer ‘não sei!’ São palavras muito complicadas. E ouvi-los a discutir? Isso é um tratado! A entoação alta misturada com aquela voz arranhada que todos têm… É bonito de se ver, mas nem me aproximo.

São ordeiros?

Muito. Há excepções, claro.

Tais como?

No trânsito, por exemplo. Se me virem na estrada, encurralam-me, a entoar o meu nome, e só saio dali uns 30 minutos depois. E tentar atravessar?

Que é que tem?

É uma das actividades mais perigosas. Uma vez, um canal televisivo convidou-me para ir a um programa e lá fui. Cheguei dez minutos antes da hora, ao outro lado da rua. Acredita que estive dez minutos sem conseguir passar para o lado de lá? A televisão telefonou-me e justifiquei-me. Passados uns minutos, chegou um polícia sinaleiro, requisitado pelo canal, que mandou parar os carros e, enfim, pude entrar no edifício e ser entrevistado. Já estive em muitos sítios do mundo e isto é incrível. E a condução? Aqui, conduz-se como em Portugal nos anos 60: ninguém liga a ninguém, não há respeito.

Já se imaginou sem futebol?

A culpa disto tudo é do meu irmão. Ele é que me convenceu a ser treinador. Eu queria lá ser treinador. Jogava futebol e estava bom.

Jogava a quê?

Extremo-esquerdo, juniores do Benfica.

A sério?

A sério, ahahahah. Já tinha marcado um golo quase do meio-campo do Damas num Benfica-Sporting em juniores e estava feliz da vida. Depois, subi a sénior e fui campeão pelo Benfica, com um jogo apenas.

Ai sim?

Com a Académica, em Dezembro 1968. Ganhámos 3-2 na Luz. Entrei na segunda parte, não me lembro se para o lugar do Eusébio ou do Simões, mas não joguei um caracol. Tanto assim é que o Otto Glória nunca mais me convocou. Quem nos salvou nessa tarde foi o Praia, que correu, pulou, rematou e, se não me engano, marcou dois golos, os da reviravolta.

Iniciou-se como treinador no Espinho, não foi?

Sim, e mais uma vez a culpa é do irmão. Telefonei-lhe a dizer que o presidente do Espinho queria-me como treinador e ele convenceu-me a aceitar. A negociação teve até piada.

Conte lá.

O presidente Carlos Cabral disse-me que eu ia ganhar o ordenado de jogador mais 4.500 escudos. Devo ter sido o treinador mais mal pago da 2ª divisão. De sempre [gargalhadas sonoras].

Em que época foi?

Como jogador-treinador, em 1978/79.

Okay, vejo aqui que a estreia foi com o Aliados do Lordelo.

Jogava um tal Jaime Pacheco.

E marcou um golo. Lembra-se disso?

Eu, golo? Não me lembro.

Tenho aqui a crónica à minha frente. Um golo de livre directo. Era a sua especialidade?

Gostava de os marcar, sim. E tenho uma história curiosa. à 10ª, 11ª jornada [11ª], jogámos com o Riopele e estávamos em antepenúltimo lugar. O Riopele não jogou com um autocarro, mas com uns nove ou dez. Não havia maneira de a bola entrar. A dez minutos do fim, mais coisa menos coisa, há um livre à entrada da área. Eu ajeito a bola e digo para o companheiro do lado, ‘ò Reis, se esta não entrar, prepara-te que o lugar de treinador é teu. Vou abdicar disto. Mas isto é como dizem os chineses. O talento e a sorte quando se encontram com a oportunidade.

Foi o que aconteceu?

Golo, um-zero. Bola ao meio, eles foram lá à frente e 2-0 para o Espinho. A partir daí, nunca mais perdemos. Foram 17 jogos invicto e subimos à 1ª divisão como campeões da Zona Norte.

Perguntei-lhe se era especialista em livres porque sei que jogou com o Eusébio no Beira-Mar. Aí como é que era?

Eu era especialista em livres, o Eusébio é O especialista. Jamais entrar em conflito com ele. Tenho uma boa história com ele, na Venezuela. Fomos jogar um torneio e calhou-nos defrontar o Alianza Lima, com jogadores da selecção do Peru no Mundial-78. Entrámos no campo e reparei que as barras da baliza estavam mais baixas que o costume. Fui medi-las e conseguia tocar na trave sem sequer saltar.

Ninguém colocou balizas novas?

Qual quê?! Jogámos assim e há um livre para nós. Eu quero marcar mas o Eusébio já se sabe como é, naquele estilo ‘eu marco, eu marco, eu marco’. Não era eu marco o livre, era eu marco o golo. Bastava-lhe a bola passar por cima da barreira e era golo. Nesse dia, a bola passou por cima da barreira e ele saiu a correr campo fora a festejar. Eu também, mas a olhar para trás. Foi aí que vi a bola bater na barra e ressaltar para as mãos do guarda-redes do Alianza. Avisei o Eusébio e ele muito incrédulo ‘mas como não foi golo?’

Porque as medidas das balizas não estavam bem.

Exacto, ahahahah, o Eusébio era um portento. Mesmo no Beira-Mar quando já estava menos rápido, era um fenómeno. Como jogador e pessoa. Um fe-nó-me-no. Vi-o marcar um golo ao Sporting a 30 metros, meu Deus. Vi outro golo dele, ao Vitória de Setúbal, no Bonfim, num livre a 30 metros, debaixo de uma chuva torrencial. Perdemos 5-3 mas aquele golo continua na minha memória.

Por falar em memória, o que sente quando se fala do Boavista?

Tremo. É uma emoção enorme. Agora não me peça é para visitar o Bessa ou passar lá perto. Não consigo. Dava-me cá uma choradeira. E olhe que não sou de chorar. Mas vê-lo assim. Sabe que saí do Boavista porque quis uma equipa para ganhar o campeonato e o Major Valentim Loureiro não queria. Naquele braço-de-ferro, eu saí. E ele tinha razão. Veja lá para onde foi o Boavista depois de ser campeão nacional?

O Boavistão do Manuel José era cá uma equipa.

Pffff, os recursos eram fantásticos. Não me lembro de nenhuma outra equipa ter ganho tanto aos grandes como nós. Nem o Braga de hoje, nem o Vitória de Guimarães de ontem ou o Belenenses de anteontem. Ganhámos vezes e vezes aos grandes.

Lembro-me de um 2-1 ao FC Porto na final da Taça de Portugal.

Importante claro, mas nunca mais me esqueço do 1-0 na Luz, com um golo do Casaca, na primeira jornada do campeonato, e depois de eliminarmos o Inter, então detentor da Taça UEFA.

O Boavista era a equipa das camisolas esquisitas.

Não sei quem o disse, talvez o guarda-redes Zenga, mas aquilo ficou conhecido mundialmente. Cá, ganhámos 2-1 e podia ter sido quatro ou cinco. Lá, fizemos uma exibição de alto nível e 0-0. Com umas artimanhas pelo meio. Mas agora não dá tempo.

Só uma artimanha então.

Bem, em Milão, havia uma sala de aquecimento para as equipas. Antes do jogo, o Facchetti, então director-desportivo e depois presidente, disse-me que a sala estava à nossa disposição. Respondi-lhe que queria ir para o relvado. Ele ficou espantado e contra-atacou a dizer que ia fazer queixa ao árbitro. ‘Podes fazer o que quiseres, eu vou para o relvado’. Para quê?

Sim, para quê?

Para levar com os assobios no aquecimento, e não no início do jogo. Foi o que aconteceu. Fomo-nos aquecer no relvado e ouvimos de tudo. Quando entrámos em San Siro, devidamente equipados, já fomos mais relaxados.

E a outra artimanha?

Só mais esta. Ao intervalo, 0-0. Soubemos que o presidente deles [Massimo Moratti] tinha ido ao balneário do árbitro, um inglês qualquer. Bem, disse aos meus jogadores para defender longe da área, sem tackles nem nada. Dito e feito. O Inter não nos importunou por aí além e passámos a jogar 3-4-3 em Milão.

3-4-3?

Sim senhor. Lá na frente, dois baixinhos rápidos, Coelho e Marlon Brandão, e um génio, João Pinto. No banco, Ricky.

Obrigado Manuel José.

Abraço Rui.

in jornal i, Maio 2012

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