Marco Chagas. ‘Era um desenrascado de primeira, o Joaquim Agostinho’

Mais You Talkin' To Me? 04/16/2021
Tovar FC

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Marco Chagas. ‘Era um desenrascado de primeira, o Joaquim Agostinho’

Marco Chagas, 60 anos de idade. Sportinguista dos sete costados, homem de conhecimento enciclopédico e senhor de voz afável. Um exemplo categórico: ligamos-lhe na 3.ª feira para marcar uma conversa mais a sério na 4.ª. Só que à 4.ª é dia de cozido no restaurante “Rosa da Rua” na Rua da Rosa. Adiemos. “Rui, sem problema. Ligue-me a qualquer hora amanhã ou depois, estou sempre aqui à sua disposição.” Meu dito, meu feito. À 6.ª feira, Marco Chagas atende ao terceiro toque. Vencedor de 22 etapas na Volta a Portugal, leva a camisola amarela para casa em 1982, 1983, 1985 e 1986. Corre duas vezes a Volta a França, ambas com Joaquim Agostinho: uma ao lado dele (1980), outra em sua memória (1984). Ouçamo-lo.

Bom dia Marco, tudo bem?
Ò Rui, como vai?

Tudo bem. Agora é que é, preparado?
Eheheh, sempre. Vamos a isso.

Quais as primeiras memórias desportivas do Marco?
Vou só dizer-lhe isto: ainda sou do tempo de Carvalho, José Carlos, Hilário, Dinis, Marinho.

Isso é anos 60.
Nasci em 1956, comecei a ir à bola em 60-e-tais. Lembro-me bem desses domingos. Apanhávamos a carreira para Lisboa, aqui de Pontével [Cartaxo].

Apanhávamos, quem?
O meu pai, a minha mãe e eu, devidamente acompanhados por cesta com o belo do petisco. Chegávamos a Alvalade e não havia nada atrás do estádio, só montes. Fazíamos o piquenique e depois íamos ver o futebol.

Até quando?
Ahhhh, muito, muito tempo. Nem sempre os três. Às vezes, ia só com o meu pai, um sportinguista tremendo, doente mesmo [e solta uma gargalhada].

[de repente, um terceiro elemento intromete-se na conversa]
[diz lá, queres o quê? Então, agarra no comando e muda aqui isto para o sinal vermelho desaparecer]

Desculpe lá ò Rui, mas hoje estou de serviço ao meu neto. Tenho dois. O mais novo foi para o jardim-escola, só que há uma greve dos funcionários das escolas e o Martim teve de vir para aqui. Ele está ali sossegado. Onde é que íamos?

Contava-me a história do seu pai.
Ah, certo. Quando não íamos os três, o meu pai agarrava na moto e levava-me a Alvalade. Aos domingos e também às quartas-feiras europeias. Imagine agora a moto, a estrada e as horas. Eheheheh, que tempos maravilhosos.

Quem era o seu ídolo?
Damas, Vítor Damas [sem hesitar]. Que elasticidade. Depois conheci-o em Alvalade, quando eu já era ciclista e ele continuava à baliza do Sporting.

Ciclismo, pois é. Com tanto futebol, já me tinha esquecido. Que tempos esses.
Nem imagina. Aquilo era uma família engraçada.

Onde?
Em Alvalade. Ali, convivíamos com todos os atletas.

O Lar do Jogador era ali, verdade?
Na mouche. Lembro-me de futebolistas novíssimos, de acompanhá-los desde muito novos até à maturidade. Fernando Mendes, Futre, Litos. O Litos, mais. Como ele era de São João da Madeira e os outros dois do Montijo, não tinha tanta facilidade em passar o fim-de-semana fora de casa, digamos assim, e então passava mais tempo em Alvalade.

E mais futebolistas?
Mais nenhum. Apanhava mais jogadores do Porto nas Antas do que do Sporting em Alvalade.

Porto?
Sim, também corri pelo FC Porto. Veja lá isto: o meu último ano no Porto é o primeiro do Pinto da Costa como presidente.

Isso foi há 30-e-tal anos.
Dá para ver [lá vem gargalhada]. Assinei com o Américo de Sá, ganhei uma Volta a Portugal e saí para a Mako-Jeans.

Dizia que apanhava mais jogadores do Porto do que no Sporting?
Sim, correto. No Sporting, lembro-me bem do Manuel Fernandes: grande simplicidade, belíssima pessoa e grande capitão. Ainda hoje. No FC Porto, os jogadores iam muitas vezes àquelas belas confeitarias na Praça Velásquez. Era vê-los todos animados: o Jaime Pacheco, que também apanhei em Alvalade, o Tibi do ‘vai buscar Tibi’, o Lima Pereira, o Frasco, o doutor Domingos Gomes e até, veja lá bem, o Póvoas. Era um puto ainda, longe de ser a referência que é hoje.

Em Alvalade, quem apanhava por ali além dos futebolistas?
Tantos e tantos: os gémeos Castro, Carlos Lopes, Fernando Mamede, Ezequiel Canário, o professor Moniz Pereira.

E de outras modalidades?
Dependia do nosso horário do ciclismo. Como era nosso costume treinar de dia, não apanhávamos o basquetebol, o andebol, o hóquei. Lembro-me agora de uma ginasta muito conhecida e bonita. Que depois casou-se com o [puxa pela memória] Cadete. Chamava-se ela [puxa novamente pela memória em voz alta] Rita Vilas Boas. Será Rita? Acho que sim. Apanhava essa malta em Alvalade com mais frequência.

Estamos a falar de que anos?
Olha Rui, estive duas vezes no Sporting. Entrei em 1973, nem 17 anos tinha. Em 1975, o ciclismo acaba no Sporting e só volta quase dez anos depois, em 1984. É aí que se dá a minha reentrada.

E as diferenças entre esses dois tempos?
Enorme. Está a ver, antes e depois da revolução. Isso mexe com as pessoas.

Como era antes?
Dou-lhe um exemplo: para entrarmos na cabina dos profissionais do ciclismo, nas portas 16 e 18, se bem me lembro, tínhamos de bater à porta e era o tempo do ‘dá licença?’. Lá dentro, o famoso mecânico Francisco Araújo que tratava de 30-e-tal bicicletas. Quando regressei ao Sporting, em 1984, era tudo mais à vontade, mais descontraído. Sinal dos tempos.

E o Marco Chagas ciclista, quando nasce?
Desde miúdo. Como nunca tive jeito para o futebol e o meu tio era ciclista, apanhei-lhe o gosto muito cedo.

Quais as suas referências?
Roque, Firmino, Leonel. Aliás, cheguei a correr com o Leonel Miranda.

Mas era de ir ver corridas?
Sim, sim. Ia sempre ver a Alvalade as chegadas do Porto-Lisboa [uma prova clássica, criada em 1911, com vitória de Chagas em 1983]. Como era sempre a 10 Junho, um feriado, lá ia eu, feliz da vida, com o meu pai para a reta da meta. Conhecia todos os ciclistas. Um pouco agora com o meu neto, que conhece todos os jogadores de futebol.

Só que agora há cadernetas.
Na altura, ò Rui, também havia. Quer dizer, eram cromos com a informação básica: nome, idade e equipa. Agora é muito mais informação, claro.

Começa a ver e, depois, começa a correr.
Foi tudo muito rápido. Só para perceber, já corria com o Joaquim Agostinho aos 18 anos.

Como assim?
Cheguei ao Sporting em 1973 e a minha categoria chamava-se populares. Assim que fiz os pontos que me permitissem subir de escalão [atenção, Marco Chagas é campeão nos populares em tão-só seis meses de competição], passei a competir nos juniores. No ano seguinte, já estava nos seniores.

Com Agostinho?
Pois é, Agostinho. Foi em 1975, ano em que não se realizou a Volta a Portugal por causa das mudanças estruturais de Portugal. A revolução estava aí no ar e houve um ano de interregno. Optou-se então pela primeira edição do GP Clock.

E o Chagas no Sporting?
Não, aí não. A minha equipa era a seleção nacional. Como tinha sido campeão, fui parar à equipa da seleção. Havia ainda a do Sporting, com Agostinho, a do Benfica e a do Porto. Na primeira etapa, em linha, um colega meu da seleção deu de fuga e eles viram-se perdidos para anular a fuga. O grande Fernando Mendes, do Benfica, ataca a corrida e aquilo esteve mais parado para o lado do Sporting. No dia seguinte, antes do início da segunda etapa, a caminho da meta, o grande, enorme Joaquim Agostinho vem ter comigo e pregou-me uma descasca daquelas.

Ele queixava-se do quê?
Dizia-me ‘então vocês são corredores do Sporting e acabaram por nos criar problemas’?

E o Marco Chagas?
Eu? Foi a primeira vez que falei com ele. Falei? Nem me lembro, eheheheh. Acho que nem consegui dizer-lhe nada.

[nova intromissão do neto, o Martim: ai é, estás com fome? Espera aí só uns minutos que vamos tratar de ti, está bem?]
Desculpa lá, este rapaz aqui está a dar-lhe a fome.

Continuamos?
Sim, sim. Avance.

E depois, com o Agostinho?
Grande amizade e cumplicidade dentro do circuito. Levou-me com ele para a Volta a França em 1980 e só aí é que percebi a sua dimensão humana. Que personagem. Era um desenrascado de primeira. Parava no meio do nada, encontrava um mini-mercado, comprava as suas coisas e fazia-as ali, sem problema. Tinha jeito para os petiscos. Era muito engraçado.

E mais, e mais?
Tinha cá uma força. Acabava de correr uma etapa e pegava facilmente na carrinha para andar 400 quilómetros. Aliás, ele dizia ‘hoje são só 400 km’. Só, veja lá. Eu tentava acompanhar o ritmo dele, só que adormecia. Às tantas, acordava e tal, ele olhava para mim e dizia ‘dorme que bem precisas’.

Em 1984, Chagas e Agostinho no Sporting.
É o regresso do Sporting ao ciclismo, é o fatídico ano. Só durou até Maio.

O acidente na Quarteira?
No dia anterior, etapa de contrarrelógio e o Agostinho pregou-nos uma remessa.

Uma remessa?
A mim, por exemplo, deu-me minuto e meio ou dois minutos de avanço, já nem me lembro. No dia seguinte, era dia de meias etapas. Era assim naquele tempo: corríamos, cortávamos a meta antes do almoço, tomávamos um banho, comíamos qualquer coisa e lá íamos correr outra vez até quase ao pôr-do-sol.

É nesse dia?
Sim. Ganhei essa etapa, até. O pelotão chegou compacto e ganho ao sprint. De repente, dizem-me que o Agostinho caiu. Nem imagina a quantidade de vezes que ele caiu. Pensei que fosse só mais uma. Mas não. Fui ter ao seu quarto e ele ainda estava todo vestido. Só não estava calçado. Ele, com um saco de gelo na cabeça, só me dizia que lhe doía a cabeça. Saí de lá desanimado. Como sabe, o acidente foi em Abril e o Agostinho só morreu em Maio, dia 10. Estávamos na Colômbia.

A correr?
A Volta ao Algarve acabou no domingo e devemos ter partido para Bogotá na terça-feira. Eu fiz força para não ir. Em vão. Acabámos por ir. Na terceira ou quarta etapa, o speaker deu a notícia da morte do Agostinho. Que sofrimento. Nós ali tão longe, sem poder fazer nada. Quando cheguei, deram-me uma cassete com imagens gloriosas dele. Ao que parece, eu também estou lá pelo meio.

Ao que parece?
Nunca abri essa cassete, não tenho vontade.

Nesse ano, o Sporting ainda corre a Volta a França?
Sem cabeça nem preparação, fomos. Tínhamos de ir. A organização convidou-nos para homenagear o Agostinho e, lá está, tínhamos de ir. Ainda bem, sabe? O Paulo Ferreira ganhou aquela quinta etapa e foi uma alegria imensa. Chorámos todos, de dever cumprido.

Como foi essa vitória?
O Paulo Ferreira fugiu e nunca mais o pelotão o apanhou. Só dois franceses [Vincent Barteau e Maurice Guilloux] acompanham o ritmo dele. Os três chegaram ao mesmo tempo, com o Paulo Ferreira à cabeça. Os franceses não gostaram nada que o português lhes tivesse ganho [e parte-se a rir].

[a barriga do Martim volta a dar sinais de impaciência]
Agora é que é, vamos lá então a isso. Olhe Rui, tenho de assistir aqui a minha companhia. Disponha sempre, a qualquer hora, sem problema. Abraço grande.

in Observador, Fev 2017

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