Simões. ‘Encontrava-me às escondidas com o Jorge Sampaio’
Referência internacional do futebol como extremo esquerdo malabarista, António Simões é um revolucionário de corpo inteiro, cujo contributo para a criação do Sindicato dos Jogadores em 1972 (há 40 anos) é inestimável. Eis o 25 de Abril do futebol nacional.
Entra no futebol pelo clube da terra. O Almada nada quer saber sobre o interesse do Belenenes em Simões e já não tem força para travar o andamento do Benfica no final de 1960, quando Caiado vai ao Montijo observar Jorge e Moreira, figuras do quadro almacense. O olheiro benfiquista deslumbra-se com Simões e acelera o processo, com outros dirigentes. Na Luz, nem se pensa duas vezes. Acertam tudo com a mãe do jogador e Simões é imediatamente inscrito. Aos 18 anos, entra no onze de Bela Guttmann, aproveitando uma suspensão de Cavém (expulso em Aveiro), e nunca mais de lá sai.
Nesse ano, é campeão europeu, frente ao Real Madrid, e está ainda presente em mais três finais da Taça dos Campeões (1963, 1965 e 1968). Chega facilmente à selecção nacional. No Mundial-66, é famoso o seu golo ao Brasil, de cabeça (ele que nem assim tão alto, em comparação com José Torres e até com Hilário). Participa num jogo da Selecção da UEFA e depressa atinge o estatuto maior no Benfica, como capitão de equipa. É ele o líder do balneário e o porta-voz das reivindicações dos jogadores perante a direcção. Não só a nível clubístico como também nacional.
Como começou a luta pelos direitos dos jogadores?
Atenção que é uma luta de anos e anos. Demorou seis, sete anos. Com o 25 de Abril, tudo ficou mais facilitado. Nesse tempo, quem era de esquerda, era moda em Portugal. É como hoje a gravata fininha. É a mesma coisa.
Começou nos Estados Unidos, foi?
Sim, em 1967, durante o segundo particular entre o Boca Juniors e o Benfica. Primeiro, jogámos em São Francisco e empatámos 1-1. Depois, defrontámo-nos em Los Angeles. Outro 1-1. Foi aí que Alberto Armando, presidente do Boca, fez muita força para contratar-me. Tal como o Rattín, o famoso capitão do Boca e da selecção argentina.
Contacto directo ou por telefone?
Eram outros tempos e as duas equipas estavam juntas no mesmo hotel. Por isso, falámos naturalmente lá. O interesse do Boca era sério e apresentou uma proposta ao Benfica.
Lembra-se da oferta?
Ofereceram-me uma fortuna, qualquer coisa como sete mil e 500 contos. Uma fortuna é que lhe digo. Nem os Mellos, ou só os Mellos, é que tinham esse dinheiro. Essa oferta era ao Benfica.
E a si?
A mim, 100 mil dólares por ano. Isto em 1967, ok? Não sei o que é 100 mil dólares há 50 anos, ou há 45, mas imagino que seja um autocarro da Carris cheio de dinheiro. Mas atenção que a motivação não era o dinheiro. Tanto assim é que o Benfica me negou o direito de sair e eu continuei a jogar. Foram mais oito anos. Dei tudo o que tinha ao Benfica. Os mesmos valores e princípios que lutei para sair foram os mesmos que sustentaram a minha luta pelos direitos dos jogadores. Antes e depois daquela proposta.
Como eram vistos os jogadores daquele tempo?
Os jogadores da bola eram marginais.
Como?
Ouviu bem. Naquela altura, os clubes tinham todos os direitos e os jogadores nenhuns. Aliás, só depois é que chegou a chamada Lei de Opção, que obrigava os clubes a igualarem uma proposta que pudesse aparecer. De certo modo, foi o meu caso que veio ajudar a criar essa lei que, aliás, era boa para nós, a nível nacional, porque obrigou a que os clubes, para nos segurarem, se antecipassem a possíveis propostas que pudessem aparecer. Mas a nível internacional esta lei não significava nada: independentemente da proposta, o clube podia dizer não. A questão eram os direitos. Eles hoje têm os seus direitos e podem assinar com quem quiserem seis meses antes de acabar o contrato. No meu tempo, os clubes eram donos dos passes dos jogadores, como futebolistas e pessoas. Imagine que eu assinava por três anos e a ganhar cinco contos por época. Acabava o contrato e ofereciam-me quatro contos. E nós fazíamos o quê?
Sim, o quê?
Nada, não nos era possível fazer nada. Ou deixávamos de jogar ou renovávamos. Os clubes tinham controlo absoluto sobre os jogadores
E a sua proposta foi…
Divulgar uma proposta ao país inteiro: atenção que nós não somos donos do nosso percurso. Alguém está a fazer isso por nós. isso é uma inversão dos direitos. Com o 25 de Abril, tudo se tornou mais fácil e as mesmas pessoas que estiveram contra a minha ideia de sair, foram as mesmas pessoas que vieram reivindicar esse direito que a mim me contestaram. Veja bem a incoerência dessa gente. A cultura clubista extremamente anti-democrata.
Teve aliados?
Encontrei um jovem advogado chamado Jorge Sampaio, por recomendação de amigo em comum. A partir de uma certa altura, já não era uma questão de sair ou não do Benfica. Era pura e simplesmente a contestação de direitos. O processo desenvolve-se e ainda hoje há gente do Benfica que não me perdoou. A minha proposta era dar dignidade a uma classe sem direitos mas imagine o que era pôr o clube e o país em causa.
Mas quem o punha em causa?
Pffff, o regime, os clubes.
E os adeptos na rua?
Houve pequenos sinais de que eu estava a cometer uma injustiça. Eu lutar pelos meus direitos era cometer uma injustiça com o clube. É preciso dizer isso porque é verdade. Havia no ar aquela sensação de ‘mas quem é este gajo para pôr isto em causa?’ O meu direito era não ter direito nenhum. Era um acto de desobediência para o clube. Na altura, era uma ofensa ter esse direito, aliás a tentativa desse direito. Fui vítima disso mas não me sinto vítima. Acabou, ponto final. Lembro-me de ter dito numa reportagem d’A Bola: “O meu direito é não ter direitos nenhuns”. Fiz aquilo que devia ter feito. Corri o risco numa sociedade conservadora e ditatorial.
O Jorge Sampaio também, imagino?
Ah, sim, sim. Claramente.
Qual é o seu mérito?
Arriscar a sua vida e o seu futuro profissional para lançar-se nesta odisseia. Para acompanhar-me, motivar-me e aconselhar-me na luta pelos direitos dos futebolistas, inerentes a qualquer cidadão. Como foram esses dias que se tornaram anos? Primeiro arrancámos com a força dos homens da bola, tudo espontâneo. Depois, com o Jorge Sampaio, alcançámos outro nível – é ele o responsável pelos estatutos. Lembro-me de ir, no início, ao Ministério das Corporações, às vezes acompanhado pelo Pedro Gomes, outras pelo Hilário, mais tarde com o Toni.
Encontravam-se às claras ou…
Nem pensar. Era às escondidas.
De quem?
De tudo e todos.
Onde?
Um escritório ali para os lados da Avenida Columbano Bordalo Pinheiro.
Qual a imagem que ainda retém de Jorge Sampaio?
De um homem sério e apaixonado pela causa. De um homem com uma cultura sensacional. Repare: ele é sportinguista mas ia a pé, às vezes à chuva, ver os jogos do grande Benfica da década de 60. Isto revela uma cultura desportiva acima da média.
E as reuniões?
Formou-se logo a ideia de que era importante lutar pela criação de um Sindicato. “É necessário fazer alguma coisa para que isto não se repita”. Depois, existem nomes importantes neste processo que devemos igualmente referir: Pedro Gomes (costumava ser o meu marcador directo nos Sporting-Benfica), Eusébio (pelo grande impacto da sua figura), Toni, Hilário e o Artur Jorge.
Foi aliás ele o primeiro presidente do Sindicatos dos Jogadores, não foi?
Exacto. A sua formação académica revelou-se extremamente benéfica para assumir um cargo da máxima importância. Todos contribuímos: o Artur Jorge, o Toni, o Pedro Gomes, o Eusébio, o Hilário, o Jorge Sampaio, eu.
in jornal i, Abr 2012