Great Scott #307: Qual é o filme português de desporto estreado nos cinemas na semana do ‘Pássaros’ de Hitchcock?

Great Scott Mais 06/09/2021
Tovar FC

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Great Scott #307: Qual é o filme português de desporto estreado nos cinemas na semana do ‘Pássaros’ de Hitchcock?

Belarmino

Cinema Avis, na Avenida Duque de Ávila 45, telefone 47163 e ar climatizado, apresenta: “Belarmino” às 21h45 (adultos), um espectacular êxito do apaixonante filme português de Fernando Lopes, fotografado por Augusto Cabrita. No programa, ainda o notável documentário holandês “A Casa”.

Uau, estamos onde? Ou melhor, em que dia estamos? Quarta-feira, 18 Novembro 1964. É o lançamento do filme português “Belarmino”, a primeira longa-metragem do inesquecível Fernando Lopes. De visionamento obrigatório, um marco no cinema português. Daí que não caia no esquecimento. Meio século depois, eis-nos a falar dele como se fosse um assunto actual, obrigatório. E é. Porque sim e ainda…

Pela viagem mágica da câmara nas ruas de Lisboa, pela carga emocional da personagem e também pela honestidade de que está impregnado cada fotograma. Narra-se a história de um pugilista português famoso (Belarmino Fragoso), então entregue às misérias da vida. No auge da carreira, Belarmino é um herói popular. Dentro e fora dos ringues. Formado pelo Grupo Desportivo da Mouraria (começa a praticar boxe na Rua do Capelão no final dos anos 40 e chega a ser treinador na Rua do Terreirinho, na década de 60), faz-se um pugilista de eleição. Primeiro em Portugal, onde encaixa por combate a módica quantia de 30 mil escudos – uma fortuna, comparada com os 4 mil/mês de um realizador da RTP. A profissionalização chega em 1965.

A partir daí, Belarmino faz-se à estrada. Dos dez combates em Espanha, ganha oito e tem dois nulos. “Uma vez, em Tenerife”, conta Jorge Monteiro, amigo e companheiro de Belarmino, ao livro “LX60”: “Quando lá chegámos estava uma data de gente à nossa espera para pedir autógrafos. O Belarmino, que era praticamente analfabeto, dizia para as pessoas: ‘No puedo, tengo la mano aleijada’. Monteiro, assina por mim.” Outro combate histórico, o de Casablanca, com o campeão francês Dos Santos. “Aguentou os dez assaltos”, conta Monteiro. “Ao sétimo já tinha as arcadas abertas e eu dizia-lhe ‘Belarmino, acabou, tens de desistir.’ E ele responde ‘acabou nada’. Ao décimo assalto, o Dos Santos vai para ele todo contente, o Belarmino esquiva-se e mete-lhe uma direita com toda a força. Ganha por KO. Nunca vi um gajo tão teso como ele.”

No início dos anos 60, Belarmino troca de manager e a vida começa a entortar-se. “Fiz cinco combates e tudo o que ganhei foi um par de sapatos e um casaco em segunda mão”, justifica o herói no filme de Fernando Lopes. De volta a Lisboa, não mais pratica boxe profissional. Tem o passaporte caducado, assim como a licença para engraxar. Veste o manto da invisibilidade. Até que Fernando Lopes o topa. Como leão de pedra, que em gíria quer dizer segurança, no restaurante Ribadouro, colado ao Parque Mayer.

A ideia do filme ganha músculo. E é lançado no tal 18 Novembro 1964, na antevéspera de “Pássaros”, de Hitchcock, nos cinemas São Luiz e Alvalade. O realizador Fernando Lopes disserta sobre o filme na estreia. “Tinha em mãos três projectos: um filme sobre a emigração, muito ao estilo do cinema americano; um filme sobre pescadores de bacalhau, muito à Howard Hawks; ou um filme sobre Belarmino. Acabámos por nos fixar neste último projecto. A ideia inicial era fazer um filme barato e rápido de rodagem, quase como quem dirige um filme americano de série B. Para tal, contávamos com uma equipa reduzida, quase de curta-metragem.” E o filme propriamente dito?

A crónica do “Diário de Lisboa” é deliciosa. “Diga-se, antes de tudo, que ‘Belarmino’ é um filme moderno e a obra de um realizador inteligente, sensível e sabedor. É uma obra de cinema adulto, em dia, desenvolto e bem sacado, onde a originalidade pode não ser total mas há uma segurança que lhe dá categoria europeia. Belarmino é um filme bem feito, de bom gosto e expressivo. É uma obra com carácter, com estilo e força. É a prova real de um cineasta que faz um filme sem receio de mostrar que conhece o cinema moderno, desde Orson Welles, desde o cinema verdade, desde o documentarismo britânico, desde a nouvelle-vague francesa, desde o neo-realismo italiano. Conhece como cultura e base. Aventurou-se num filme seu, um filme português. Uma obra de autor, cerebral. Uma obra de choque, um filme experimental no melhor sentido. Claro que há falhas. Por exemplo, o massacre de Londres, de que se fala muito, não se vê. E no combate do Pavilhão dos Desportos – mais por culpa dos pugilistas que do realizador – falta violência, pelo menos visual. Mas o que é isso ao pé do aproveitamento revolucionário da linguagem autêntica de um homem do povo que foi um ídolo e, coitado, é bem um atrasado, com as suas manhas e vícios, com seus méritos e grandezas. Há ainda a viagem pela cidade (de Lisboa), empolgante e ritmada por uma montagem virtuosa e sublinhada pela música extremamente feliz de Manuel Veloso e fotografia (por vezes excepcional) de Augusto Cabrita. Aplauda-se Belarmino como um ponto de partida altamente prometedor. O cinema português tem mais uma data festiva.”

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