Nelinho. ‘Bem tentei bater livres no Barreirense, mas o Mira queria marcar sempre todos’

Mais You Talkin' To Me? 08/06/2021
Tovar FC

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Nelinho. ‘Bem tentei bater livres no Barreirense, mas o Mira queria marcar sempre todos’

Ronald Koeman (193 golos), Passarella (134), Hierro (110), Bauza (108) e Breitner (103). Eis o top 5 oficial dos defesas mais goleadores de sempre, só em jogos do campeonato nacional – neste ranking, o primeiro português chama-se Humberto Coelho e ocupa a 26.ª posição, com 68. Segue-lhe de muito perto um tal Roberto Carlos (66), que é o primeiro brasileiro. Mas, lá está, é só campeonatos nacionais. Se juntássemos todas as provas, o resultado seria outro. Para começar, Humberto subiria a sua conta para 97, entre Benfica, Paris SG e Las Vegas Quicksilver. E Roberto Carlos, por muito jeito que tenha para marcar livres, não seria o primeiro brasileiro. Esse distinto lugar seria ocupado por Nelinho. Quem? Pronto, pronto, eu digo o nome completo: Manoel Rezende de Mattos Cabral. Ainda não chegou lá? O Nelinho joga meio ano no Barreirense em 1970-71 antes de se tornar no Nelinho da selecção brasileira nos Mundiais-74 e 78.

O Barreirense faz 100 anos. Nesse século de vida, dezenas de figuras desfilaram pelo clube, agora na 1.ª divisão distrital de Setúbal. O site oficial nomeia, por exemplo, 15 figuras indiscutíveis do seu passado, algumas delas ligadas ao Barreirenses apenas nas camadas jovens (como Arsénio, que fez carreira no Benfica) e outras com passagem meritória na equipa principal (como José Augusto, Bento). Há ainda o caso de Chalana: seis jogos em 1974-75 bastaram-lhe para entrar no panteão dos imortais. Daí para o Benfica, Selecção AA, Bordéus e por aí fora. Com Nelinho, idem. Seis jogos em 1970-71 são suficientes para estar no 15 ideal do site do Barreirense. Daí para o Cruzeiro (uma Taça Libertadores e quatro estaduais mineiros), selecção do Brasil, Atlético Mineiro (mais quatro estaduais de Minas Gerais) e um golo histórico no Mundial-78. Pelo meio, garantem os historiadores do futebol brasileiro, Nelinho marcou 210 golos em jogos oficiais, em estaduais, Taça do Brasil, campeonato nacional e Libertadores. Duzentos-e-dez. Só no Cruzeiro são 105. É o 13.º melhor marcador de sempre do clube. E olhe lá que ele é foi lateral-direito. Lá, na Toca da Raposa, é o rei dos golos de livre (42) e de penálti (38). Em Portugal, no Barreirense, não teve sorte nenhuma. Dos seis golos, zero golos.

Apanhámo-lo por telemóvel às nove da manhã em Belo Horizonte. A conversa flui naturalmente. Ele não sabia que o Barreirense ia fazer 100 anos. Tudo bem, nós por aqui também não conhecemos muito bem o Nelinho. Vamos mudar isso? Mãos à obra.

Nelinho, daqui de Portugal. Ligo-lhe para falar consigo a propósito da sua época no Barreirense.

Em 1970-71.

Isso mesmo. Como é que um miúdo de 20 anos atravessa o Atlântico para jogar futebol. Os tempos eram outros.

Tem razão, sim, mas foi tudo uma sucessão de acontecimentos. Naquela altura, eu era júnior do América, a terceira força do futebol mineiro depois de Cruzeiro e Atlético Mineiro. O meu treinador era o Otto Glória.

Chiiii, já entendi tudo.

Ééééé, o cara era fera. Treinou Benfica, FC Porto, Sporting, Belenenses e até a selecção portuguesa no Mundial-66. Ora, em 1970, o Barreirense falou com ele e pediu-lhe que ele sugerisse um nome para assumir o clube. O sô Otto então apontou o seu adjunto, um tal Edsel Fernandes. O Barreirense aceitou esse nome e o Edsel Fernandes acabou por ir treinar ao Barreiro. Como bónus, levou-me com ele.

E como foram os seus tempos aqui?

Mais ou menos. Joguei num outro campeonato, bem diferente do mineiro, porque em 1970 ainda não havia o Brasileiro como vocês o conhecem agora. Esse só foi criado em 1971. Aí em Portugal joguei seis vezes no campeonato e mais duas na Copa UEFA.

A sério?

Sim, foi a única vez que o Barreirense jogou na Europa, via-quinto lugar da época anterior, e eu estava lá. Foi outro motivo de orgulho na minha ainda curta carreira. Ganhámos 2-0 ao Dínamo Zagreb em casa mas depois não tivemos qualquer hipótese na Jugoslávia (1-6).

E no campeonato?

Nem fala, só conseguimos ganhar à 14.ª jornada, a primeira da segunda volta.

O quê?

Calma aí. Também não fomos assim tão mal, porque havíamos empatado seis vezes e perdido sete.

E o Edsel Fernandes?

Já tinha ido embora faz tempo, substituído por um [Artur] Quaresma. Lembro-me que o seu último jogo foi com o Benfica, lá no Barreiro. Perdemos 2:0 mas tive um orgulho enorme em estar no mesmo campo que o grande Eusébio. Pôxa, imagina só a minha adrenalina. Nem sei se nesse dia ele marcou algum golo [não senhor, isso ficou a cargo de um defesa goleador – Humberto Coelho, who else? – e Artur Jorge]. Antes desse resultado, lembro-me de outro jogo histórico, quando fomos empatar 2:2 às Antas. O ambiente que vivi nessa tarde nem dá para contar. O estádio cheio, cheio, e nós com uma calma sensacional. Estivemos a ganhar duas vezes mas eles marcavam sempre a seguir [Câmpora 2’, Abel 25’, Câmpora 46’ e Custódio Pinto 49’].

Mas então nessa 14.ª jornada o que aconteceu?

Ahhhhh, essa é melhor você se sentar. Ganhámos ao Sporting, então o líder do campeonato, e em Alvalade. Foi 1:0, golo do Serafim. Mas aí eu já não jogava.

Porquê?

Lesionei-me na virilha em Outubro/Novembro e aquilo nunca mais sarou. Sentia dores incríveis. O tempo passava, passava, passava e eu nada de treinar, nem de jogar. Que dores! Os directores não acreditavam em mim, julgavam que eu estava a fazer fita e que me queria ir embora. Lembro-me perfeitamente que só o massagista é que acreditava em mim e dizia-me sempre para confiar em mim, que eu ia superar aquele momento.

E o nome dele?

Não me lembro mas recordo-me da sua figura. Era um senhor gente boa prá caramba, de setentas e muitos anos, Já morreu. Sei disso porque há já muito tempo entrevistaram-me aí de Portugal sobre isso. Alguém que sabia da minha amizade por ele.

Lembra-se de quem então?

Do Bento [guarda-redes], aquele que jogou no Benfica e na selecção. Em 1970-71, ele já era famoso porque tinha uma agilidade inacreditável e marcara um golo no campeonato [à Académica], de baliza a baliza. Havia mais quem? O Mira, um jogador técnico-cerebral, os goleadores Serafim e Câmpora, o capitão João Almeida, um cara com um nome bacana, Murraças.

E o Nelinho?

É, e eu.

E saiu quando do Barreiro?

Em Fevereiro. Como eu nunca mais ficava bom e os dirigentes não acreditavam em mim, pedi-lhes para voltar ao Brasil. Ainda por cima, era época de Carnaval e eu queria estar era no Rio. Eles libertaram-me mas não totalmente porque ficaram-me com o passe. Jovem e inconsciente como era, nem liguei. Só quando cheguei ao Brasil é que percebi que não podia jogar por mais nenhum clube. Estava agarrado ao Barreirense.

E agora?

A minha sorte foi o Barreirense ter acabado mal o campeonato, acho que foi antepenúltimo [na realidade é 10.º entre 14, só com dois pontos de avanço sobre o último, Varzim]. O problema foi que um dos clubes atrás do Barreirense [entre V. Guimarães, Farense e Leixões] meteu um recurso para evitar de descer de divisão, alegando que eu estava mal inscrito, porque a minha ficha no Barreirense dava-me como luso-brasileiro. Acontece que eu sou luso-brasileiro.

Então?

Os meus pais são de Portugal. Os meus avós também. De Ovar. Por isso, quando esse clube meteu recurso, o Barreirense veio falar comigo para eu assinar um papel em como era luso-brasileiro. Acontece que só tinha 20 anos e ainda não era maior. O meu pai é que tinha de mexer com essa papelada e assinar por mim. Eu então propus um negócio ao Barreirense: eles davam-me o passe e eu entregava-lhes a carta assinada pelo meu pai a respeito da minha dupla nacionalidade. Assim foi. Fiquei livre para jogar onde quisesse e o Barreirense livrou-se da descida [na época seguinte, o campeonato nacional cresce de 14 para 16 equipas e dos últimos cinco classificado, só o “lanterna” Varzim é que efectivamente desce]

A partir daí, foi só curtir?

Que nada. Estive três meses na Venezuela, com companheiros do América, mas aquela liga era fraca demais, embora pagasse bem. Regressei ao Brasil.

E tornou-se um ícone?

Obrigado.

Então você não é o Nelinho do Mundial-78?

Sim, obrigado.

Não marcou dois golos na Argentina?

Foi muito bom. Um de livre, à Polónia. E outro à Itália, com o Zoff na baliza.

Não foi esse o golo que o celebrizou?

É verdade, um remate de longe.

Um remate de longe, descaído para a direita, com a parte de fora do pé e a bola a contornar o Zoff. Não foi uma trivela?

Quase, quase. Foi um momento feliz. O Brasil ganhou 2:1 e ficámos em terceiro lugar, num Mundial em que merecíamos ter ganho. Afinal, não perdemos qualquer jogo dos sete.

Venceu a Argentina em casa, não foi?

Sim.

É aquele Mundial em que a Argentina precisa de ganhar 4-0 ao Peru para garantir a final e, ao mesmo tempo, eliminar o Brasil e acaba por fazer 6-0. Esquisito?

Não, não. Não acredito em corrupção. Nós também jogámos com o Peru e ganhámos fácil, por 3:0, e podiam ter sido seis. Na boa. O esquisito desse Mundial foi a ditadura militar que se vivia na Argentina. A gente estava sempre no hotel mas o caminho para o treino ou o jogo era dramático. As pessoas quase não se manifestavam, com medo de tudo e mais alguma coisa. Sem falar na extrema segurança nas ruas, com muitos soldados e armas.

Em 1978, já era o pé canhão. Porque não testou esse remate no Barreiro?

Era jovem, 20/21 anos. Os mais velhos não me deixavam. O Mira queria marcar sempre tudo [risos].

Mas depois ficou célebre aquela reportagem da TV Globo em que o Nelinho chuta a bola para fora do Mineirão, um dos maiores estádios do Mundo.

Nessa tarde, o repórter dizia que entre o relvado e a bancada eram 36 metros. Acredito mas aquilo era fácil para mim. Atirei a bola, ela subiu, passou a bancada e só saiu lá do outro lado. Foi outro momento especial. Como jogar no Barreirense, viver em Portugal, ir à selecção, ganhar um monte de títulos no Cruzeiro e no Atlético Mineiro.

Com um bocado de sorte e com esse pontapé, ainda se tornava jogador de futebol americano?

Não brinca não. Uma vez, o Cruzeiro fez uma digressão em Chicago e eles lá sabiam da potência do meu remate. Então pediram-me para fazer uns testes em meter aquela bola deles, que é também bem fácil de controlar, naquele H gigante, né?

E o que se passou?

Estava machucado e não pude fazer o teste. Mas se fizesse, era “golo” [gargalhada sonora]. De certeza. Tão certo como eu ter atirado a bola para fora do Mineirão

Acredito. E agora, já está a ver quem é o Nelinho do Barreirense?

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